Viver sem tempos mortos

Em artigo publicado para livro organizado pela Fundação Lauro Campos, a autora discorre sobre a situação brasileira a partir dos significados do período lulista no país.

Luciana Genro 21 jul 2017, 13:29

O sistema político está decadente e a polarização política é evidente. Nos Estados Unidos, coração do capitalismo mundial, Donald Trump ganhou as eleições presidenciais reunindo os votos de parcelas de massas conservadoras, somados a um grande setor de trabalhadores empobrecidos e desempregados em consequência da globalização neoliberal, classes médias atrasadas e operários brancos, iludidos pelas críticas de Trump a Wall Street e suas promessas de emprego e renda. Estes últimos certamente irão enfrentá-lo quando perceberem que sua campanha foi uma mentira. Por outro lado, Bernie Sanders foi a expressão de que não apenas posições reacionárias têm peso de massas, mas também ideias progressistas e até anticapitalistas, canalizando pela esquerda o descontentamento de um amplo setor, principalmente da juventude.

Sem dúvida vivemos em tempos difíceis. A crise econômica tem provocado desemprego, aumento da pobreza e da desigualdade. Nos governos se alternam partidos, desde a direita à esquerda tradicional, mas as políticas econômicas pouco mudam. Social democracia, centro ou direita aplicam os mesmos planos econômicos, com maior ou menor grau de ataques aos direitos do povo, conforme a correlação de forças em cada país.

No mundo inteiro este processo está em curso, mas novos fenômenos políticos também estão a acontecer. Por isso, se é verdade que vivemos tempos difíceis, também é verdade que vivemos “sem tempos mortos”, como escreveu Simone de Beauvoir. 1 Os povos do mundo seguem resistindo e as manifestações que tomaram conta dos Estados Unidos nos dias seguintes à vitória de Trump, entre tantas outras expressões de resistência, mostram que a luta vai seguir numa concentração cada vez maior de contradições. Ao mesmo tempo em que as classes dominantes já não conseguem dominar como antes, por outro lado não há uma alternativa clara, com capacidade de tomar as rédeas da situação e alterá-la em favor da maioria do povo.

É certo que há um retrocesso político na América Latina, expresso antes de tudo pelo fortalecimento da direita depois do ciclo do PT no Brasil e na Venezuela. Entretanto não podemos desprezar toda a experiência do período anterior. A derrocada da social democracia e dos aparatos stalinistas abriu caminho para novos processos. Processos que não devem ser embelezados, cheios de contradições, mas que são fruto da luta dos povos latino-americanos e também não devem ser desprezados.

O bolivarianismo na América Latina, Syriza na Grécia, Podemos na Espanha e até mesmo reações internas nas velhas estruturas partidárias, como Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista inglês e Bernie Sanders concorrendo pelo Partido Democrata dos EUA, são tentativas de encontrar um outro caminho que fuja do modelo stalinista e também da socialdemocracia tradicional, rendida ao social-liberalismo. A experiência de cidades espanholas como Madri, Cadiz e Barcelona, governadas por prefeitas eleitas a partir de uma confluência cidadã e democrática, também demonstra uma vívida busca dos povos por novos caminhos.

Não pretendemos aqui analisar estes fenômenos, muito menos endossá-los de todo. Mas a capacidade de aprender com os acontecimentos do nosso tempo é fundamental na construção do novo sujeito político necessário às transformações. As tradições do passado nos iluminam para compreender os fenômenos do presente, nos desafiando a lutar para descobrir o que deve ser feito para que as limitações de cada acontecimento sejam superadas.

É fato que a esquerda vive uma crise. A queda do muro de Berlim, simbolicamente, abriu uma nova fase, na qual entre tantas outras coisas se debateu abertamente o fracasso do “socialismo realmente existente” – ou seja, o stalinismo e suas variantes. No Brasil, a crise econômica e política que vivemos escancarou a falência do projeto petista, o qual pode ser identificado com os partidos da socialdemocracia e socialistas “da ordem” no mundo todo. É verdade, portanto, que o socialismo real e a socialdemocracia fracassaram como projetos de emancipação humana. Estes fracassos estão na raiz da crise da esquerda.

