“Manda a coletividade, não o indivíduo”

Entrevista com o dirigente socialista peruano Hugo Blanco realizada pela Revista Movimento em Fevereiro de 2017.

Em uma casa simples do bairro de Rímac em Lima, vive uma das figuras mais importantes da história do Peru e da América Latina. Poderia ser considerado alguma espécie de herói ou ídolo, mas a luta revolucionária contra o capitalismo não os necessita, e ele bem sabe que mais vale o exemplo do que o culto. Hugo Blanco Galdós passou por prisões, sentenças de morte, trocas de tiros, sequestros, tentativas de assassinato, doenças provenientes de agressões que recebeu na cabeça, catorze greves de fome, torturas… Mas como definiu Martín Cuneo1, nesta luta a morte sempre saiu perdendo.

Hugo, aos seus 83 anos de idade, nos recebeu à noite quando terminava a 127ª edição do jornal Lucha Indígena, do qual é diretor. Apurava-se para terminar sua colaboração, pois preparava sua viagem ao México dois dias depois, como parte de sua militância internacionalista de toda a vida. Revolucionário indomável, sindicalista, camponês, deputado constituinte, senador, escritor… Sua personalidade simples, amável e firme é uma prova viva da frase de Che de que é possível endurecer-se, mas sem perder a ternura. Contudo, não se deixou seduzir pela arrogância.

Nesta entrevista autobiográfica de mais de duas horas, Hugo Blanco nos conta por meio de sua própria história, capítulos fundamentais da luta de classes no Peru e no mundo, sua experiência com o trotskismo quando foi parte da corrente de Nahuel Moreno, sua aproximação com a luta indígena, camponesa e ambiental e suas preocupações com o futuro da humanidade.

Movimento – Em primeiro lugar, gostaríamos de saber como foi que o senhor começou a militar. Sua história, em seu início…

Bem, [Eduardo] Galeano, com as belas palavras que tinha, escreveu que Hugo Blanco nasceu duas vezes. A primeira vez em Cusco em 1934, ainda era branco, mas se criou em um povoado, Huanoquite, onde se falava quechua… A segunda vez, quando tinha dez anos de idade e, também em Cusco, ficou sabendo que um fazendeiro, de um povoado onde havia passado sua infância, havia marcado com ferro quente a nádega de um indígena. Isso lhe marcou, foi como um renascimento. E depois suas prisões, as agressões, torturas, exílios… teria sido sua desgraça escolhida.

M – E qual foi sua primeira experiência de luta?

Ainda no quarto ano do secundário, estávamos na ditadura de [Manuel] Odría, eu era o único dos três irmãos que estava livre, tinha 13 anos. Meu irmão de 17 e minha irmã de 19 estavam presos por serem apristas… Não por terrorismo nem nada, mas simplesmente porque ser aprista ou ser do Partido Comunista era um delito. Isso ainda na época gloriosa da APRA (Alianza Popular Revolucionaria Americana), não é?

M – Sim! Faz muito tempo! [risos de todos]

Então, Odría tinha colocado pequenos ditadores como diretores dos colégios nacionais e nessa época fizemos uma greve. Uma greve muito forte! E conseguimos vencer. Apesar deste pequeno ditador conseguimos vencer. Isso me ensinou que a ação coletiva é eficaz.

M – E a militância revolucionária, a organização partidária? Quando passou a fazer parte da sua vida?

Tínhamos algo como um círculo de estudos dos secundaristas, mas nenhum universitário queria vir nos falar sobre o que era o partido aprista, o partido comunista, nada. Não queriam vir porque, como havia ditadura, tinham medo que mesmo sem querer pudéssemos entregá-los, não?

Depois fui estudar Agronomia na Argentina e, ao passar pela Bolívia, vi que lá havia muito material revolucionário. É que no ano anterior, 1952, havia acontecido a Revolução Boliviana! Comprei todos os materiais e fui para encontrar meu irmão que ia chegar a Mar del Plata.

Ao chegar lá fiquei sabendo que meu irmão era secretário geral da célula aprista de La Plata e o seu quarto era a sede local do partido (risos)… e os deportados do Peru, os deportados apristas, se reuniam ali. Eu como estava por aí perguntava muito, mas o APRA que me mostravam eu não gostava, não era o que tinha lido… então não entrei. E meu irmão tratou de vacinar-me contra o partido comunista. Me falava de todas as barbaridades que fizeram, que Prado era o Stálin peruano, que “aqui na Argentina às vezes estavam com Perón às vezes estavam contra Perón com a direita…” e os do partido comunista não podiam desmentir isso mesmo. Eu já sabia da existência dos “apristas rebeldes”, mas não havia nenhum na argentina nesse momento.

Antes de sair do Peru, fiquei sabendo do Partido Obrero Revolucionario (POR), que tinham sido presos e os jornais publicavam o programa deles. E gostei do programa deles. Eu também sabia da existência dos trotskistas… Então eu procurava pelos apristas rebeldes, os trotskistas ou gente do POR… Militávamos no Centro de Estudantes Peruanos, uma organização que pela primeira vez estava na mão da esquerda etc., numa destas reuniões um aprista falou a meu irmão: sabes a barbaridade que fez Pavón? Levou um trotskista à reunião! E eu saltei: Não sejas caluniador! Que trotskista ele levou? Sim esse que disse que teríamos que nos solidarizar com a Guatemala! Aí meu irmão se deu conta que eu andava em busca de trotskistas [risos de todos].

