Como o mundo do trabalho explica o avanço da extrema direita
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Como o mundo do trabalho explica o avanço da extrema direita

As relações entre a precarização constante das condições de trabalho e o fortalecimento das posições reacionárias

Frederico Henriques 21 nov 2024, 09:44

Foto: Wikimedia Commons

Então graças a produtividade do trabalho, desaparecem os tempos de não-trabalho: todo tempo de trabalho é tempo de produção.

(Francisco de Oliveira em O ornitorrinco)

Nos últimos dois meses, o debate sobre os desafios do mundo do trabalho no Brasil tem se intensificado. Durante o processo eleitoral, temas como o empreendedorismo, a geração de empregos nos setores como o telemarketing e as condições de trabalho na periferia ganharam destaque nas propostas dos candidatos.

Nas últimas semanas, uma pauta que tem sido mobilizada nas ruas e nas redes sociais é a proposta de emenda constitucional que exclui a escala 6×1. Esse tema vem gerando intenso debate e impulsionando pautas clássicas da esquerda. No centro dessa discussão, há uma disputa ideológica e de hegemonia, que reflete diferentes visões sobre o futuro do trabalho e seus impactos na sociedade.

Para compreender essas questões, é essencial analisar as transformações no mundo do trabalho nos últimos anos. Essas mudanças afetam diretamente a vida dos trabalhadores e influenciam suas relações com o Estado e seu engajamento político. Entender esse contexto ajuda a decifrar as dinâmicas sociais e econômicas que moldam as posições individuais e coletivas diante de novas propostas e desafios. Isso também permite desconstruir discursos simplistas, como o uso do termo “pobre de direita”, e compreender o avanço da extrema direita entre setores populares.

Precarização como política

Apesar de muitos enfrentamentos e disputas constantes, o Brasil atingiu durante décadas com grande parte da população excluída de todos os direitos. No entanto, a combinação de lutas econômicas e políticas no final da ditadura militar transformou esse cenário, impulsionando avanços recentes que não se limitaram a setores escolhidos pelo Estado, mas que se estenderam ao conjunto da população. Essa mobilização coletiva culminou em conquistas históricas, consagradas na Constituição de 1988, que se tornou um marco na luta por direitos universais e no avanço de uma democracia em construção.

Entre os avanços mais relevantes, destaca-se o debate sobre a seguridade social, que garantiu a todos os trabalhadores o direito à previdência social, à saúde pública e universal e à assistência social. Esses foram, sem dúvida, os principais ganhos democráticos do período, beneficiando não apenas os trabalhadores regidos pela CLT, mas a população brasileira como um todo. A Constituição de 1988 representou um marco na ampliação dos direitos sociais e na promoção de maior igualdade e justiça social no país.

No entanto, na década de 1990, que deveria ser um período de consolidação e regulamentação desses avanços, foi marcado por retrocessos. Com a abertura econômica, o fechamento de fábricas e um aumento significativo nas demissões, o movimento sindical e os movimentos populares sofreram derrotas importantes. Nesse contexto, os governos começaram a desmantelar o projeto original da Constituição de 1988.

Um dos primeiros golpes foi a não implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), transferindo parte significativa dessa estrutura para entidades de caridade e ONGs. Em seguida, avançou-se uma “privatização branca” na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), com uma participação crescente de Organizações Sociais (OS) na administração de recursos públicos, desviando uma fatia do orçamento de sua jurisdição. Por fim, as sucessivas reformas da previdência distanciaram progressivamente os trabalhadores da possibilidade de acesso à previdência pública, enfraquecendo um dos pilares centrais da seguridade social.

Esses retrocessos comprometeram seriamente os avanços sociais conquistados na década anterior, desmontando o projeto de construção de um Estado que promovesse direitos universais e protegidos constitucionalmente.

O processo de acumulação no Brasil ocorre em diversas frentes, sendo uma delas a chamada acumulação por espoliação (HARVEY, 2006), descrita anteriormente. Esse mecanismo tem como principal característica a transferência da gestão de recursos do Estado para a iniciativa privada, promovendo um ciclo de financeirização dos serviços públicos. Um exemplo claro é a deterioração da previdência pública, que abre caminho para o fortalecimento da previdência privada. O que antes era complementar — como a saúde suplementar, inicialmente concebida para apoiar o SUS — passa a ocupar uma posição central, com planos de saúde privados se tornando indispensáveis para grande parte da população.

Por outro lado, a assistência social é transformada em moeda de troca, frequentemente utilizada para atender aos interesses de grupos religiosos e políticos, que a moldam em ações de caridade, esvaziando seu caráter de direito universal. Esse desmonte afeta profundamente a capacidade do Estado de garantir direitos básicos, transferindo essa responsabilidade para entidades privadas com agendas próprias.

