Esperanças vendidas: corrupção, cooptação e capitalismo na América Latina

A realidade do que permitiu a expansão de empresas brasileiras na América Latina, financiadas pelo Estado e em estreita proximidade com os governos da região tem sido desnudada pela Operação Lava Jato.

Bernardo Corrêa 3 jul 2017, 20:37

O megaescândalo de corrupção revelado pela Operação Lava Jato no Brasil, tem repercussões políticas de alcance internacional. Apesar de ter como epicentro aquele país, em três anos, a Operação chegou a 37 países com 159 acordos de cooperação jurídica internacional para troca de provas de corrupção e lavagem de dinheiro pelo mundo. De acordo com a investigação da equipe de jornalistas do portal peruano Convoca, a Operação envolve mais de 10 países na América Latina e mais de 70 agentes públicos, dentre os quais seis presidentes e ex-presidentes.

O processo tem revelado um verdadeiro conluio público-privado sem distinção entre governos da velha esquerda e da direita de sempre. Sem embargo, alguns setores desta esquerda lato sensu (especialmente ligados ao Partido dos Trabalhadores brasileiro) reclamam de seletividade nas investigações. Seus defensores denunciam a Operação como uma “conspiração imperialista” que teria o objetivo de quebrar a indústria “nacional” do agronegócio e da construção civil brasileira para impor uma implacável ofensiva conservadora sobre toda esquerda latino-americana.

Os governos supostamente “progressistas” da região estão implicados por seus próprios erros, mas o envolvimento nas investigações de governos ligados à direita latino-americana (p.ex.: Toledo e Alan García no Peru, Santos na Colômbia, Calderón no México, entre outros); a prisão de figuras como Cunha e Cabral do PMDB brasileiro; e a recente abertura de investigação sobre o ilegítimo presidente Temer e Aécio Neves, candidato da oposição de direita ao governo de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, tornam, cada vez mais, este argumento uma espécie de malabarismo político. Malabarismo que termina por secundarizar a luta contra a corrupção, como se dissesse respeito apenas a desvios de conduta individuais e não fosse parte da agenda da esquerda desde sempre.

Um olhar mais global sobre o fenômeno pode nos ajudar a compreender como as intersecções de interesses políticos e econômicos foram funcionais à expansão das empresas transnacionais de capital originado no Brasil. Como veremos, a corrupção mediou esta expansão, justificada pelo discurso da integração regional. Além de mercadorias e serviços, este modelo de desenvolvimento exportou também o método como historicamente operaram as empresas familiares do crony capitalism brasileiro. Propina, favorecimento do Estado, corrupção, sempre acompanharam o crescimento destes monopólios, a novidade é que foram agenciados por um governo que se elegeu com a promessa de romper com isso.

Frustrando esperanças, Lula da Silva utilizou de seu prestígio como liderança, para os propósitos de expansão do capital monopolista com sede no Brasil por sobre países mais pobres da América Latina, influenciando no abandono de uma plataforma antissistêmica dos governos “progressistas”.

Buscaremos neste artigo partir do geral ao específico. Primeiramente, compreender as relações estruturais entre a corrupção, a cooptação e o capitalismo, enquadrando analiticamente estas categorias como instrumentos de mediação da acumulação e da dominação política do capital. Em segundo lugar, delimitar o contexto de emergência dos governos “progressistas” e os fatores estruturais e políticos que propiciaram a(s) captura(s) de seu programa pelos interesses corporativos. Por fim, reconstituir a captura de novos mercados por parte dos monopólios com sede no Brasil. Com vultoso financiamento público, tais grupos consolidaram um padrão de acumulação que foi a base objetiva para a cooptação dos projetos de mudança.

Corrupção, cooptação e capitalismo: são necessários dois para se dançar um tango

O capitalismo não é apenas um modo de produção de mercadorias e lucros. É ao mesmo tempo acumulação e dominação política. Para ser efetiva, a dominação necessita legitimar-se por meio da construção de consentimentos, evitando o uso da força em momentos desfavoráveis. Para garanti-la, corromper e cooptar constituem-se como importantes mediações do sistema, nas quais o Estado é agente preponderante. De acordo com Gramsci:

Entre o consenso e a força está a corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício da função hegemônica, apresentando o exercício da força excessivos perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisia do antagonista ou dos antagonistas causada pela absorção dos seus dirigentes, tanto em forma encoberta como aberta (…)1

O poder, como se sabe, não é apenas uma resultante de opiniões. Para que passe do verbo à carne, precisa de agentes que se movam na defesa de um conjunto de interesses, sejam quais forem, mais ou menos nobres. A mal chamada realpolitik nada mais é do que a operação de interesses privados em nome de supostas necessidades impreteríveis.