Em uma dessas manifestações de solidariedade eu encontrei esse companheiro e lhe disse que estava procurando apristas rebeldes, ou trotskistas, ou pessoal do POR… Eu sou trotskista e sou do POR, me disse. Descobri que o POR era trotskista! Assim, o companheiro me conectou com os trotskistas da Argentina e entrei no partido de Moreno.

Nesse momento, eu era estudante de Agronomia, mas depois por duas razões deixei a universidade. Uma delas me dei conta quando vim de férias ao Peru. Para pagar as férias tinha que ir trabalhar um pouco na fábrica e ganhar um dinheiro. Me pus a pensar, no Peru a terra está nas mãos dos latifundiários, a que latifundiário vou servir eu quando for agrônomo? Ou vou ter que ser eu o latifundiário? Não me agradava nem um pouco essa perspectiva.

E outra razão também. Na Argentina estava em preparação o golpe contra Perón. A classe média apoiava o golpe, a classe operária não. E eu, é claro, estava contra o golpe. Já se fazia insuportável pra mim a vida na universidade com a classe média pró-golpista. E como já havia estado na fábrica e via que todos eram contra o golpe, eram peronistas… Por isso deixei a universidade fui para a fábrica.

M – E como foi a volta ao Peru?

Com outros camaradas entramos no partido e estávamos trabalhando nos frigoríficos. Havia três categorias: simpatizante, aspirante e militante. Bem, o que entrava no partido entrava como aspirante. Entramos e nos disseram: “Vamos mostrar o que pensamos. Se vocês estão de acordo, entram; senão, não”. Então tivemos cursos de filosofia marxista, economia marxista, de história das Internacionais e tudo isso.

Entramos como aspirantes, ou seja, com voz e sem voto, mas tínhamos um privilégio, os dois peruanos. Como já não havia mais ditadura aqui, tínhamos que militar no Peru, e então assistíamos às reuniões da direção do partido. Aí definiram, como eram trabalhos temporários, que o primeiro que fosse demitido viria ao Peru. E como eu fui primeiro, voltei.

Como tinha aprendido que a classe operária era a vanguarda, e em Cusco não havia classe operária, vim para Lima para trabalhar em fábrica, mas não se podia entrar em fábricas grandes. Eram fábricas pequenas, que não tinham sindicato. Bem, tratar de organizar sindicatos? Mas um dos operários era afilhado do patrão, o outro era sobrinho do capataz…

Nas metal-mecânicas não necessitavam peões, necessitavam soldadores ou torneiros. Tínhamos nesse momento um pequeno grupo. Então um simpatizante tinha um amigo que era gerente de uma oficina de automóveis em um setor perto da Selva. Fui até lá para aprender a soldar e entrar como soldador. Logo venderam, trocou de dono e então eu regressei a Lima e tive a sorte que um companheiro me conseguiu um trabalho em uma fábrica de azeite que sim tinha sindicato, claro, era dirigido pelos apristas, mas tinha sindicato. Teria que trabalhar “clandestino” os primeiros seis meses para que não me demitissem e depois nosso objetivo era entrar no sindicato. Mas nesse meio tempo veio Nixon dos Estados Unidos, que era vice-presidente, ainda não era presidente, e entre vários “grupúsculos” de esquerda, preparamos uma manifestação (eu não porque tinha que trabalhar na fábrica, mas os camaradas do grupo que tínhamos) que resultou ser muito mais forte do que imaginávamos… E a repressão, sabes como foi? Tive que sair da fábrica e ir para Cusco! E em Cusco encontrei minha irmã que trabalhava em um jornal que não se vendia em bancas, mas havia meninos que vendiam o jornal. Organizamo-nos, organizei no sindicato cada menino, claro me interessava trabalhar com eles, mas principalmente ir à federação dos trabalhadores de Cusco e fui como delegado deles.

Então me dei conta de que a federação não era uma organização operária, havia duas fábricas, mas era uma organização fundamentalmente artesanal, e me dei conta de que a vanguarda era o campesinato da Convención. Tinha aprendido que a vanguarda é a classe trabalhadora, mas também aprendi a localizar a vanguarda.

M – Conte-nos um pouco mais sobre La Convención y Lares.

Bem, o diretor do jornal [que vendia] mandou me deter, me mandou à delegacia e lá encontrei com um dirigente camponês que havia conhecido na federação dos trabalhadores de Cusco e também lhe apresentei meu sogro que era seu advogado. Ele me disse: “A ti vão soltar, não estás com ordem de captura, mas a mim eles vão mandar para a cadeia”. E estou preocupado porque sou o terceiro dirigente do sindicato que levam preso, e o fazendeiro é feroz, então temo que o povo se assuste e retroceda.

Então eu lhe disse: Eu vou a Chaupimayo, que era o sindicato que faziam parte os três companheiros presos. Ele me disse: “Quando te deem liberdade, venha conversar com nós três”. No dia seguinte, fui falar com eles e aceitaram que eu fizesse parte de Chaupimayo. Encontrei-me com um camponês de Chaupimayo que me mandou a uma estação onde me esperava um cavalo no qual subi até o sindicato. Foi a única vez que fui a cavalo a Chaupimayo, pois todas as outras ia a pé [risos].

