A farsa do rombo da previdência

O suposto rombo da previdência é uma falácia que precisa ser desconstruída.

Marcio Ornelas 17 abr 2019, 19:03


É uma questão de princípio para qualquer militante socialista e revolucionário, jamais colocar em jogo qualquer direito conquistado pela classe trabalhadora. Trato princípio aqui, como algo que sob nenhuma hipótese pode-se abrir mão ou negociar. Portanto, uma questão tão sensível e séria como essa reforma da previdência proposta por Bolsonaro, que vai arruinar um benefício histórico dos trabalhadores, jamais poderia ser considerada como uma alternativa para se resolver um suposto problema fiscal. Como temos lado na luta de classes, podemos incorrer tranquilamente nessa intransigência principista para defender os direitos da classe trabalhadora.

Já a burguesia não tem tamanha facilidade. Não se pode dar simplesmente dez tapas na cara do povo, dizer que devem trabalhar até morrer e esperar que tudo transcorra bem. Difícil seria a classe política sustentar uma reforma como essa com argumentos verdadeiros como: precisamos parar de gastar dinheiro público para garantir o benefício do aposentado; precisamos desonerar o empresário que contribui demais ao INSS; ou temos que manter o trabalhador por mais tempo no mercado e reduzir o valor do seu benefício. Sob a perspectiva da burguesia, a necessidade da reforma da previdência vem fundamentalmente dessas demandas. Portanto, é necessário construir uma narrativa fantasiosa, calcada em argumentos mentirosos e que tem como único objetivo mascarar as reais intenções que se escondem sorrateiramente por trás da proposta da reforma da previdência.

A proposta desse artigo é desconstruir o principal pilar que sustenta a narrativa fantasiosa que tanto as elites quanto a grande mídia querem empurrar goela abaixo: a de que existe um rombo gigantesco na previdência e que se a reforma não for feita, vai colapsar as contas públicas do Brasil ao ponto de que a aposentadoria de todos os brasileiros dessa e das futuras gerações estarão comprometidas.

Podemos afirmar categoricamente que esse argumento é uma farsa. Mas é preciso explorar e compreender os mecanismos e os truques que o governo utiliza para “construir” o rombo da previdência social.

A tentativa de desvincular a previdência social do conceito de seguridade social

A primeira forma de construir falsamente um deficit previdenciário, é ignorar a constituição de 1988 e fazer um cálculo que não possui nenhum precedente ou amparo legal. O artigo 194 da constituição de 1988 determina que a previdência social, a assistência social e a saúde, fazem parte de um campo de amparo e proteção ao trabalhador denominado seguridade social. O artigo seguinte determina todo o conjunto de receitas que vão financiar esse grande campo, dentre elas estão a contribuição social do trabalhador, a contribuição social do empregador e uma série de impostos e outros tipos de receita, que servem exclusivamente para financiar a seguridade social.

Isso não é um invencionismo maluco. O modelo previdenciário de repartição brasileiro, calcado no princípio da solidariedade, se espelhou no modelo europeu do pós-guerra. Pensado para ser sustentável com as contribuições dos trabalhadores, dos empregadores e também do Estado.

Mas na sua ânsia de construir e vociferar ao máximo a narrativa do rombo previdenciário, o governo apresenta uma conta na qual ela excluí todas as receitas arrecadadas pelo Estado, que estão constitucionalmente vinculadas a seguridade social, da qual a previdência é uma parte indissociável. E apresenta um cálculo em que leva em consideração apenas duas fontes de receita: a contribuição dos trabalhadores e a contribuição patronal, diminuindo pelo total gasto com os benefícios pagos pelo INSS. Essa manobra contábil produz um resultado sempre deficitário para a previdência social.

Mas se retomarmos o bom senso e a honestidade intelectual, fazendo a conta da maneira correta, somando todas as fontes de receita que financiam a seguridade social e comparando com o total de gastos nas áreas de saúde, assistência social e previdência, veremos que em vez de um rombo gigantesco, temos uma série histórica enorme de superavit. A imagem abaixo dá uma melhor dimensão do quanto a seguridade social tem sido superavitária por mais de uma década.

Essa série histórica aponta para uma média de superavit de R$ 50 bilhões ao ano. Tendo em 2012 atingido o recorde de R$ 83 bilhões.

A exclusão de receitas da seguridade social e a agregação de despesas estranhas a esse conceito

Em 2016 e 2017 foram os únicos anos em que a seguridade social apresentou um resultado deficitário. Mas ainda assim, o governo ao apresentar as suas contas oficiais, fez uma série de manobras para inchar esse deficit.