Esta narrativa de interesses particulares convertidos em necessidade imperiosa para o bem de todos, é o que legitima o “comitê executivo dos negócios da burguesia”, como qualificaram Marx e Engels o Estado Burguês. A corrupção, o roubo e a fraude acompanharam o desenvolvimento do capitalismo desde seus primórdios, com a chamada acumulação originária, entretanto, o desenvolvimento dos setores de classe, das organizações operárias, seus sindicatos, seus partidos, exigiram novas mediações das classes dominantes para que mantivessem sua dominação sem recorrer à coerção em situações em que se torna mais difícil o “exercício da função hegemônica”. Segundo González (2007):

As grandes lutas dos trabalhadores organizados conduziram a processos de negociação e conciliação arbitrada, ou concertada, que midiatizaram a “luta de classe contra classe” em amplos espaços sociais. A corrupção e a cooptação, junto com a negociação, acompanharam essas mudanças estruturais até tornar impossível analisar a luta concreta de classes sem sua inclusão2.

Tais mediações vão muito além do recrutamento de dirigentes das trincheiras opostas. Elas formam parte de um processo de reestruturação da luta de classes, de efeitos macroeconômicos maiores do que aparentam.

Pela condição dependente da economia latino-americana, a formação de novos capitais passa necessariamente pela “colaboração” público-privada. Uma parte da demanda é externa, efetivada em meio a trocas desiguais pela exportação de matérias-primas, mas uma parte importante é assumida pelo Estado. Com alto índice de endividamento público, ele se torna criador de mercados e indutor de investimentos. De acordo com Marini (1973), uma das características da nossa dependência é que vivemos sob condições de superexploração do trabalho, ou seja, de remuneração menor que seu custo de reprodução. Logo, vivemos uma permanente compressão do consumo dos assalariados e o típico problema da realização acompanha o desenvolvimento de nossas economias.

Então, para aquecer sazonalmente o consumo dos de baixo, além do crédito bancário com altas taxas de juros às custas do endividamento das famílias, as burguesias locais especializaram-se em “construir pirâmides e cavar buracos” financiadas pelo investimento estatal, conforme a receita de Keynes para aumentar o emprego e a renda. Esta situação, que em maior ou menor grau é comum ao conjunto dos países do continente, tem efeitos que reproduzem a condição dependente e dá ao Estado um papel central na propensão ao investimento dos capitalistas. Países com mais capital acumulado, como Chile, Argentina e Brasil, além de absorver uma parte da demanda interna, via Estado indutor, também absorvem a demanda de outros países com menos capital acumulado, exportando mercadorias de consumo básicas e serviços de infra-estrutura, extração mineral e obras públicas.

Com a integração de nosso continente à financeirização mundializada e a gerentização do mercado de capitais, uma maior concentração de capitais e renda também trouxe uma presença mais marcante do que Bukhárin qualificou como “psicologia do rentista”. Com suas motivações individualistas, imediatistas e indiferentes à esfera produtiva, esta ética também favorece à prática da corrupção. A camada de gestores do capital financeiro, que absorve inclusive setores da burocracia sindical, projeta sobre as instituições que dirige (especialmente sobre o Estado) a feição utilitarista que marca o neoliberalismo como modelo.

O próprio neoliberalismo favorece relações promíscuas entre o público e o privado. O faz ideologicamente pela negativação do serviço público, mas também com as privatizações e Parcerias Público-Privadas, que garantem uma maior concentração do poder fático das empresas. Os governos que traíram as esperanças de mudança herdaram estas características do ciclo anterior e ainda que possam parecer vítimas de seus aliados, o fato é que a partir das posições que galgaram no aparelho de Estado, seus dirigentes passaram a formar parte orgânica da expansão dos negócios dos de cima, aplicando objetivamente um programa em comum que não obstante apresentasse algumas concessões, conservava os traços essenciais do modelo. Num ciclo econômico expansivo estas direções receberam como prêmio à sua capitulação vultosos financiamentos de campanha eleitoral e acesso aos salões da elite, muitas vezes, passando a compô-la como parte de uma casta política.