E lá me receberam bem. Como era enviado por seus dirigentes, me receberam bem. Assim começou. Mas quando fui como delegado de Chaupimayo à FDTC (Federación Departamental de Trabajadores de Cusco) – ainda não havia a FEPCACYL – descobriram que eu era trotskista e não me permitiram participar. “Primeiro vens como delegado dos estalinistas agora como trotskista… não, não… não aceitamos”. E quando já havia outros sindicatos se formou a federação provincial e me escolheram como um dos delegados para o Congresso de fundação da FEPCACYL, a Federação da Conveción y Laires. Eu estava ali quando entrou um dos burocratas do PC: Enquanto Hugo Blanco esteja aqui não começa o congresso! Tive que sair né? Aí se formou a federação, mas eu tampouco podia participar das Assembleias, pois como era “agente do imperialismo” e queria “desorganizar a luta camponesa”, que tinham me colocado ali os latifundiários entre outras calúnias que os estalinistas espalhavam sobre mim, era perigoso e eu não ia. Até que me prenderam por outra causa. Por participar de uma greve convocada pela FDTC, fizemos piquetes e impedimos que saísse o trem. Os policiais me reconheceram e quiseram me colocar no camburão. Eu “palanqueava” com meus pés e não permitia, me ameaçaram e a gente (que era pouca) atirava pedras e cortou os pneus do camburão. Mas por fim ao reconhecer meu nome, me levaram e queriam me manter preso.

Os dirigentes da Federação soltaram uma nota dizendo que a Federação não tinha nada a ver com agitadores. Então foi à Federação um companheiro de Chaupimayo, meu sindicato: “Vimos comunicar que o sindicato decidiu que todos nos declaramos em greve de fome”. Mas como vão fazer isso? “A greve é contra a Federação por não defender Hugo Blanco” [risos de todos]. Me libertaram imediatamente e fui à federação agradecer por minha liberdade e lá estava o chefe do Partido Comunista de Cusco… agradeci à Federação dos Trabalhadores de Cusco disse que estava bem, tudo isso, e ele disse: “Claro! Era minha obrigação!” [risos]. E já não puderam me tirar da Federação.

Tínhamos comprado um mimeógrafo de segunda mão e rodávamos os panfletos contra os fazendeiros e a gente que sabia que tínhamos isso e pedia que eu fosse organizá-los. Minha atividade principal na Federação passou a ser organizar os sindicatos e editar os panfletos denunciando os abusos dos fazendeiros. Me diziam: “Faça nossos panfletos, companheiro!” E eu dizia são 50 soles porque tenho que comprar papel, tinta… e se cotizavam. Na semana seguinte estava pronto o panfleto. Muitas vezes colavam em sua porta de cabeça para baixo, pois eram analfabetos, mas o importante é que era um papel que falava em favor deles e assim que conheci a maior parte dos sindicatos da região de Convención y Lares.

M – E como se desenvolveram as lutas camponesas até chegar à autodefesa armada? O processo que chamaste de primeira reforma agrária do Peru, entre 1961 e 1963.

Era um sistema semifeudal e os camponeses vinham de outras províncias. O fazendeiro arrendava uma parte de sua terra para o camponês e, em troca, teriam que trabalhar para o fazendeiro. E lhe entregavam uma parte mais ou menos grande, mas o trabalho era muito pesado. Tinham que converter a selva em terra cultivável, comer comida que não estavam acostumados e esperar três anos para que dê o café, o cacau e a coca também. E como não tinham tempo para fazer isso tudo sozinhos, pegavam outros camponeses com o mesmo sistema, lhes davam por três dias de trabalho um pedaço de terra, como achegados. Por isso os sindicatos eram de arrendatários e achegados.

A inspeção de trabalho chamava os fazendeiros e chegavam a algum acordo, por exemplo: que a jornada não fosse de mais de oito horas, como dizia a lei, que os filhos e a mulher do camponês não tinham obrigação de trabalhar porque estavam na colheita, coisas assim. Mas tinham fazendeiros superfeudais que diziam: “A quem lhe passou pela cabeça a loucura de que vou discutir com meus índios como devem servir a mim! Tem que prender os líderes disso e assunto acabado”, por isso meu sindicato estava com três dirigentes presos. Eles [os fazendeiros] simplesmente não iam às reuniões com a inspeção de trabalho.

Então três dos sindicatos resolveram declarar greve. A greve consistia em não fazer o trabalho para o fazendeiro. O operário e o empregado sofrem com a greve, não pode durar muito porque têm que comer, mas o camponês desfrutava a greve porque tinha mais tempo para trabalhar em sua terra para sua família. E como eram ferozes os fazendeiros, andavam armados gritando: “Índios ladrões, estão roubando minha terra! Vou matar vocês!” Em certa ocasião, os camponeses foram à Federação para se queixarem e lhes orientaram que fossem à guarda civil reclamar. Na delegacia, diziam-lhes: “Índios sem vergonha, vocês ainda têm coragem de se queixar? Vocês estão roubando a terra do patrão e ele tem direito de matá-los como cachorros!”

