“Não podemos permitir que um defensor da ditadura governe o Brasil”

Líder peruana discute os impasses da política brasileira em uma perspectiva latinoamericana.

Verónika Mendoza 24 out 2018, 17:42

Há quase dois anos, Verónika Mendoza liderou uma histórica campanha presidencial da Frente Ampla peruana. Naquela ocasião ficou fora do segundo turno por pouco, e se viu obrigada a dar seu apoio à PPK, para assim evitar a volta do que ela chama “a ditadura fujimorista”. Hoje, diante da quebra do FA peruano, Mendoza pensa que as novas esquerdas latino-americanas devem se distanciar “sem sombra de dúvida” de Maduro e Ortega e, que para evitar o surgimento de governos de extrema direita na região – como um possível mandato de Bolsonaro no Brasil –, a esquerda progressista deve deixar a “soberba principista”. Verónika Mendoza visitará o Chile no próximo dia 18 de outubro com o motivo do Festival A Toda Marcha! organizado por Revolução Democrática.

Tendo em vista do que aconteceu em seu país durante os últimos meses, considera que o apoio a PPK no segundo turno foi uma boa decisão por parte da Frente Ampla peruana?

Sempre advertimos que PPK era um lobista inveterado e sempre fomos oposição ao seu governo. Nosso chamado foi para fechar o caminho ao retorno da ditadura fujimorista que apresentava também renovados vínculos mafiosos. Agora, à luz do comportamento do fujimorismo nesse tempo acredito que foi uma decisão correta. Difícil, mas correta. Temos visto um fujimorismo reeditando as piores práticas montesinistas1: exercício abusivo do poder, cooptação das instituições para se blindar, gravar áudios e vídeos para extorquir, etc. Talvez tivesse sido mais conveniente para nós nos manter à margem, mas o fujimorismo no governo com essa grande maioria parlamentar teria sido destrutivo para o país. Isso sim, trabalharemos arduamente para não ter que estar diante de um dilema similar nunca mais, e oferecer ao país uma alternativa de governo para a mudança.

Igual ao caso do Peru, a Frente Ampla do Chile obteve uma surpreendente votação nas eleições presidenciais, superando os 20% de votos no primeiro turno. Como lidou a FA peruano como esse “êxito” eleitoral? Se produziram “abalos” ou separações no interior do FA peruano ou de seus partidos?

Pessoalmente tinha a expectativa de que a Frente Ampla passasse de uma coalizão eleitoral a um instrumento político estratégico. Esperava que a FA pudesse se abrir ainda mais à cidadania e se constituir em um grande movimento diverso e dinâmico que pudesse acolher mais espaços organizados como também mais cidadãs e cidadãos. Mas não eram todos que tinham as mesmas expectativas. Acho que alguns atores da FA preferiram recuar aos seus espaços territoriais e setoriais tradicionais, enquanto outros apostavam por construir um movimento popular e cidadão que fosse o poder de um futuro governo. Acho que era viável e inclusive necessário articular ambas as dimensões, mas não foi possível. Abrir a Frente Ampla era arriscado, supunha perder em alguma medida a cota de controle das estruturas iniciais. Eu creio que devíamos correr o risco, mas nem todos estiveram dispostos, não pudemos fazer isso juntos. Entretanto, ainda que já não sejamos parte da mesma estrutura, coincidimos permanentemente na ação política.

Entendendo que existe um debate sobre como construir a esquerda do século XXI, são estas “quebras” ou reorganizações parte de um processo natural dos novos movimentos progressistas na América Latina?

Acredito que é legítimo e inclusive necessário que existam diversas esquerdas, com suas ênfases programáticas, com mais ou menos tradição ou inovação, com mais ou menos implantação nos territórios, nas organizações sociais ou nas instituições. O desafio é articular esses processos para defender e ganhar mais direitos, mais liberdades, para vencer as máfias e lobbies que nos tiram nossos recursos e oportunidades. E construir nessa diversidade o instrumento político que nos permita ser governo e poder.

A quais setores da nova esquerda agrupa o Novo Perú? Como se caracterizariam e quais são seus objetivos? Quais são as diferencias com a Frente Ampla do Peru?

No Novo Peru confluem organizações de esquerda com longa tradição de luta ao lado dos setores populares, organizações, coletivos e pessoas socialistas, nacionalistas, ambientalistas, feministas, assim como cidadãs e cidadãos que pela primeira vez decidem envolver-se com política. A verdade é que é bastante eclético e a convivência nem sempre é fácil, além de que é uma organização muito jovem, nosso “congresso de fundação” foi em dezembro de 2017. Mas acredito que essa diversidade ao mesmo tempo é nosso principal potencial: reivindicamos e estamos nas diversas lutas, mas ruas, com as pessoas e no Parlamento. Pode soar ambicioso, mas queremos contribuir para construir poder popular, queremos disputar os sensos comuns e queremos ser governo. Talvez aí esteja uma das diferenças com outras esquerdas que em alguns casos se resignaram a “subir nos ombros” de outros projetos eletoirais com o custo de perder o próprio perfil e, em outros casos, simplesmente não têm vocação para governar e preferem manter seus espaços de referência. Nós queremos ir mais além.

Qual tem sido a estratégia do movimento que lidera, o Novo Peru, tendo em vista as próximas eleições presidenciais em seu país? Acha que as novas esquerdas deveriam apostar por chegar ao governo o quanto antes?

Sim, acredito que devemos e podemos ser governo no seguinte período, mas não a qualquer custo nem em quaisquer condições. Devemos nos preparar desde já.