Contudo, o impacto desse processo não se restringe aos serviços públicos e aos direitos sociais. Ele também se reflete nas condições de trabalho e na qualidade dos empregos disponíveis para a população brasileira. O mercado de trabalho tem sido marcado por um aumento na informalidade, na precarização das relações laborais e na desvalorização do trabalho, fenômenos que serão detalhados a seguir.

Com o avanço do desemprego e o fechamento de grandes indústrias, o Brasil tem enfrentado uma pressão crescente por novos empregos formais. Mesmo sem dados consistentes que comprovassem uma recuperação econômica robusta, os governos que sucederam o período de abertura econômica — tanto o de Fernando Henrique Cardoso quanto o de Lula e Dilma — optaram por estratégias de flexibilização dos contratos trabalhistas. O objetivo era, pelo menos em termos percentuais, ampliar o número de trabalhadores formalizados.

No entanto, ao contrário do que muitos especialistas previam, essa expansão da variedade de contratos de trabalho — que passou de cinco modalidades no início da redemocratização para mais de 19 atualmente1 — não garantiu segurança nem qualidade aos empregos. Pelo contrário, essa estratégia resultou na formalização da precariedade, desestruturando setores que anteriormente ofereciam alguma estabilidade e benefícios mínimos. Em outras palavras, a formalidade deixou de ser sinônimo de proteção, estendendo as condições precárias a praticamente todos os segmentos do mercado de trabalho.

Um exemplo claro dessa dinâmica é observado em serviços de baixa qualificação, como segurança, limpeza e telemarketing, bem como em setores do comércio, onde jornadas extensas são a norma. Recentemente, o questionamento da escala que trabalha seis dias e folga um voltou a ser debatida intensamente nas redes sociais, nas ruas e no Congresso como modelo desumano deste tipo de trabalho. Esses setores exemplificam como a superexploração da mão de obra, composta por trabalhadores com poucas alternativas de inserção no mercado, se consolidou como um fenômeno estrutural.

Inicialmente, essa precarização afetava prioritariamente serviços tidos como menos qualificados. Contudo, hoje ela avança sobre setores tradicionalmente mais estáveis e qualificados. A pejotização de profissionais da educação e os contratos precários em áreas da saúde são exemplos claros desse processo. Até mesmo o funcionalismo público, que historicamente compensava os salários relativamente baixos com estabilidade, tornou-se alvo de críticas e reformas que tentam classificá-los como privilegiado. Isso ocorre em um contexto de achatamento salarial generalizado, que atinge tanto trabalhadores do setor privado quanto do público.

Esse cenário é agravado pelos processos de privatização e terceirização de serviços essenciais, como educação e saúde, que têm ganhado força no debate público. Governos frequentemente alimentam uma retórica que coloca trabalhadores do setor público contra os da iniciativa privada, promovendo divisões internas dentro da classe trabalhadora. Esse embate serve como terreno fértil para justificar reformas que fragilizam ainda mais os direitos trabalhistas e sociais, aprofundando as desigualdades e a precarização no país.

Consolidação da hegemonia do empreendedorismo

O desmonte dos direitos sociais e a desestruturação de qualquer forma de seguridade social no Brasil têm sido fatores centrais para o crescente descrédito da população em relação ao Estado e ao regime político instaurado na Nova República a partir da Constituição de 1988. Essa crise de confiança, que já se manifestava em eventos como os protestos de junho de 2013, continua a se aprofundar.

Com poucas garantias e segurança promovidas pelo Estado, as pessoas foram forçadas a buscar estratégias de sobrevivência. Enquanto uma pequena classe média alta conseguiu diversificar sua renda por meio de produtos financeiros, como previdências privadas, títulos do Tesouro e outros instrumentos do processo de financeirização, a grande maioria dos trabalhadores teve que encontrar alternativas como o trabalho em aplicativos, a criação de pequenos comércios ou a prestação de serviços online, muitas vezes informalmente.

O que antes era considerado um bico — uma atividade complementar para reforçar a renda — tornou-se a principal fonte de subsistência para milhões de brasileiros. Hoje, dirigir para aplicativos, gerenciar uma vendinha ou oferecer cursos e serviços online não são mais atividades secundárias, mas sim o núcleo da renda de muitas famílias. Dados recentes do IBGE2 mostram que a renda média de trabalhadores de aplicativos já supera a média nacional em determinadas categorias. Essa diferença se acentua ainda mais ao se comparar rendimentos entre motoristas de carro, motociclistas e ciclistas, evidenciando as desigualdades dentro desse mesmo setor.