“Então o que vamos fazer companheiros? Não nos resta nada mais que nos defender nós mesmos”. “Sim, mas já sabemos que quando nos armamos, quando nos embebedamos, disparamos uns nos outros…” “Sim tens razão companheiro, vamos fazer organizadamente comitês de autodefesa”. E se aprovou, organizar comitês de autodefesa. Mas como Chaupimayo era muito longe da estrada, quando os guardas vinham, uma hora antes já sabíamos quantos eram e com que armamento vinham. Saíamos pela comunidade e pedíamos que as companheiras lhes convidassem a um caldo de galinha, comiam o caldo, davam umas voltas pelo povoado e regressavam. Como era o sindicato mais ameaçado já estávamos praticando a autodefesa… Ademais disso, as carabinas e as escopetas eram uma ferramenta de trabalho para cuidar a plantação dos animais selvagens.

Aí veio a questão: quem vai organizar os comitês? Um companheiro propôs Hugo Blanco e não houve outra proposta. A assembleia me ordenou que organizasse os comitês de autodefesa. Vinham de outros sindicatos para aprender a autodefesa e novos sindicatos que se organizavam imediatamente decretavam a greve. O governo propôs uma lei de reforma agrária que pensava em não cumprir, mas a Federação decidiu que enquanto não se cumprisse a lei a greve seria geral.

Os fazendeiros, já acossados pela greve, pararam de ameaçar, mas delegaram a tarefa aos governos. E lembro de ter ouvido no rádio a declaração da guarda civil dizendo que primeiro iriam reprimir o sindicalismo camponês na serra, que era mais débil – e realmente mataram um companheiro lá –, depois reprimir La Convención e, por último, reprimir Chaupimayo. Realmente a polícia declarou ilegais os sindicatos e a Federação. A Federação já não se reunia, se encontravam algum sindicato em assembleia, a coronhadas dissolviam-na, então os sindicatos passaram a realizar reuniões conjuntas para se proteger.

Certa vez, em uma dessas reuniões, um dirigente sindical denunciou que tinham ido ao seu sindicato para capturá-lo, mas não o haviam encontrado. Encontraram apenas um menor, pensaram que era meu filho e perguntavam: “Onde está teu pai?” E o menino realmente não sabia e o fazendeiro pediu a arma ao guarda e ameaçou: “Se não falas onde está teu pai te mato!” E quando o menininho repetiu que não sabia, disparou no braço dele. E a que autoridade poderia reclamar se estavam todos contra? Bem, informe à assembleia. A assembleia decidiu que fosse eu, o companheiro disse que eu não podia sair do território, mas eu lhe disse: “A situação é tão grave que se vocês decidem vou eu”.

Fomos de vários sindicatos, alguns armados outros não. Orientei que primeiro passassem pelo posto policial, os de arma “curta”, se passassem, nós passaríamos. Vi que tinha um dos guardas com a cabeça enfiada no jornal, já tinham nos visto e iam nos pegar pelas costas. Disse-lhe que queria falar com eles um momento, e falei que tinham disparado em uma criança e queríamos que detivessem o fazendeiro que disparou. “E, como temos poucas armas, vimos para levar umas armas em troca”. Eu lhe rendi e disse: “O senhor levante as mãos.” Ele respondeu ironicamente: “Ah sim vou lhe dar as armas…” Falei: “Fique quieto! Levante as mãos senão vou disparar!” Ao invés de levantar as mãos, sacou a arma e disparou, mas eu atirei primeiro. Seu tiro foi ao teto, um minuto mais que eu demorasse, era eu o morto! Ele havia sido o que deu a arma ao fazendeiro para atirar no menino, tinha a consciência suja. E começaram a disparar contra nós. Então nos protegemos e dissemos: temos dinamite e uma granada de mão! Era caseira, feita em uma lata de leite. Tinha muita gente e disse aos companheiros: “Não toquem nele! Um prisioneiro é sagrado!”

O guarda me disse: “Vocês pensam que vão ganhar?” E lhe respondi: “Tu és pobre como nós e estás defendendo os ricos. Em que trabalha teu pai?” Me respondeu que era mecânico. Eu lhe disse: “Então está certamente conosco!” Levantei o ferido e chamei ajuda para socorrê-lo. Me apresentei ao guarda sobrevivente e lhe disse: “Eu me chamo Hugo Blanco e fui eu que atirei”, para que não saíssem caçando pelo povoado.

Depois quando fizeram a denúncia do assalto ao posto policial, lhe perguntaram: “E tu, como estás vivo?” Respondeu o guarda: “Devo minha vida a Hugo Blanco”. E para que foi dizer isso! Prenderam-lhe por covardia! [risos]. Acabei sendo preso também, mas quando me liberaram, estava por Cusco, encontrei um senhor que me perguntou: “Lembra aquela situação com o guarda?” Eu lhe disse sim, claro que lembrava. “Lembra que disseste que o pai dele estava com vocês? Isso é verdade. Eu sou seu irmão e meu pai estava mesmo com vocês!” [risos de todos]

Em outra ocasião, nos chamaram para organizar a luta, haviam decidido pela greve. Chegamos, o grupo armado, e o companheiro pediu que fôssemos aonde estava o fazendeiro avisar-lhe que não iam trabalhar. Eu lhe disse que sim, mas que estávamos em guerra contra os fazendeiros e que precisávamos de dinheiro, armas, relógios, rádios, que íamos levar tudo isso. E ele me disse: “Companheiro, por favor não faça isso. Vão nos chamar de ladrões…” Eu lhe contestei: “Mas estamos em guerra!” E me respondeu: “Mas aqui mandamos nós!” E então prontamente acatei sua ordem. “O que estás ordenando é o que vou fazer, pois nesse território mandam vocês”. Isso para mim passou a ser uma regra: não é por estarmos armados que vamos impor, os donos do território eram eles.

