Massacre nos presídios de Manaus: a face sombria do Estado penal

Qual o solo estrutural, histórico, em que se assentam tais eventos? Há uma crise do sistema prisional ou a mesma só se explica no âmbito de crises mais gerais?

Luiz Fernando de Souza Santos 4 jun 2019, 18:32

Em Manaus, a última semana do mês de maio de 2019 começou com mais um massacre no sistema prisional. Ao todo foram mortos 57 detentos entre domingo e segunda-feira. Lembra o ano de 2017, que começou com o país estarrecido com o massacre de 56 detentos no Complexo Prisional Anísio Jobim (COMPAJ). Qual o solo estrutural, histórico, em que se assentam tais eventos? Há uma crise do sistema prisional ou a mesma só se explica no âmbito de crises mais gerais?

Loïc Wacquant, autor de As Prisões da Miséria (1999) e Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (2003), expõe em tais trabalhos argumentos seminais para apreendermos sociologicamente os fatos ocorridos em Manaus. Wacquant, que também fez incursões pelo sistema prisional brasileiro, aponta que, no caso da sociedade norte-americana, as variáveis aumento da população carcerária e taxas de criminalidade não têm imediata correlação entre si. Num período no qual as taxas de criminalidade caíram e estagnaram naquele país, paradoxalmente a população carcerária continuou a crescer. Ao mesmo tempo em que a população negra diminuiu sua frequência nas estatísticas de crime, sua presença na população prisional aumentou continuamente.

A chave explicativa para tal disparate em relação aos discursos oficiais, assentados na identificação fácil e superficial de uma relação entre crime e prisões, está em tomar a prisão como uma instituição política, que penaliza a miséria. Numa era de precarização do mundo do trabalho, com subemprego e desemprego crescentes, desmonte de direitos e de políticas públicas sociais, as prisões são os depósitos onde o capitalismo aloca a massa de miseráveis que produziu no escopo da sua estratégia neoliberal de acumulação. Com o desmonte do Estado de bem-estar social coloca-se em seu lugar um Estado policial e penitenciário.

No caso brasileiro, marcado por uma estrutura profundamente desigual, na qual historicamente as elites nutrem um medo-pânico dos estratos populares – que se materializa em instituições políticas e jurídicas aparentemente modernas, fundadas em regras impessoais, mas que se realizam permeadas por arranjos irracionais e antimodernos que penalizam a massa da nação- o Estado policial e penitenciário tem centralidade como ambiente onde barbaramente os membros de tais estratos devem ser punidos. É nesse contexto que se explica a reação dos discursos oficiais diante do massacre em Manaus: O governador do Amazonas afirma que já tomou providências e que a população de Manaus ficasse tranqüila, pois, nenhum parente de preso e nem servidores públicos foram feridos. Pode-se inferir da fala do governador que ele, ex-apresentador de televisão local, continua com os tiques de apresentador de programa de TV de mau gosto, daqueles que se extasiam em afirmar que bandido bom é bandido morto. O prefeito tucano, Arthur Neto, teceu duras críticas à política prisional do Amazonas, que, com chacinas desse tipo afastam turistas e geram danos econômicos à cidade.

Sobre a privatização da gestão dos presídios do Amazonas, via terceirização para a empresa Umanizzare, as vozes oficiais só avançam até a crítica a esta. O Estado penal neoliberal não recua um milímetro sequer da lógica privatizante e, anuncia como saída, o fim do contrato com a referida empresa e a abertura futura de processo licitatório para contratação de outra. A Análise desenvolvida por Marielle Franco, em UPP, a Redução da Favela a Três Letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro (2018) apreendeu o sentido aí presente: “o Estado cumpre papel de agente para o mercado e não agente de cidadania”.

Convém avançar uma ideia complementar ao exposto até aqui: o massacre desta semana, somado àquele de 2017, são expressões de um componente íntimo e recorrente do modelo de desenvolvimento capitalista na Amazônia. No livro “Expropriação e Violência” (1980), ao discorrer sobre a Guerrilha do Araguaia, José de Souza Martins faz o seguinte apontamento sobre os impactos da violência das forças do Estado brasileiro contra os guerrilheiros no imaginário indígena: “Os índios Suruí perderam a sua inocência e relatam estarrecidos a degola de um cadáver de guerrilheiro”. Num trabalho mais recente, “Fronteira” (2009), o mesmo autor, assinala o envolvimento de uma empresa privada, a Arruda, Junqueira & Cia. Ltda. no massacre de índios cintas-largas. A barbárie dos jagunços da empresa é dantesca: “uma índia foi agarrada, amarrada, aberta ao meio a facão e em seguida levou um tiro. A criança de colo que ela carregava foi morta com um tiro na cabeça”.

Sobre mais este horror no sistema prisional em Manaus, nada se diz, então, se o reduzirmos à tarjeta de management que o classifica como “fato lamentável” ou “acidente pavoroso”. Ele é o horror nosso de cada dia, patrocinado por uma matriz estrutural e histórica sanguinária, e na qual, de tempos em tempos, a parceria público-privado faz elevar o nível de destrutibilidade, de erosão, contra os grupos sociais que identifica como não humanos nos rincões da Amazônia. A crise do sistema prisional brasileiro, e particularmente, do Amazonas, é uma manifestação fenomênica da crise estrutural do capital. E a sensação de insegurança que toma conta das ruas da cidade de Manaus é uma variante da insegurança que o desmonte neoliberal da vida pública produziu.


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