Vamos pegar como base o relatório apresentado pela ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) sobre as contas da seguridade social no ano de 2017. Nesse mesmo ano o governo apresentou um deficit para a seguridade social de R$ 290 bilhões. A forma como o governo chega a esse número é bastante ardilosa, excluindo da conta receitas que pertencem a seguridade social como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) ou sem levar em conta os 30% que são retirados via DRU (Desvinculação de Receitas da União). O montante excluído da conta é de R$ 159 bilhões.

Ao mesmo tempo em que exclui receitas, o governo agrega despesas que não tem absolutamente nada a ver com a seguridade social. Na conta apresentada pelo governo, estão incluídos por exemplo o regime da aposentadoria do servidor público e dos militares.

Se colocarmos tudo no lugar e desfizermos a malandragem contábil do governo, vamos aferir que o deficit é bem menor que o que foi apresentado oficialmente.

Explicando o deficit recente da seguridade social

Não chega a ser um segredo que há alguns anos o país atravessa uma profunda crise econômica. Não cabe nesse artigo aprofundar os aspectos que conduziram o país para a recessão, mas sim dimensionar o quanto essa crise impacta negativamente a arrecadação da seguridade social e como as medidas tomadas pelos governos de Temer e de Bolsonaro, tornam mais grave a situação.

No modelo de repartição brasileiro, tudo que é arrecado serve para financiar os benefícios de quem já está aposentado. Então a seguridade social depende de uma economia saudável para se manter sustentável, como ela vem sendo ao longo dos anos. Acontece que a crise econômica que o Brasil atravessa tem consequências drásticas e diretas para a seguridade social: 13 milhões de desempregados que não contribuem para o INSS e uma incapacidade do setor produtivo de gerar postos de trabalho formais. Duas das principais fontes de receita da seguridade social estão seriamente combalidas enquanto o Brasil se afunda nessa crise. Isso sem mencionar os 37 milhões de trabalhadores que atuam na informalidade. Para completar a reforma trabalhista do governo Temer, que se combina a reforma da previdência num objetivo comum (destruir a seguridade social), flexibiliza ainda mais as relações de trabalho no Brasil, gerando instabilidade e fragilizando ainda mais a arrecadação da seguridade social.

Dois dos principais impostos que financiam a seguridade social, sofrem em demasia num momento de crise econômica. A CSLL (é imposto sobre o lucro líquido das empresas) despenca num momento de recessão em que as empresas apresentam dificuldade e o COFINS (imposto embutido em tudo que se consome) também reduz a falta de políticas para estimular o consumo. A primeira medida do governo Bolsonaro foi reduzir o valor do salário mínimo para o ano de 2019, o impacto que isso tem sobre a seguridade social ainda nem pôde ser mensurado.

Cabe destacar a lista gigantesca de sonegadores da previdência social. A estimativa da ANFIP é de que hoje as grandes empresas e bancos brasileiros devam um montante de R$ 500 bilhões. Sem contar a farra das isenções fiscais oferecidas pelo governo aos empresários brasileiros. Sobre isso o professor Eduardo Fagnani, um dos maiores especialistas brasileiros em previdência, se manifestou em entrevista recente da seguinte forma:

“A opção política do atual governo é reduzir os direitos sociais das camadas mais empobrecidas para reduzir a carga tributária dos grandes empresários e manter a política de isenção fiscal intacta. Se somarmos R$ 400 bilhões de isenções fiscais, R$ 400 bilhões de juros e 500 bilhões de sonegação, temos R$ 1,3 trilhão todo ano, são mais de 13 anos de economia com a reforma da Previdência”

O governo toma medidas deliberadas para sabotar a arrecadação da seguridade social. Mesmo com toda a crise, ainda assim a seguridade social foi deficitária em apenas dois anos. Não é nenhum absurdo afirmar que tão logo a economia do Brasil volte a crescer, a seguridade social voltará a ser superavitária.

Mas fica evidente que esse não é um debate de cunho econômico. Do ponto de vista econômico dizer que a seguridade social é insustentável é uma aberração comprovada por números que são categóricos. Estamos diante de um debate ideológico sobre qual é o papel que o Estado deve ter na garantida de direitos e na seguridade dos trabalhadores.

Evidentemente não concordamos com a perspectiva ultraliberal do governo Bolsonaro e muito menos com sua proposta de reforma previdenciária que na prática vai extinguir o benefício da aposentadoria e a seguridade social por tabela. É preciso denunciar que todas as premissas argumentativas que sustentam essa reforma são absurdamente fraudulentas.
Vamos às ruas para barrar essa reforma que quer impor retrocessos gigantescos para a classe trabalhadora brasileira.

Marcio Ornelas é professor de geografia. Educador popular e coordenador da Rede Emancipa

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