Mesmo que nos tenham prendido, os guardas já não cometiam atropelos porque após muitos conflitos achavam que novos grupos de autodefesa poderiam sair de qualquer parte. Inclusive, assustados com a situação, dois fazendeiros pediam ao governo que fizessem a reforma agrária em suas fazendas, dessa forma ainda ficavam com uma parte da terra. Então, os funcionários do governo iam aonde estavam os dirigentes camponeses dizendo: “Estamos vindo entregar-lhes as terras por ordem do governo”. E eles lhes respondiam: “Aqui não precisamos da lei de reforma agrária do governo, aqui se faz a lei de reforma agrária do camponês! Que nem um palmo fica para o fazendeiro e nem lhes damos nenhum centavo!” E assim foi.

Isso é importante porque alguns dizem que era a reforma agrária de Hugo Blanco. Mas eu estava preso! Sempre tivemos a clareza de que quem fez a reforma agrária foi a coletividade de La Convención.

M – E o julgamento? Se tornou um momento histórico!

Sim. Eu deveria estar preso em Cusco, mas me mandaram a Arequipa. E me mantinham incomunicável, qualquer mensagem que mandasse tinha que ter o carimbo da polícia, só podiam me visitar os parentes mais próximos. E, quando me visitavam, havia um sargento escutando. Minha, mãe fazendo muito sacrifício, foi me visitar. Como o castelhano é menos afetivo que o quechua, eu quis dizer à minha mãe, em quechua, o quanto a amava. E o sargento que não falava o idioma, interrompia: “Falem em castelhano!” Não podia dizer à minha mãe em meu idioma o quanto a amava.

Veio comunicar-me um enviado do Tribunal que iam fazer a audiência: “Você está entre a pena de morte e os 25 anos de prisão, mas há uma forma de te salvares”. Qual? “Você se declara doente, e nós o deportamos ao país que você escolha”. Não, muito obrigado estou com a saúde perfeita, respondi. Eu queria ir à audiência, pois aí poderia denunciar publicamente o papel do latifúndio e da polícia. Bom, me levaram a Tacna e lá fizeram a propaganda que estariam em julgamento os “criminosos” e me haviam separado dos meus companheiros. Eu lhes dizia: “Para vocês é fácil sair. Digam que são camponeses e analfabetos e o comunista Hugo Blanco os enganou. Digam isso e imediatamente estão livres”. Eles se negaram a fazer isso.

A sede da guarda civil se encheu de gente que queria ver os “criminosos”. Quando entro na audiência, vejo os meus companheiros depois de três anos. Então gritei: “Terra ou morte!” e me responderam “Venceremos!” Um capitão tocou a campainha e deu início à audiência. Aproveitei que estava cheio de gente e disse: “Nesta sala, os únicos criminosos são os que estão nos julgando!” E, além do mais, são covardes, pois não têm coragem de nos enfrentar. Mandam a “chorizos” como vocês para que nos matemos entre “chorizos”. E ainda quando algum de vocês sobrevive, esses valentes de escritório cometem a sem-vergonhice de acusar vocês por covardia [risos]. E os guardas se sentiram representados, pois quando saiu o capitão me diziam: “Grita mais, hermanito!”, diga de novo “terra ou morte” para que a gente escute. E o Tribunal retrucava: “Aqui não viemos discutir política, estamos aqui para julgar fatos concretos!”

Então o general que aí estava defendeu a pena de morte para mim. E ele tem a obrigação de permitir uma última declaração: “Algo mais a declarar? Mas, por favor, não repita mais dos abusos dos fazendeiros e dos abusos policiais que já escutamos suficientemente”. Respondi: Está bem, não vou falar mais disso. “Tem algo mais a declarar?” Sim, se as mudanças sociais que conquistamos em La Convención merecem pena de morte, que assim seja, mas que seja este [o general] que dispare! Que não manche com meu sangue as mãos dos guardas civis ou dos guardas republicanos porque eles são filhos do povo e, portanto, meus irmãos! E a última vez que gritei “Terra ou Morte!” todo o público respondeu “Venceremos!”

No outro dia, era dia de visita e tinha duas quadras de gente, eu tinha que abraçar a todos. Um senhor se aproximou e tirou seu casaco de couro preto, que uso nas fotos aquelas que ficaram conhecidas, deu a meu advogado e disse: “Dê isso a Hugo Blanco para que use, mas, por favor, lhe diga que se deixe matar, mas que não traia”. Meus companheiros de cela mandaram uma carta para o fiscal do Tribunal Superior que estava pedindo minha pena de morte, rogando-lhe que se o que havia feito era um delito, então não havia cometido somente eu, que lhes sentenciassem a todos com pena de morte. Eu mandei uma carta para meus companheiros e meus parentes dizendo-lhes, por favor, que se acaso ocorresse de me condenarem à pena de morte que ninguém se humilhasse pedindo piedade ao presidente – o presidente tinha a faculdade de indultar. Em uma palestra no Vietnã contra a pena de morte, li essa carta. E também a resposta: “Em nome da família, declaramos que estamos de acordo com Hugo Blanco. Não vamos pedir indulto”. Houve uma campanha, Jean-Paul Sartre encabeçou um encontro em Paris… Amenizaram a pena para 25 anos.