A captura dos governos: da longa noite neoliberal ao ocaso da alternativa

O advento de governos provindos da contestação ao neoliberalismo na América Latina só pode ser plenamente entendido se nos reportarmos ao cenário de crise deste modelo que os precedeu, especialmente a partir da segunda metade dos anos 90 e início dos anos 2000.

O primeiro elo frágil da cadeia neoliberal rompeu-se na Venezuela com o Caracazo em 1989 que deu início ao longo processo revolucionário que explica o fenômeno chavista. Da Selva Lacandona no México em 1994, veio o grito de guerra contra o neoliberalismo, quando os zapatistas tomaram Chiapas. O “efeito tequila” da crise econômica mexicana no mesmo ano começava a demonstrar a falência dos pacotes do FMI e da dolarização forçada das economias, à custa uma intensa agenda de privatizações.

No Peru a Marcha de los Cuatro Suyos no ano 2000 derrubou o último ditador do Continente, Alberto Fujimori, responsável pela implementação à força do neoliberalismo no país. No mesmo ano, Bolívia e Equador passam por insurreições populares e indígenas em defesa dos recursos naturais e contra os pacotes que engendraram os processos de luta de mais longo prazo que explicam o surgimento de Evo Morales e Rafael Corrêa.

Os ventos da batalha de Seattle em 1999 impulsionaram o primeiro Fórum Social Mundial em 2001 e o Argentinazo nos últimos dias do ano demonstrou que o projeto do FMI para a América Latina já não poderia seguir. Numa tentativa desesperada de manter a hegemonia à força, a direita venezuelana tentou um golpe em 2002, mas o contragolpe popular que reconduziu Chávez à presidência na Venezuela chancelou a virada.

Este período que marcou o início dos anos 2000 foi de verdadeiros processos democrático-revolucionários da luta espontânea de massas. Foram estas rebeliões populares que produziram a possibilidade de governos pós-crise neoliberal que quanto mais empurrados pela luta de classes, mais profundos foram os processos que produziram.

Tal mudança também se expressou nas urnas em países que sofreram os efeitos da crise, mas não tiveram um ascenso das lutas correspondente aos períodos eleitorais. Refletiram jornadas anteriores, uma acumulação histórica da esquerda, mas não tiveram a pressão das lutas imediatamente sobre sua política. Sem esta combinação, a acumulação foi essencialmente no terreno eleitoral e este é sempre mais distorcido. Os tempos sociais e políticos nem sempre são correspondentes e, menos ainda, os tempos políticos e eleitorais em eleições controladas pelo poder econômico. Até que movimentos de contestação construam e encontrem suas representações políticas, muitas experiências, provas e decepções são necessárias. A passagem da negação à afirmação é um contraditório e, às vezes demorado, caminho de aprendizado. A depender da firmeza das direções e do controle de suas bases, pode desviar-se de seus objetivos iniciais sob o assédio do poder dos de cima.

Lula da Silva foi a principal expressão do ascenso das lutas operárias brasileiras dos anos 80, e se tornou um dos principais líderes da esquerda latino-americana, mas venceu as eleições em 2002, após três tentativas frustradas. O partido que construiu e seus dirigentes atravessaram a longa noite neoliberal dos anos 90, fizeram parte de governos locais, acumularam força parlamentar. Boa parte deles, os que passaram a dirigir o PT, tiraram conclusões de que seria necessário moderar o discurso e aliar-se com setores empresariais para chegar ao governo. Antes mesmo de vencer as eleições Lula assinou a “Carta aos Brasileiros”, que ficou conhecida posteriormente como “carta aos mercados”. O documento trazia uma promessa de manter os pilares do modelo liberal-periférico.

O sinal de moderação após o sucesso eleitoral de Lula reverberou. Dois anos após, no Uruguai Tabaré Vasquez reivindicava o perfil “paz e amor” apresentado pelo PT brasileiro. Néstor Kirchner, apoiado por Lula que o anunciou como modelo “progressista”, chega em 2003 à presidência na Argentina e Michelle Bachelet no Chile em 2005 com o mesmo perfil de “concertação”. Daniel Ortega voltou a ser presidente da Nicarágua em 2006 falando em “reconciliação nacional” e, em 2008, Fernando Lugo chegou à presidência do Paraguai prometendo combate à corrupção, reforma agrária e a revisão do tratado da hidrelétrica de Itaipu, contraditoriamente, falando em “conciliação”. Como parte do processo bolivariano, porém tardio, em 2011, é eleito Ollanta Humala no Peru com um programa nacionalista de controle sobre os recursos naturais, mas rapidamente é capturado pela onda moderada e os interesses extrativistas.

