A crise e as peculiaridades do capitalismo chinês
O regime chinês nunca foi tão opaco como é hoje. Vivemos em tempos de incerteza, sem ainda saber como Donald Trump jogará suas cartas em relação à China.
Foto: FMT/Reprodução
Via ESSF
De acordo com números oficiais publicados em 17 de janeiro, o Produto Interno Bruto (PIB) da China crescerá 5% em 2024, e a meta estabelecida por Xi Jinping será cumprida, como (quase?) sempre. No entanto, em dezembro, alguns economistas chineses “líderes” expressaram sérias dúvidas sobre isso, incluindo Gao Shanwen, que estimou o crescimento em apenas 2% – antes de ser severamente punido. De fato, desde a crise da Covid-19, as medidas de estímulo não conseguiram restaurar o consumo. O país atravessa uma crise de superprodução. A diferença entre a fraca demanda interna e o forte crescimento das exportações está se ampliando ainda mais.
Transformação capitalista estagnada
Sendo a segunda maior potência econômica do mundo, a China tornou-se um componente central da ordem capitalista internacional, mas sua formação social continua altamente complexa, marcada por uma história específica. Como meu amigo Au Loong-yu e também Romaric Godin (no Mediapart, em 24 de setembro) apontaram, é necessário levar em conta as particularidades do capitalismo chinês para entender como o país agora enfrenta os mesmos impasses das nações ocidentais avançadas (excesso de capacidade industrial, exaustão da financeirização, limites do crescimento tecnológico, segundo Godin), mesmo sem ter concluído a transformação iniciada por Deng Xiaoping após a repressão dos movimentos operários, estudantis e populares em 1986.
A conclusão dessa transformação capitalista foi dificultada pelo peso do aparato burocrático em todos os níveis, pela corrupção sistêmica e pelas mudanças no poder introduzidas por Xi Jinping ao decidir tornar-se presidente vitalício: a marginalização crescente das estruturas governamentais e o fim da colegialidade na liderança do Partido Comunista Chinês (PCC), favorecendo apenas sua própria facção. A colegialidade garantia continuidade e funcionava como uma possível salvaguarda contra aventuras políticas. A grande diferença entre o processo de reintegração plena de Rússia e China no mercado mundial é que, em Pequim, havia um piloto eficaz no comando. Esse sucesso deve-se mais aos três predecessores de Xi do que a ele próprio.
Dívida, corrupção e estagnação
O estouro da “bolha imobiliária”, com a falência da gigante Evergrande em 2021, ilustra a importância dos laços – muitas vezes familiares – entre os setores público e privado no sistema capitalista chinês. Se essa crise tomou proporções tão grandes, foi porque, em todos os níveis, houve conluio entre burocratas no poder e seus parentes no setor privado para multiplicar investimentos, fonte de lucros tanto legais quanto ilegais. As consequências são profundas, não apenas devido ao fardo da dívida acumulada, mas também por seus impactos sociais. Xi Jinping se recusa a implementar uma política de proteção social. Para se preparar para a aposentadoria e planejar gastos com saúde (pelos quais terão que pagar), muitos chineses modestos compraram apartamentos na planta que nunca foram construídos ou mudaram-se para cidades que permanecem quase desertas.
Os pais agora temem que seus filhos vivam pior do que eles. O desemprego juvenil é muito alto e diplomas já não garantem um emprego digno. A população está ficando mais pobre e precisa economizar para um futuro incerto. Em um relatório para o Le Monde publicado em 9 de janeiro, Harold Thibault descreve lojas e restaurantes vazios, abandonados pelos “excluídos do consumo”. Xi Jinping pede à população que demonstre resiliência até a recuperação da economia, mas as empresas enfrentam uma concorrência feroz que as obriga a cortar custos em tudo.
O desejo de poder absoluto leva à paranoia. Xi Jinping está encarcerando empresários, “disciplinando” o setor financeiro e realizando purgas repetidas no aparato do partido, no estado-maior do exército e nos serviços secretos. A China continua sendo um mercado inegável, mas investir nele tornou-se um jogo arriscado, deixando o capital internacional perplexo. Podemos falar de uma verdadeira crise de regime com abalos imprevisíveis.
Crise da desglobalização
A “globalização feliz” (para o capital) pertence ao passado distante. Ela foi substituída pela crise da desglobalização, abrindo caminho para conflitos geopolíticos entre estados e retrocessos protecionistas parciais.
No entanto, não é fácil se libertar das interdependências criadas pela formação de um mercado mundial único e pela internacionalização das cadeias de produção. Essas interdependências continuam muito vivas, mesmo com outras questões, como a guerra e o aquecimento global, dominando a atenção dos governos.
A relação de forças com os Estados Unidos
Os primeiros sinais de Donald Trump são ambíguos. Ele nomeou ferrenhos opositores de Pequim para cargos-chave, mas suspendeu a proibição do TikTok. E o que pensar da posição aparentemente privilegiada de Elon Musk como “Presidente II”, sendo um grande investidor e apoiador de Xi, que propôs um plano para resolver a questão de Taiwan em favor de Pequim? (O homem mais rico do mundo se dá o direito de interferir em tudo?) Xi Jinping deve ter dificuldades para prever se um acordo com Trump será desejável e possível – e, por uma vez, conseguimos entendê-lo. Será esse um sinal de que sua política monetária permanece extremamente cautelosa? Este seria o momento ideal para fortalecer o papel internacional do yuan, mas, por enquanto, isso não está sendo feito. A guerra tecnológica e comercial entre as duas potências já começou e pode levar à imposição de um duopólio sino-americano no mundo ou, pelo contrário, a um confronto armado.
Os Estados Unidos continuam dominantes no setor militar e na produção de semicondutores avançados. Eles exigem que a gigante holandesa Nvidia pare de fornecer seus produtos de ponta à China. Apesar de subsídios maciços à pesquisa, as empresas chinesas parecem incapazes de alcançar os EUA nesse setor crucial. Como resposta, Pequim ameaça bloquear a exportação de metais essenciais à produção de semicondutores (gálio, germânio, etc.) para os EUA. Você falou em interdependência?
Entre a Europa Ocidental e Putin
A influência da China se estende da África à América Latina, mas isso não substitui suas conexões com países capitalistas desenvolvidos. O acesso aos Estados Unidos pode ser restringido. Como resultado, Xi Jinping poderia se voltar para a Europa Ocidental, Austrália e Coreia do Sul – mas há a guerra na Ucrânia, travada por seu aliado Putin, que também é parceiro da Coreia do Norte! Será que chegou a hora de sacrificar essa amizade inabalável? Difícil, dado que o aquecimento global está abrindo as regiões polares para exploração e comunicações marítimas. Pequim não faz fronteira com a Antártida e precisa de Moscou para participar do grande jogo estratégico nessa região, enquanto Donald Trump deseja tomar posse da Groenlândia!
O destino do mundo depende, em parte, de líderes como Donald Trump e Xi Jinping, o que não é nada tranquilizador. Ao caos vindo de cima, devemos opor o internacionalismo vindo de baixo.