M – E depois no governo Velasco, houve uma reforma agrária, não?

A luta de La Conveción se espalhou por muitas partes, ocuparam terras, etc., e a burguesia industrial temia que a rebelião do campo se estendesse à cidade. Além do mais para eles era conveniente que o camponês fosse dono da terra e participasse como comprador e vendedor no mercado interno, não? Estavam contra esse latifúndio de tipo feudal, então eles impulsionaram o golpe de Velasco.

Nessa época, foi me visitar uma dirigente do partido comunista que me perguntou: “Tu estás condenado a 25 anos de prisão não é?” Sim, lhe disse. “Já estás preso há um bom tempo, te faltam 18 anos… Se tu quiseres sai amanhã mesmo”. Como assim? Se te comprometes a trabalhar na reforma agrária de Velasco, não te negues a discutir política, não seja sectário… Não te preocupes estou acostumado a viver na prisão. Eu lhe disse: Uma coisa é ser eleito pelo povo, como prefeito, como vereador… Eleito tu podes dizer o que pensas. Outra coisa é estar a serviço de um governo e ter que dizer que está tudo bem. Às ordens de quem? Eu era da Confederação Camponesa do Peru (CCP) e a Confederação não quis ajoelhar-se para Velasco. Por isso, ele formou a Confederação Nacional Agrária. Outros dois presos políticos foram e me pressionavam. Acabaram por me convencer a trabalhar na reforma agrária, mas com uma condição de que não fosse a reforma agrária que eu queria, ou a que dissesse o governo, mas que se consultasse a cada setor camponês como queria. Santo remédio! Pedir a um governo militar que seja democrático! Me proibiriam de sair de Lima e depois me deportaram… ao México.

Hoje quando me perguntam qual foi o melhor governo do Peru, respondo que o menos pior foi o que me deportou. Porque além de ter feito a reforma agrária (à sua maneira, claro), nacionalizou a mineração, a pesca, o petróleo, nacionalizou os bancos! Coisas que nem os governos do “socialismo do século XXI” fizeram. Por isso, frente aos ataques da direita eu o defendo. Mas claro que quando uma nacionalização não é vigiada pelos debaixo, serve para enriquecer os burocratas e passa a mandar os seus bolsos.

M – Como dizias, te deportaram ao México… foram muitas deportações não?

Me deportaram ao México, de lá fui à Argentina, mas lá me prenderam. Disseram: “Vamos te liberar se encontrares um país que te receba”. O Chile de Allende se dispôs a receber-me. Lá trabalhei nos cordões industriais, editava o jornal El Cordonazo no cinturão industrial de Vikuña Mackenna. Nessa época, a sessão sueca da Anistia Internacional me elegeu o preso do ano. Em seus estatutos diziam que não apoiavam ninguém da luta armada, mas meu caso era de autodefesa. Então, antes do golpe no Chile foi uma comissão da Anistia Internacional ao país e me disse que qualquer coisa que acontecesse naquele país eu fosse à Embaixada Sueca. Tinha que falar com o Embaixador, mas pela militância não me sobrava tempo e não fui.

Quando deram o golpe, fui viver em outra casa onde não havia políticos nem nada. Afortunadamente, um companheiro sueco que militava conosco me ligou: “Em que posso servi-lo?” Respondi: “Pede o asilo na tua embaixada”. Ele ligou e disseram que não davam asilo a peruanos. “Mas se trata de Hugo Blanco”. “Ah! Ele sim”. O embaixador foi dirigindo seu próprio carro e me levou à Embaixada. Era caótico, pois haviam queimado o arquivo e buscavam os estrangeiros que tinham trabalhado com Allende (como eu estava à esquerda de Allende, não trabalhei com ele). Mas, como não havia tratado de asilo com a Suécia, teríamos que ir a uma Embaixada latino-americana e estavam todas controladas pela polícia. O México se ofereceu, mas já estava cheia e tivemos que ir à casa do Embaixador sueco. Ele me disse que tirasse a barba, colocasse óculos e colocasse o terno do seu irmão e gravata preta. Tiraram uma foto e… Hans Blum, conselheiro da Embaixada Sueca. Como não sabiam quem era quem, disseram que os estrangeiros saíssem e os chilenos ficassem. Nos acompanharam cinco embaixadores em seus carros até a porta do avião, pois a muitos capturaram depois de passar pelo controle entre o aeroporto e o avião.

Depois de três dias que estava no México, chegou a notícia: “Procura-se Hugo Blanco. Há informações de que está nos Andes organizando guerrilhas com Altamirano. O MIR chileno [Movimiento de la Izquierda Revolucionaria] ajudou-o a escapar”. Fui à Argentina, como tínhamos companheiros do partido, e novamente me capturaram. O pretexto que colocaram era permanência ilegal, mas eu estava mais legal que qualquer um, paguei por um visto de três meses. Foi a pior prisão em que já estive, aquela na Argentina.