Esse contexto reflete a incapacidade histórica do Estado brasileiro de implementar políticas de bem-estar e de criar empregos de qualidade. A lacuna deixada pelo poder público acabou sendo preenchida por um discurso de empreendedorismo, que transferiu para o indivíduo a responsabilidade de lidar com a precariedade e a falta de oportunidades. Assim, o “sucesso” ou “fracasso” de cada um passou a depender unicamente de suas próprias habilidades e esforços, isentando o Estado de seu papel central na garantia de direitos e na promoção de segurança social.

Esse discurso de empreendedorismo ganhou tanta força que ultrapassou as barreiras ideológicas. Não apenas setores da direita, mas também algumas correntes reformistas da esquerda passaram a adotar essa narrativa. Muitas vezes, isso ocorreu em detrimento de pautas históricas como a redução da jornada de trabalho, a defesa da qualidade do emprego e a garantia de direitos sociais. Esse deslocamento no debate público legitima a retirada do Estado como principal garantidor do bem-estar coletivo, transferindo o peso das escolhas econômicas e sociais para os ombros da trabalhadora e do trabalhador.

Diferentemente do que alguns setores elitistas da esquerda costumam argumentar — tratando o empreendedorismo apenas como uma ideologia ou manipulação da direita —, há elementos concretos que explicam sua aderência. O primeiro é a questão salarial, que em muitos casos se mostra equivalente ou até superior à média de outros setores. Além disso, a flexibilidade de horários se destaca como um grande atrativo, ainda mais tendo em vista a queda dos direitos sociais antes garantidos. A possibilidade de trabalhar em horários variados e não ter que responder diretamente a um patrão imediato cria uma sensação de suposta autonomia. Mesmo que isso implique jornadas mais longas ou horários não tradicionais, a percepção de liberdade associada a “ser o próprio chefe” reforça a aceitação dessa ideia.

Contudo, essa suposta liberdade esconde uma realidade de precarização. Em vez de representar uma oportunidade real de investimento e criação de um negócio próprio, o que se observa é a venda da força de trabalho por hora, de forma extremamente precária. Isso é evidente em dois principais casos: o comércio local e o trabalho por aplicativos.

No comércio local, como a tradicional “vendinha”, a relação de subordinação ao grande capital comercial já é bem debatida em trabalhos acadêmicos como o caso clássico de Oliveira (2003). Pequenos comerciantes ficam reféns de atacadistas e redes maiores, que impõem margens de lucro reduzidas e tornam o retorno econômico limitado, mesmo com jornadas extensas.

Já no caso dos aplicativos, essa precarização é ainda mais explícita. Os trabalhadores não têm segurança ou proteção garantidas, sendo obrigados a entregar de 15% a 30% de seus rendimentos às empresas de tecnologia que gerenciam as plataformas. Essas empresas, muitas vezes gigantes do setor de Big Tech, lucram com a força de trabalho alheia, mantendo os custos baixos e transferindo os riscos para os trabalhadores. Assim, a ideia de “negócio próprio” se limita a uma flexibilidade de horário, enquanto a relação de subordinação permanece intacta, com os trabalhadores dependentes das plataformas e inseridos em uma dinâmica de superexploração.

Em resumo, o que se apresenta como liberdade e autonomia no discurso do empreendedorismo é, na prática, a perpetuação da precariedade e da subordinação ao grande capital. Esse modelo, embora vendável como uma solução individual, reproduz as mesmas condições desiguais de poder e renda que caracterizam o mercado de trabalho tradicional, apenas sob novas formas.

“Pobre de direita” ou empreendedorismo como solução

O cenário descrito anteriormente ilustra a forma como as pessoas sobreviveram em um verdadeiro estado de guerra civil, no qual o “bico” se transforma em emprego e a “vendinha” se torna a principal fonte de renda de toda a família. Nesse contexto, até os direitos sociais mais básicos se tornam inalcançáveis. A educação e a saúde enfrentam desmonte contínuo, a previdência é uma miragem para os jovens que ingressam no mercado, e mesmo os mais experientes vivem recalculando o momento da aposentadoria. O Estado, por sua vez, faz apresentar apenas em momentos de repressão: na batida policial, no rapa, na fiscalização de alvarás, na cobrança de multas ou do imposto de renda — sempre como um agente que retira o pouco que foi conquistado para uma sobrevivência.