Além dos governos neoliberais e reacionários (como Álvaro Uribe na Colômbia, por exemplo), constituíram-se então dois tipos de governos, empurrados pela crise do neoliberalismo nos anos 90:

  1. governos nacionalistas independentes (constituintes): capitaneados pela Venezuela, com Hugo Chávez, que inclui Bolívia com Evo Morales e Equador com Rafael Correa nos quais houve maior condensação entre as lutas de rua e os palácios, levando a modificações no regime político. Tiveram uma postura independente do imperialismo e se enfrentaram com ele, buscaram maior integração econômica e política entre os latino-americanos e chegaram a nacionalizar recursos estratégicos como o gás, o petróleo e as comunicações. Foram diretamente influenciados por amplos movimentos sociais, lutas intensas, golpes e contragolpes antes e durante seus mandatos. Por outro lado, além de se enfrentarem com as dificuldades em implantar a estratégia de integração latino-americana, não lograram construir as bases para relações não capitalistas ou transicionais no terreno da produção, tornando-se reféns de setores burgueses e burocráticos mais ou menos associados.
  2.  governos social-liberais: bloco capitaneado pelo Brasil, no qual, como dizia Perón a relação com o poder foi como o violino: “pego com a esquerda e tocado com a direita”. Em tais países não houve rupturas com o modelo liberal-periférico, aprofundou-se as relações promíscuas entre as grandes empresas nacionais e transnacionais, não houve mudanças de regime e o sinal para os movimentos sociais foi de contenção apostando todas as fichas na conciliação de classes. Em alguns casos concederam ao movimento de massas sob a forma de políticas sociais focalizadas ou no terreno democrático (como a abertura dos arquivos da ditadura na Argentina ou a legalização do aborto e da maconha no Uruguai), mas essencialmente sem enfrentar os grandes interesses empresariais, seja dos banqueiros, da grande mineração, do agronegócio ou da construção civil.

Estabeleceu-se uma disputa, ainda que mediada por iniciativas comuns, entre estes dois modelos. Se por um lado os bolivarianos propalavam a necessidade de integração continental por meio de iniciativas como o Banco do Sul, a ALBA, a Petroaméricas, a TeleSur, entre outras que ficaram pelo caminho, por outro, os social-liberais propunham uma aliança comercial por meio do Mercosul e da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que condensaram-se na UNASUR.

O caso peruano é dramaticamente revelador desta disputa. A burguesia brasileira há anos atua em diversos ramos da economia peruana. A Odebrecht, por exemplo, está no país desde 1979. Na mineração, onde se encontra maior densidade no Produto Interno Nacional, empresas como Votorantim Metais (que hoje controla mais de 60% da produção de zinco no Peru), Gerdau e Vale do Rio Doce entraram com tudo com o aval da diplomacia e do governo brasileiros. De acordo com Mathias Luce (2007), correspondências entre diplomatas brasileiros revelavam preocupação dos empresários brasileiros com a vitória de Ollanta Humala por seu programa nacionalista.

Frente a tal ameaça não tardou para que o PT e a própria Odebrecht agissem conjuntamente para cooptar Humala e garantir que o mesmo traísse o programa para o qual foi eleito. O envio de Luis Favre para “moderar” a campanha eleitoral e depois o fato de ter sido o principal assessor do então presidente já fala muito sobre as intenções políticas, mas a delação de Jorge Barata, principal representante dos negócios da empreiteira no Peru, indica que a pedido de Lula a Odebrecht teria repassado 3 milhões de dólares à ex-primeira dama Nadine Heredia em caixa dois para a campanha do marido, intermediados pelo ex-ministro Antonio Palocci do PT. De fato, o programa de Ollanta foi traído de cabo a rabo frustrando as esperanças de milhões de peruanos que acreditaram que Partido Nacionalista iria colocar os interesses do país a frente dos interesses privados.

A via social-liberal apresentava como projeto o estabelecimento de um mercado de exportação privilegiado com a China, deslocando o comércio internacional do eixo norte-sul para um eixo sul-sul, no qual incluíam-se os países “emergentes” dos chamados BRICS (além do Brasil, Índia, Rússia, China e África do Sul). De acordo com Svampa:

(…) para alguns, a relação com a China adquire um sentido político-estratégico, de cooperação Sul-Sul. No entanto, o intercâmbio com a China é claramente assimétrico: enquanto 84% das exportações dos países latino-americanos com a China são commodities, 63,4% das exportações chinesas à região são manufaturas. Esta assimetria foi se traduzindo num processo de reprimarização das economias latino-americanas, visível na reorientação para atividades primário-extrativas com escassa geração de valor agregado3.