Antes de chegar à Suécia em 1973, fiz um giro pela Europa Ocidental e Canadá (EUA não, claro), denunciando o golpe no Chile a convite da Anistia Internacional. Depois consegui ir aos EUA…

Nesta época, tínhamos um partido muito bom nos EUA! Depois se foram à merda, capitularam frente a Castro, Cuba e tudo isso. Como estava se dissolvendo a Guerra Fria, houve o acordo na Finlândia entre a URSS e os EUA. Queriam levar aos EUA o russo que escreveu “Arquipélago Gulag”, ou seja contra a burocracia soviética, não? Um russo, não lembro seu nome2, mas o governo norte-americano queria ele fosse aos EUA, então colocaram uma cláusula no acordo dizendo que o escritor cujo livro fosse publicado em outro país, poderia visitar EUA se fosse convidado pela editora para discutir o tema.

Antes dele, aproveitamos nós! [risos] Como os norte-americanos tinham publicado “Terra ou Morte”3, me convidaram e, como recém haviam assinado o acordo, não poderiam dizer não. Estava como presidente James Carter, que enchia boca para falar de direitos humanos. Colocamos o nome “Carter e os Direitos Humanos na América Latina”, ou seja, Pinochet, ditaduras, etc. Tiveram que me aguentar dando esta palestra em 48 cidades dos EUA!

M – Voltas ao Peru nas eleições de 1977 como candidato?

Regressei ao Peru nas eleições para a Assembleia Constituinte [em julho de 1977]. Meus companheiros me inscreveram4 e, após uma grande greve geral, deixaram os exilados regressarem. Eles tiveram que me deixar regressar. Foi aí que fui a Tacna e lá tive maior votação que em Cusco! Pois lá havia sido a audiência. Por demagogia, permitiram que houvesse espaços gratuitos para fazer propaganda política. Me tocou este espaço justo quando houve um “paquetazo” [subiram os preços dos artigos de primeira necessidade de forma autoritária]. A CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Peruanos] havia chamado uma paralisação de dois dias em protesto. Nessas condições, eu fui à TV fazer propaganda política.

Então falei: Companheiros, acabamos de sofrer um terrível “paquetazo”. O que vão fazer contra isso? Votar em mim? Não! Isso não vai mudar pela via eleitoral. Isso muda com luta social! A CGTP está chamando uma paralisação. É obrigação de todos nós estarmos aí. Já sabem, votem por qualquer um, mas todos como um só punho na paralisação!

Bom, como o espaço era para propaganda eleitoral e não agitação da paralisação, em poucas horas me prenderam de novo, junto com outros militantes, nos colocaram em um avião rumo à base antissubversiva de Jujuy (Argentina). Era parte da operação Condor. Eles iriam tornar-nos desaparecidos. Quando descemos do avião, um general disse: “Vocês são prisioneiros de guerra!”

Para nossa sorte, um fotógrafo tirou fotografias do avião peruano na base antissubversiva da Argentina e publicou. E, como ia ser a Copa do Mundo de futebol na Argentina, já não era conveniente a eles que desaparecêssemos. Eu disse a eles: não piso em solo argentino. Por quê? Porque sabia que se saísse do avião me esperava uma banda paramilitar e me desapareciam, não? Como não tinha passaporte, pois não me disseram que viesse com ele, exigi que fôssemos ao Consul Peruano. De lá fui à Suécia. Até hoje tenho residência na Suécia…

Ah! Mas como disse que votasse em qualquer um, o povo votou em mim. Fui eleito o mais votado [risos de todos].

M – Nos anos 1980 fostes deputado pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Como foi tua experiência? Ficaste muito tempo aí.

Foi muito ruim. Deixam entrar a esquerda, mas enquanto minoria. Deixam-nos falar o quanto quisermos, mas na hora da votação, ganham as transnacionais… e a imprensa não publica nada. De mim, publicavam que amarrava as calças com um cadarço, que usava sandálias, que não tomava banho… só isso.

Me suspenderam uma vez. Porque um juiz, acho que chefe de Tribunal, não sei o que…, tinha pedido que o governo falasse com o Sendero Luminoso – que estava começando, ainda não tinha feito as barbaridades que fez depois – e os parlamentares já o tratavam como senderista. E eu dizia: não precisa ser senderista para propor que se converse. Precisamente com nossos inimigos temos que conversar. Por exemplo, eu não tenho nada contra conversar com criminosos, com assassinos como Pinochet, como Hitler ou o General Noel. Ele era o chefe da polícia de Ayacucho e era um parlamentar da direita.

– “Que retire sua ofensa ao General Noel!”

– Sim, retiro minhas palavras, porque Noel não é assassino, é um genocida! [gargalhadas]

Suspenderam a sessão e me chamaram no outro dia. Insistiram que retirasse minhas palavras. Eu respondi:

– Em nome de todos os jornalistas assassinados em Uchuraccay, em nome de todos os camponeses mortos: Noel é assassino… e é genocida.

– “Suspenso por 120 dias! Disseram eles”.

Muitos anos depois, quando caiu Fujimori e renunciou por fax, foi nomeada a Comissão da Verdade que provou que ele não só era um assassino, como tinha fornos crematórios e que havia matado muitos. O Tribunal o sentenciou, ele fugiu e veio morrer em Lima. Por isso sigo pedindo indenização, que me paguem os 120 dias, porque eram a mais pura verdade minhas palavras. Obviamente era assassino. Mas não creio que vão me pagar.