Nesse contexto, a direita se apropria dessa realidade para sustentar a narrativa de que o Estado é um inimigo do trabalhador. Esse ataque sistemático à sobrevivência dos mais pobres é reinterpretado como uma justificativa para a subversão do regime, com figuras como Bolsonaro e Marçal se apresentando como líderes “antissistema”. Eles exploraram a insatisfação popular ao criticar a corrupção política e as “castas” política, posicionando funcionários públicos, professores e intelectuais como inimigos do povo. Esse discurso serve para alimentar o ódio às instituições e legitimar um projeto político que, na prática, aprofunda a precarização e o ataque aos próprios trabalhadores.

Por outro lado, a centro-esquerda, ou a esquerda adaptada, oferece duas respostas principais. A primeira, amplamente discutida por autores como Jessé de Souza, é uma narrativa do “pobre de direita”, que sugere que os setores populares são manipulados por uma elite ou por ignorância. Essa visão tende a deslegitimar a autonomia desses trabalhadores, retratando-os como marionetes da ideologia dominante, incapazes de mobilização consciente. Nessa abordagem, o problema é limitado a uma suposta falta de compreensão, ou ideia de marionete dos setores dominantes. Nessa narrativa é que faz com que reivindicações econômicas justas se tornem manifestações golpistas.

A segunda resposta parte de uma esquerda adaptada ligada a governos e setores parlamentares, é a incorporação do discurso do empreendedorismo, mas com uma abordagem crítica. Para esses setores, o problema central seria a falta de gestão eficiente: bastaria oferecer crédito ou promover organizações cooperativas e comunitárias para resolver as dificuldades. No entanto, esta abordagem não entra em conflito com os verdadeiros patrões — o grande capital comercial, o capital financeiro e as Big Techs — nem propõe uma segurança das garantias de segurança social, elemento fundamental num país de estrutura social tão fragmentada.

A necessidade de uma Esquerda Radical

A esquerda que se propõe radicalmente deve ir à raiz dos problemas. Isso implica atacar as causas estruturais da precarização, começando pela revisão do desmonte sistemático dos direitos sociais. Um exemplo atual é a luta contra as políticas de austeridade fiscal — como o caso do arcabouço fiscal —, que priorizam cortes em direitos consolidados em vez de tributar os mais ricos. Reverter essa lógica é essencial para garantir, no mínimo, a segurança social prevista na Constituição de 1988.

Além disso, é fundamental retomar e ampliar a luta por direitos históricos, como a redução da jornada de trabalho e a regulamentação de condições dignas de emprego. Contudo, essas conquistas não virão sem organização popular. Tal organização não deve ser idealizada como um retorno ao passado, mas construída com base em novas formas de resistência e solidariedade que emergem nos setores populares. Nesse sentido, os trabalhos de Henrique Costa (2024) e Verónica Gago (2018) oferecem contribuições valiosas, ao explorarem como essas dinâmicas podem ser articuladas e fortalecidas a partir das contradições do próprio neoliberalismo “desde abaixo”.

Ambos analisam a realidade de trabalhadores sob a nova lógica neoliberal nas periferias de duas metrópoles latino-americanas: São Paulo e Buenos Aires. Seus estudos revelam formas singulares de resistência e organização comunitária que desafiam as lógicas hegemônicas do sistema capitalista. Henrique Costa, ao investigar comerciantes, trabalhadores autônomos e microempreendedores na zona sul paulistana, e Verónica Gago, ao explorar a economia popular na feira de La Salada, em Buenos Aires, oferecem perspectivas complementares sobre as experiências dos trabalhadores em contextos de precariedade.

Na zona sul de São Paulo, em localidades como Vargem Grande, pequenos comerciantes estabelecem relações comunitárias profundas, transformando clientes em amigos e formando redes de solidariedade. Essas práticas contrastam com o discurso neoliberal, que privilegia o individualismo e a competitividade, e revelam uma “economia moral” orientada para o bem-estar coletivo. Apesar da vulnerabilidade e da exclusão social, esses trabalhadores encontram formas de organização que fortalecem o tecido comunitário, destacando o comércio local como um espaço de resistência e coesão social.

Paralelamente, Verónica Gago analisa La Salada, a maior feira ilegal da América Latina, como um espaço que transcende a lógica mercadológica tradicional. Nesse ambiente, trabalhadores e comerciantes moldam suas práticas econômicas a partir de relações de solidariedade e estratégias coletivas, desafiando as dinâmicas neoliberais por meio de interações cotidianas. Gago identifica nessas práticas uma “pragmática vitalista”, em que os indivíduos se tornam agentes ativos de resistência, adaptando-se às condições adversas enquanto constroem formas alternativas de inclusão social e econômica.