Além da reprimarização da economia regional e o crescimento do extrativismo provenientes da necessidade de aumento das exportações para cobrir o déficit comercial, esta política econômica potencializou a concorrência entre os países da região como exportadores de commodities buscando uma relação privilegiada com a China. Ao contrário do propósito de integração, um novo mercado de trocas desiguais, pareceu marcar a emergência de novas relações de dependência. Tal indício se fortalece quando observamos que a decisão chinesa de diminuir o volume de importações afetou enormemente a balança comercial dos países aqui analisados. Em situações cada vez mais difíceis, a “lulização” dos governos pós-neoliberais se consolidou como tendência. Como alertava, em 2014, Pablo Stefanoni em um artigo no LeMonde Diplomatique:

O pós-neoliberalismo tende a uniformizar-se numa via menos antissistêmica, com mais ou menos profundidade de acordo com as reformas estruturais que cada governo tem efetuado: por exemplo, Equador e Uruguai avançaram em reformas impositivas ausentes na Argentina. Os acordos de Evo Morales com a burguesia de Santa Cruz podem incluir-se nesta tendência E em qualquer caso, esta deriva lulista reduz os experimentos econômicos “pós-capitalistas” a um espaço marginal4.

Os governos que prometiam um outro modelo e fizeram parte dos esquemas, foram usados pelas frações da classe dominante com as quais se aliaram enquanto foram úteis à contenção das lutas sociais e à criação de consentimentos dos de baixo, promovendo uma distensão da luta de classes em favor do crescimento dos capitais monopolistas. Os capitais se internacionalizaram e deram um salto qualitativo, mas o modelo liberal-dependente, que eles optaram por não romper, não tardaria em reapresentar sua crise.

A captura dos mercados: padrão de acumulação e corrupção for export

A expansão internacional dos capitais brasileiros foi uma política de governo, incrementada por vultosos financiamentos públicos do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Durante o governo Lula, o BNDES aprofundou um padrão de acumulação do capitalismo brasileiro iniciado com as privatizações, baseado essencialmente na formação e fortalecimento de conglomerados privados fomentados com recursos públicos. Os contatos públicos tornaram-se catalisadores para novos negócios de empresas multinacionais brasileiras (GARCIA, 2011).

Encabeçam a lista desta expansão a JBS-Friboi (Agronegócio), a Odebrecht (Construção), Coteminas (Têxtil), a Gerdau (Siderurgia) e outras. A política de internacionalização dos capitais brasileiros ganhou um novo impulso em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula, com a chamada política das campeãs nacionais, que tinha como premissa conceder empréstimos quase a fundo perdido às empresas brasileiras com maior volume de exportação. Além do financiamento, boa parte dos riscos também foram atribuídos ao Estado. De acordo com Garcia (2011):

O financiamento às obras infraestrutura por empresas brasileiras na América do Sul exigiu uma extensão do apoio à exportação para incluir o setor de serviços, e uma flexibilização das operações do Convênio de Crédito Recíproco (CCR), de modo que os contratos fechados com países vizinhos passassem a garantir que os bancos centrais desses também cobrissem os riscos das exportações de bens e serviços para realização das obras5.

Das empresas que são parte do esquema desvelado pela Lava-Jato, as cinco principais empreiteiras brasileiras concentraram 99,4% do valor contratado pelo BNDES no período de 2007-2015 para serviços externos na área de engenharia. O grupo Odebrecht foi o mais beneficiado, com US$ 8,4 bilhões ou 70% do total. Além das obras públicas e da indústria petroquímica, o grupo a partir de 2007 também passou a investir no setor armamentista por meio da Odebrecht Defesa e Tecnologia, que realizou um contrato de 21 bilhões de reais com o Ministério da Defesa, sem licitação, para a construção do submarino nuclear brasileiro até 2023.

A JBS, responsável pela delação que envolveu Temer, abriu seu capital em 2007, permitindo que o BNDESPar – braço do banco estatal que comprava participações em empresas em vias de internacionalização – comprasse 21% da empresa. Em seguida, o Banco concedeu um empréstimo de US$ 80 milhões para a compra de 85% da principal empresa de carne bovina na Argentina, a americana Swift Armour e outro empréstimo para a compra da Swift&Co. e Pilgrim’s Pride Corp nos EUA, o que tornou a JBS-Friboi uma das maiores empresas de alimentos do mundo, perdendo apenas para a Nestlé.