M – Depois de voltar, já nos anos 90, foste Senador…

Sim, mas como lhes disse, quando menos servi foi quando estive aí. Claro, eu acompanhava as mobilizações. Aqui havia muitas e os guardas se especializaram em me bater na cabeça. Eles me separaram o crânio do cérebro e quando estamos velhos o cérebro diminui e as veias superficiais fazem a ponte, por isso um pequeno golpe me rompeu uma destas veias e tiveram que operar-me. O cirurgião me disse que de agora em diante teria que usar chapéu, porque é a mesma doença que tem os boxeadores quando estão velhos. “Tu não és boxeador, mas agitador. Para esse caso, dá no mesmo não?” [risos]. Por isso, uso chapéu. Desde quando era deputado faziam isso comigo. Me separavam dos outros parlamentares de esquerda e diziam “mataguradias de mierda!” e me batiam na cabeça.

Em meu livro conto a cirurgia, quando disse aos médicos que não me introjetassem o neoliberalismo e Galeano me dizia que isso não ia acontecer, mas que o medo que tinha é que eu acordasse “cuerdo” [em plenas faculdades mentais], mas que a cirurgia tinha se saído muito bem, pois seguia o mesmo louco de sempre [risos].

M – Uma última pergunta: Como vês a situação política, não só no Peru, mas no mundo? Que mensagem deixarias aos jovens que começam a militar por um mundo novo?

Eu acho que o sistema capitalista está em crise. Uma mostra é o governo de Trump. Outra mostra é o caso da Odebrecht. Outra mostra é o Brexit. E outra mostra são os zapatistas e outros expressões da luta dos de baixo.

Os povos indígenas são cada vez mais respeitados. Por quê? Dizem que somos primitivos, verdadeiramente somos, porque na sociedade em suas origens mandava a coletividade, não o indivíduo. Além do mais outra característica dos “primitivos” é que havia grande solidariedade e também grande amor e respeito pela natureza. Esta é uma característica dos povos indígenas do mundo, não somente daqui. Por exemplo, na África do Sul, um antropólogo colocou doces e frutas no pé de uma árvore e disse às crianças para correrem e o primeiro que chegasse à arvore ficaria com todas as frutas e todos os doces. As crianças se deram as mãos, correram juntas e todas comeram. [O professor perguntou:] “Mas por que fizeram isso? Se o primeiro que chegasse ficava com tudo?” Eles lhe responderam: “Se um de nós ficasse sem doces e sem frutas, sofreríamos todos”.

Esse princípio eles chamam de Ubuntu, é um princípio indígena. Os povos indígenas estão em ascenso, pois o neoliberalismo ataca de forma tão feroz a natureza e os povos indígenas têm esse princípio de defesa da natureza. Os próprios ecologistas estão dando mais importância aos povos indígenas.

Justamente no editorial deste número do jornal que estou trabalhando e vai sair agora, eu falo da corrupção. Que a corrupção é própria do sistema. E que a única forma de evitar a corrupção vai ser quando toda a gente mande, não o indivíduo. Há dois exemplos que vou mencionar: o primeiro são os zapatistas, o outro é no município de Limatambo em Cusco. Onde os camponeses da Federação disseram: “Bom, se nós somos maioria, porque vão ser os fazendeiros os que vão ser prefeitos? Vamos nomear um dos nossos. Não para que mande ele, mas sim para que mande a assembleia”. Então, em votação secreta elegeram. Muitas vezes, as coisas são feitas contra a vontade do prefeito, que tem um voto como qualquer um dos eleitores. Os vizinhos do povoado resolveram também mandar delegados e então se tornou uma assembleia comunal e dos vizinhos. Se reúne a cada três meses. E o município tem que prestar contas do que todos decidem. Foi maravilhoso porque nenhuma comunidade ficou sem água, sem estradas, havia banheiros públicos que não existem nem na capital do departamento, uma linda piscina pública, uma casa onde dormiam os estudantes que vêm de longe, prestações de contas das obras públicas nos locais da prefeitura. Manda a coletividade, e não o indivíduo, este é o princípio.

Não estou seguro da vitória. Há muitos ataques do neoliberalismo à natureza, como a mineração aberta, a agroindústria, entre outras, mas a pior ameaça eu acho que é o aquecimento global. Se segue governando o grande capital, vai desaparecer a humanidade – incluindo os capitalistas, mas toda a humanidade. Os dois maiores aquecedores do mundo, China e Estados Unidos, não querem pará-lo. Podem extinguir a espécie humana.

M – Quiçá não, quiçá venceremos.

Claro! É preciso lutar para que não o façam. Por isso eu digo que antes a minha aspiração era a igualdade social. Hoje há um motivo mais importante que é a sobrevivência de minha espécie.


1 Las diez vidas de Hugo Blanco, Martín Cuneo, Ediciones Lucha Indígena, octubre de 2016.
2 Alexander Issaiévich Soljenítsin.
3 BLANCO, Hugo. Terra ou morte. São Paulo: Versus, 1979. A edição norte-americana a que Hugo se refere é Land or death: the peasant struggle in Perú. New York, Pathfinder Press, 1972.
4 Hugo Blanco foi candidato à Assembleia Constituinte pela Frente Obrero Campesina Estudiantil y Popular (FOCEP) integrada pelo Partido Socialista de los Trabajadores (PST) do qual era dirigente.


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Pedro Micussi