As experiências em São Paulo e Buenos Aires evidenciam a profundidade das desigualdades geradas pelas políticas neoliberais, mas também destacam as respostas criativas que emergem dessas comunidades. A ideia de Gago de uma “política dos governados” se materializa nas práticas dos trabalhadores, que, mesmo excluídos das estruturas formais de poder e proteção estatal, desenvolvem arranjos informais e paralegais para garantir sua sobrevivência e afirmar seus direitos. Esses contextos revelam uma resistência cotidiana que subverte a lógica neoliberal e constrói novas formas de solidariedade e organização social.

Esses exemplos ilustram como as periferias urbanas da América Latina, apesar das condições de precariedade, se tornam espaços de protagonismo e inovação. Os trabalhadores não apenas respondem às adversidades, mas reconfiguram suas comunidades a partir de práticas que fortalecem laços sociais e desafiam as imposições do sistema. Assim, as periferias surgem como territórios de resistência ativa, onde a sobrevivência é coletiva e a solidariedade, uma estratégia fundamental para enfrentar as adversidades impostas pelo neoliberalismo.

Muitas dessas experiências vêm sendo exploradas por setores da esquerda radical, que, embora ainda timidamente, agem sobre a capacidade de organização desses novos segmentos da classe trabalhadora. Mais do que servir como referência política distante, algumas iniciativas buscam ancorar-se diretamente nas estruturas sociais já organizadas por esses setores, fortalecendo reivindicações e a própria organização em si. Um exemplo notável é o trabalho da vereadora Luana Alves, em São Paulo, que tem se dedicado à organização de camelôs e motoboys. Sua atuação vai além de figuras simbólicas ou discursos teóricos, conectando-se concretamente às redes de solidariedade e resistência construídas por essas categorias.

Com este texto, busquei destacar os elementos estruturais que permitiram à extrema direita conquistar a hegemonia no debate sobre as respostas ao mundo do trabalho. Ao prometer autonomia e liberdade individual, conseguiu apresentar soluções precarizadas e desreguladas como desejáveis, encontrando eco nas necessidades imediatas dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o centro-esquerda revelou seus limites, incapaz de formular bandeiras e lutas que rompam com o ciclo de precarização. Sua postura defensiva restringe-se a respostas reativas, desconectadas da nova realidade do mundo do trabalho.

No entanto, é preciso avançar. Uma organização conjunta com essa nova classe trabalhadora, resiliente e combativa, é essencial para superar a paralisia política. A luta promovida pelo Movimento Vida Além do Trabalho surge, nesse contexto, como um sinal de alento. Esse movimento reforça a importância de articular a defesa dos direitos sociais, condições dignas de trabalho e a redução da jornada com as experiências concretas de trabalhadores imersos em um mercado profundamente precarizado. A partir dessas iniciativas, podemos vislumbrar caminhos que inspirem novas lutas e enfrentamentos, resgatando o protagonismo de nossa classe no próximo período.

O grande desafio é transformar essas experiências dispersas em uma estratégia coletiva e ampla, capaz de enfrentar as forças do capital e construir alternativas reais à precarização. Só assim a esquerda poderá retomar seu papel como força transformadora, enfrentando os dilemas do mundo do trabalho e pavimentando um futuro de conquistas para as trabalhadoras e trabalhadores.

Referências

COSTA, Henrique (2024). Empreendedorismo e a economia moral da vida sem salário. Rev. Inst. Estud. Bras. (São Paulo), n. 87.

GAGO, Verónica (2018), A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Editora Elefante.

HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

Notas

  1. Segundo os dados do Ministério do Trabalho e do Emprego em 1988 eram: CLT, Estatutário, Outros, Trabalhador Avulso e Trabalhador Temporário; passaram para hoje ser: Aprendiz, Avulso, CLT R/ PF Determinado, CLT R/ PF Ind, CLT R/ PJ Determinado, CLT R/ PJ Ind, CLT U/ PF Determinado, CLT U/ PF Ind, CLT U/ PJ Determinado, CLT U/ PJ Ind, Contrat Lei Estadual, Contrat Lei Municipal, Contrat Prazo Determinado, Contrat TMP Determinado, Diretor, Estatutário não Efetivo, Estatutário RGPS, Estatutário e Temporário. ↩︎
  2. Segundo a PNAD e estudos recentes do CEBRAP de 2023 observamos que um motoboy que trabalha 40 horas de aplicativo ganha próximo de 2000 reais, enquanto o salário médio de um brasileiro com médio completo é de R$ 1.812. Se pegarmos um motorista de carro chega a ganhar R$ 5500 líquido equivalendo a média salarial de um brasileiro de superior completo. ↩︎

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