Estes são apenas dois exemplos significativos de como a política pode influir na economia. Difícil pensar que haja casualidade no fato de que a JBS e a Odebrecht estejam entre as empresas que mais doaram recursos para a campanha de Dilma em 2014. A decisão política de internacionalizar empresas brasileiras expressa no Estatuto Social do BNDES desde 2002 (final do governo FHC), com o Decreto 6.322 de 2007, teve a redação alterada para “financiar a aquisição de ativos e investimentos realizados por empresas de capital nacional no exterior, desde que contribuam para o desenvolvimento econômico e social do País”. Esta vírgula, aparentemente positiva, foi apenas um verniz para as “tenebrosas transações” das empresas com as castas políticas.

Os dados divulgados pelos Panama Papers transformaram velozmente a ecologia da luta anticorrupção no mundo e na América Latina. Revelações dos fiscais suíços Stefan Lenz y Luc Leimgruber, por exemplo, foram decisivas para completar o quadro do esquema de lavagem de dinheiro que foi usado pela Odebrecht para o pagamento de propinas aos altos funcionários da Petrobras. A lavagem de dinheiro por meio das empresas off shore que foram usadas como forma de despistar as investigações, mundializaram os esquemas de corrupção, assim como os dados dos Panama Papers permitiram seguir estes rastros e acabaram também por internacionalizar as investigações. A Operação Lava Jato descobriu, com dados bancários e comprovantes de transferências, cerca de 200 transações da Odebrecht a empresas off shores en Zurique, Antiígua, Principado de Mônaco, Áustria, Nova York, República Dominicana, Andorra, Panamá, Genebra e Ilhas Virgens.

A investigações revelam que a lavagem de dinheiro é parte fundamental da mediação dos negócios destas grandes empresas não somente naquele país. De acordo com o Salazar (2016) do Convoca:

Lava Jato é fundamentalmente cosmopolita e especialmente latino-americana. As grandes corporações brasileiras imputadas no escândalo realizaram grande parte de seus negócios fora do Brasil, sobretudo na América Latina; e perpretaram, segundo inequívocos indicadores, similares atos de corrupção aos cometidos no Brasil. Assim mesmo, o massivo processo de lavagem de dinheiro para ocultar o pagamento de subornos e a identidade dos corrompidos foi realizado através do mundo inteiro6.

Novamente o caso do Peru é exemplar. A falácia da integração regional para legitimar as conexões público-privadas é evidente. As denúncias, provenientes da delação do ex-presidente da empreiteira Camargo Corrêa, indicam que de 2005 a 2008, a empresa haveria feito pagamento de subornos a altos funcionários peruanos quando da construção da Rodovia Interoceânica. O projeto da Interoceânica estava entre os carros-chefe da política do governo brasileiro para os países vizinhos, sob suposta agenda de “integração regional”.

A promessa de integração, porém, não aconteceu. Nem mesmo a exportação dos produtos peruanos aumentou significativamente para o Brasil pela Interoceânica. Segundo jornal Peru21, dos US$ 1,2 bilhões gerados pelas exportações do Peru ao Brasil em 2016, apenas US$ 21 milhões foram pela Interoceânica, ou seja, menos de 2%. O montante inclusive é menor que os US$ 28 milhões exportados em 2010 quando foi concluída a obra. Na verdade, o setor exportador brasileiro estava de olho na possibilidade de baratear o comércio de suas mercadorias com a Ásia, especialmente com a China, sem ter que passar pelo Canal do Panamá, algo que também não aconteceu como esperavam. Mas afinal, quem efetivamente se beneficiou do projeto?

No sistema de estradas interoceânicas, conhecidos como projetos IIRSA Norte e IIRSA Sul, as empreiteiras brasileiras campeãs dos financiamentos do BNDES e rés da Operação Lava Jato “venceram” as licitações. A Andrade Gutierrez, a Camargo Corrêa e a Queiroz Galvão obtiveram a concessão do trecho 4 e somente neste trecho houve um adicional de 237% no custo da obra, saltando de US$198 milhões a US$ 667 milhões por meio de adendos contratuais. A Odebrecht, da mesma forma, obteve concessões em consórcio com a peruana Graña y Montero – também investigada na Lava Jato peruana – para os trechos 2 e 3 nos quais o salto orçamentário foi de 105%, de US$ 294 milhões para US$ 602 milhões. Graña y Montero foi sócia da Odebrecht na construção de la linha 1 do Metro de Lima e do projeto de irrigação de Chavimochic. No caso do Metro, a empresa brasileira admitiu ter pago sete milhões de dólares para ganhar a licitação em 2009. Graña y Montero tinha ainda 20% de participação consórcio milionário liderado pela Odebrecht para construir um gasoduto, que foi cancelado pelo governo.