Momento Político na América Latina

No FA do Chile coexistem partidos e movimentos liberais e de esquerda. Entre os segundos, se fala muito de construir uma esquerda do século XXI, se diferenciando dos processos do século passado e inclusive dos governos progressistas do início de este século na América do Sul. É factível levantar uma nova esquerda distinta das que existiram antes? É factível romper com a tradição história da esquerda nessa tentativa de levantar novos referentes?

Acho que nos caberá ser continuidade, ruptura e inovação. Não podemos negar a audácia e as transformações que significaram os progressismos na América Latina, tampouco a esperança e o empoderamento popular que despertaram. Creio que, ainda que sejam processos diferentes, em termos gerais foi um período de reivindicação de nossas soberanias e de distribuição de riqueza e expansão de direitos.

Lamentavelmente, se exacerbou a dependência extrativista, não se diversificaram as economias e, em alguns casos, se cooptou ou se quebrou a relação com os movimentos sociais. Acredito que é tempo de retomar e fortalecer o enraizamento nos movimentos sociais, aprofundar nossas democracias, diversificar a economia, as lideranças, as lutas. Hoje não podemos falar de igualdade, emancipação nem transformação sem incorporar a luta das mulheres ou da comunidade LGBTQI, por exemplo, ou a agenda ambientalista, a mudança climática nos espreita, devemos ser capazes de construir um desenvolvimento em harmonia com a natureza.

As situações na Venezuela e Nicarágua têm sido qualificadas de “críticas” pela imprensa internacional. Qual é sua posição e a do Novo Peru a respeito dos governos Maduro e Ortega?

Em ambos os casos, ainda que reconheçamos os avanços que assinalei agora pouco, sempre fomos muito críticos, por exemplo, à política econômica na Venezuela que exacerbou a dependência do petróleo, deixando abandonados outros setores produtivos e levando o povo venezuelano à crise que hoje padece, ou ao exacerbado conservadorismo do Orteguismo que implicou em um grave retrocesso nos direitos das mulheres. Hoje, o autoritarismo e a criminalização das diferenças nos distanciam totalmente desses processos. A violência e a violação dos direitos humanos são indesculpáveis. Porém, tampouco vamos validar posturas intervencionistas e militaristas de outros setores que no lugar de apelar ao diálogo estimulam mais conflito. Estas crises devem se resolver com diálogo e mais democracia.

Deve a esquerda latino-americana se distanciar de figuras como a de Maduro e Ortega?

Sim, sem dúvidas. Sem deixar de sinalizar, entretanto, as múltiplas responsabilidades e fatores das crises que atravessam esses países.

Mais ao sul temos dois presidentes sendo investigados por corrupção, que são Lula e Cristina Fernández. Rafael Correa está asilado na Bélgica. Qual é a sua avaliação do período progressista que governou grande parte da América do Sul na última década?

Eu assinalei agora pouco, acho que apesar dos importantes avanços em termos de soberania, distribuição de riqueza e expansão de direitos, lamentavelmente não conseguiram romper as lógicas perversas de um sistema no qual manda o poder do dinheiro e as grandes corporações. Essa é a tarefa pendente. E, entretanto, é evidente que há um nível de crueldade e perseguição judicial e midiática particular com quem encarnou estes processos. Nem Macri nem Temer são santos, ao contrário, porém, os poderes reais e a imprensa internacional os tratam com luvas de seda. Todo indício de corrupção merece investigação, mas se deve medir todos com a mesma vara. E também é preciso diferenciar as pessoas dos processos.

O avanço da extrema direita na Europa e nos EUA é um fato. No Brasil o candidato desse setor tem possibilidades de se converter em presidente deste país. Como a esquerda deve enfrentar esse avanço, ou prevenir seu crescimento na América Latina?

Não podemos permitir que um fanático conservador, defensor da ditadura, machista, racista, homofóbico e autoritário como Bolsonaro governe o Brasil. Sua votação no primeiro turno é um sinal de alerta para a América Latina. Os setores democráticos, progressistas e de esquerda devemos deixar nossa soberba principista e programática e escutar as pessoas. Há uma legítima demanda de ordem, de paz, de segurança que personagens como Bolsonaro canalizam em direção a respostas autoritárias e conservadoras, apelando ao ódio e ao medo, nós devemos escutar e atender essas demandas, não desdenhá-las como muitas vezes fazemos, e canalizá-las em direção a respostas democráticas e transformadoras, apelando ao amor e à esperança.

Fujimori e o indulto

Na semana passada se revogou o indulto a Alberto Fujimori. Qual reflexão deixa essa decisão, pensando nas gestões do ex-presidente PPK? Até que ponto os distintos partidos políticos peruanos devem se render a Fujimori e ao “Fujimorismo”?

Com a decisão da CIDH e essa última decisão judicial se confirma que o indulto não foi humanitário, mas sim o resultado de um pacto de impunidade por baixo dos panos, ilegal e inconstitucional. Porém, o mais importante, é que hoje fica estabelecido pelas massivas e consecutivas mobilizações cidadãs contra o indulto, que com a justiça não se negocia, que a justiça deve ser igual para todos e que só pode haver reconciliação no país sobre a base da memória e da justiça.

A anulação do indulto, junto das investigações em curso contra Keiko Fujimori e seu entorno, assim como o descrédito geral da cidadania estão derrotando o fujimorismo, me refiro ao partido e seus referentes, mas esse sentido comum autoritário e conservador e essas redes mafiosas provavelmente buscarão outro espaço onde possam permanecer, assim que a luta continua.

Tradução de Carolina Borghi Ucha de entrevista publicada no The Clinic para o Portal da Esquerda em Movimento


Nota da tradutora 

O termo “montesinista” faz alusão à rede de corrupção formada por Vladimiro Montesinos, ex-braço direito no governo de Alberto Fujimori (1990-2000). [N. do T.]


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Pedro Micussi