De acordo com Durand7, o grupo Graña y Montero, normalmente atua com a Odebrecht, opera em cinco países, possui 10 empresas no exterior e 25 no Peru. É a principal empresa construtora de obras públicas do país e, devido a relações de parentesco, seu chefe José Graña Miró Quesada é acionista do grupo El Comercio que controla 75% do mercado de imprensa escrita além dos dois principais canais de televisão do país (Canal 4 e Canal N). Graña y Montero figura entre os 5 principais conglomerados capitalistas (limenhos) que o autor qualifica como os mais fortes grupos de poder econômicos.

O Peru é um dos que mais avançou nas investigações, depois do Brasil. Mas vários outros países também formaram parte dos esquemas. No México, durante o governo de Felipe Calderón as investigações detectaram irregularidades na relação da Odebrecht com a Petróleos Mexicanos (PEMEX), como superfaturamentos, descumprimento de contratos e pagamentos ilegais a funcionários mexicanos. Em que pese que tais irregularidades foram descobertas em 2010, nos anos seguintes a PEMEX ainda firmou quatro contratos de mais de 574 bilhões de dólares com a Braskem (braço petroquímico do grupo Odebrecht) cedendo à brasileira a possibilidade de construção da Etileno XXI, planta petroquímica que a Odebrecht opera em Veracruz, graças a um contrato de 20 anos firmado na presença dos então presidentes Calderón e Lula. O Ministério Público da Colômbia também investiga indícios de que parte da propina que a Odebrecht pagou a um ex-senador colombiano “teria sido” destinada à campanha de reeleição do presidente Juan Manuel Santos em 2014. O BNDES foi obrigado a suspender o financiamento de 3,6 bilhões de dólares para 16 obras na América Latina, após investigação. Iriam realizar-se na Argentina, Venezuela, Cuba, Guatemala, Honduras e República Dominicana. Neste último país, a justiça pediu a prisão preventiva a 14 acusados. As obras em questão estavam sob responsabilidade das cinco empreiteiras investigadas na Lava Jato: Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e OAS.

O dinheiro obtido pelas fraudes era lavado e distribuído por meio de empresas off shore em paraísos fiscais e percorria um caminho tortuoso e globalizado para despistar as investigações. Seu périplo se completava na forma de propinas ou favorecimentos, definindo licitações de grandes obras, direcionando prioridades políticas e financiando políticos aliados. Fica evidente, que estas operações foram imprescindíveis como mediação da acumulação e expansão de capitais, assim como da dominação política que lhes corresponde. Os governos que se ajoelharam aos interesses desses capitais, foram fundamentais para a construção de consentimentos funcionais à sua hegemonia, desmobilizaram os movimentos sociais, distensionaram a luta de classes. Mas assim que as lutas sociais transbordaram a conciliação e a crise econômica mundial açoitou o continente, seu papel de gestores da crise se esvaziou, restando aplicar o mesmo ajuste que prometeram não fazer e, paulatinamente, foram perdendo apoio de sua própria base eleitoral e social.

A justiça burguesa, com seus mecanismos quase sempre muito injustos, há de julgar o que houve de ilegal nas operações acima descritas, mas a justiça de classe, a justiça dos que lutam diariamente contra a exploração do trabalho, não poderá absolver os que venderam aos interesses corporativos a esperança de mudança de milhões de latino-americanos. Para recuperar as esperanças vendidas, se faz urgente desconstruir a ideia de que a corrupção é um fenômeno inevitável.

O que analisamos aqui não foi um acidente. Pelo contrário, foi um projeto de desenvolvimento e de poder alicerçado em uma premissa de conciliação entre interesses irreconciliáveis. O fim deste ciclo, mais uma vez na história, marca a falência de estratégias de mudança apoiadas na conciliação entre trabalhadores e suas burguesias “nativas”. Demonstra, afinal, que tais práticas conservam a dominação política do capital e, mais que avanços, produzem profundas derrotas à esquerda em particular e aos povos em geral. Novos processos de luta se apresentam e um novo ciclo se abre, mas a esquerda “que não teme dizer seu nome”, como diz o filósofo Vladimir Safatle8, para um combate efetivo à corrupção e à cooptação deve pensar sua estratégia começando por esta lição.

Medidas para um programa anticorrupção pela esquerda

Para além de um posicionamento político claro que aponte no sentido de romper com o modelo liberal-periférico assentado no tripé do câmbio flutuante, superávit primário e política de juros altos e o necessário o combate à lógica rentista que drena as riquezas para os bancos, também se fazem necessárias medidas que ataquem frontalmente a captura dos interesses públicos pelos negócios corporativos, que caracterizam o Estado Burguês e sua falsa democracia. Pelo demonstrado aqui, o combate à corrupção é também o combate a um mecanismo de apropriação privada do público e mediação da acumulação e dominação capitalistas, por isso pode e deve conectar-se a uma luta anticapitalista.

A esquerda precisa dar respostas ao problema da corrupção sob pena de esta bandeira ser inapropriadamente empunhada por uma nova direita nacional populista, como a que se instalou no governo dos EUA com Donald Trump. Com base em distintas experiências políticas e programas construídos pelos movimentos sociais e políticos do nosso continente, propomos medidas transicionais a serem assumidas pelos que, de fato, têm interesse em combater tais práticas de apropriação privada do que é público:

  •  Assembleias Constituintes apoiadas na mobilização e participação populares (incluindo candidaturas sem partido), com vistas à construção de um regime político em que a maioria do povo controle a política e a economia, uma democracia real;
  •  Quebra do sigilo telefônico e bancário dos políticos eleitos, Ministros e dirigentes de estatais;
  •  Proibição de agentes públicos (políticos com representação parlamentar, governantes, dirigentes partidários e de empresas estatais) de utilização de empresas off shore;
  •  Fim do financiamento privado das campanhas eleitorais e condições de igualdade entre os partidos;
  •  Proibição de participação em cargos governamentais (não eletivos) de pessoas que ocuparam postos de direção em instituições financeiras, organismos multilaterais e empresas transnacionais;
  •  Imprescritibilidade dos crimes de corrupção, confisco dos bens dos proprietários e expropriação de empresas comprovadamente envolvidas em esquemas de corrupção sob controle dos trabalhadores;
  •  Morte civil (impossibilidade de candidatar-se a cargos eletivos e fazer parte de equipes governamentais) aos envolvidos em crimes de corrupção;
  •  Fim da imunidade parlamentar e foro privilegiado aos indiciados por crimes de corrupção;
  •  Conselhos cidadãos de fiscalização sobre as obras públicas e promoção de mutirões para a realização das mesmas com financiamento exclusivo do Estado;
  •  Auditoria Cidadã da Dívida Pública dos países e dos contratos de obras públicas realizados em parcerias público-privadas ou em regime de concessão;
  •  Fim das linhas de crédito com financiamento público destinadas à internacionalização das grandes empresas.

Notas

1 GRAMSCI, Antonio. Cuadernos de la cárcel – Tomo V. México: Ediciones Era, 1999, p.81 (tradução nossa).

2 CASANOVA, Pablo González. Corrupción y capitalismo. México: UNAM, 2007, p.7 (tradução nossa).

3 SVAMPA, Maristella. “Cuatro Claves para leer América Latina”. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 268, p. 50-64, março/abril, 2017 (tradução nossa).

4 STEFANONI, Pablo. “La lulização de la izquierda latinoamericana”, 2014. Disponível em http://www.eldiplo.org/notas-web/la-lulizacion-de-la-izquierda-latinoamericana (Visualizado em 17/06/2017.

5 GARCÍA, Ana Saggioro “Políticas públicas e interesses privados: a internacionalização de empresas brasileiras e a atuação internacional do governo Lula”, In: 3. ENCONTRO NACIONAL DA ABRI, “Governança Global e Novos Atores”, de 20 a 22 de Julho de 2011, São Paulo.

6 SALAZAR, Milagros. “Cuotas y pagos millonarios de la Interoceánica”, 2016. Disponível em http://convoca.pe/investigaciones/cuotas-y-pagos-millonarios-de-la-interoceanica (Visualizado em 17/06/2017).

7 DURAND, José Francisco. Cuando el poder extractivo captura el Estado (1a Edición). Lima: Oxfam, 2016.

8 SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

 


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Pedro Micussi