Muito embora a derrocada do stalinismo no mundo tenha cumprido um papel progressivo, colocando na ordem do dia a necessidade e a possiblidade de superarmos aquele paradigma de sociedades autoritárias, ainda não surgiu neste processo um novo referencial consagrado que possa recolocar a viabilidade de um outro modelo econômico e político. É verdade também o que diz Gramsci: na crise o velho já morreu, mas o novo ainda não pode nascer e neste interregno surgem “fenômenos patológicos” dos mais variados tipos.2 Trump é uma expressão destes “fenômenos patológicos”.

Por outro lado as experiências concretas de sociedades de transição, ditas socialistas, não conduziram ao comunismo. Ao contrário, a maioria delas já não está mais sequer em transição, são já países capitalistas “normais”, como a Rússia, ou capitalismos de Estado, nas quais uma burocracia estatal cumpre o papel de burguesia, como a China. A exceção talvez seja Cuba, que ainda vive em um tipo de transição, mas certamente não para o comunismo. Não temos aqui espaço para discutir as razões destes fracassos3, mencionados apenas para marcar o problema da falta de um modelo que possa hoje inspirar as novas gerações a seguir lutando por uma sociedade livre da exploração e da opressão.

O stalinismo e suas variantes não servem como modelo, a socialdemocracia muito menos. A ideia de que seria possível, e suficiente, construir um capitalismo com rosto humano, democrático e generoso é um fracasso evidente. Se não antes, a crise econômica de 2008/2009 na Europa revelou os partidos da socialdemocracia como aplicadores dos planos de ajuste mais cruéis contra o povo, idênticos ao aplicados pelos partidos mais conservadores. A tentativa da velha esquerda de “domar” o capitalismo acabou tendo o efeito inverso. Esta esquerda é que foi domada pelo capital.

Cabe analisar as razões mais profundas desta adaptação. A verdade é que natureza de classe do Estado independe de quem exerce diretamente o poder. O aparelho do Estado goza de uma “autonomia relativa” que permite que a burguesia não exerça diretamente o seu domínio, mas que, mesmo assim, este Estado não deixe de ser burguês e de atuar para garantir acumulação capitalista.4 Isto é assim porque a própria organização interna do Estado assegura a dominação burguesa, sendo o caráter de classe um atributo objetivo inscrito no seu “DNA”, independente de quem exerça o poder diretamente.5 O Estado neoliberal é um “Estado estrategista”, que participa ativamente das decisões sobre investimentos e normas, sempre voltadas para os interesses do capital financeiro. Este Estado não é, portanto, um “instrumento que se possa utilizar indiferentemente para finalidades contrárias” ao contrário, ele faz parte de “todo um quadro normativo que deve ser desmantelado e substituído por outra razão do mundo.”6

Para iniciar um processo real de transição são necessárias transformações profundas, enfraquecendo o núcleo repressivo e burocrático do Estado, de forma que as massas exerçam o controle sobre a burocracia estatal e a democracia seja real. Somente com o reforço das organizações populares de massas o aparelho repressivo estatal se enfraquecerá e poderá deixar de ser um instrumento de dominação contra o povo. Este processo depende da luta e da iniciativa dos trabalhadores, mas pode e deve ser impulsionado por um governo de esquerda, pois sem esta transformação radical, a forma burguesa do Estado se fortalece e se reproduz, impedindo qualquer mudança de fundo.7

O Brasil não fugiu deste script. Foram 13 anos de governo liderados pelo PT em conjunto com as frações financeiras e oligárquicas da burguesia, cujos interesses permaneceram intocados. O início do governo Lula foi marcado pela escolha de Henrique Meirelles8 para presidência do Banco Central. O final melancólico de Dilma foi marcado pela nomeação de Joaquim Levy9 para ministro da Fazenda, logo depois de reeleita, substituído pelo mesmo Henrique Meirelles, após Dilma ser derrubada pela via de um impeachment com características de um golpe palaciano-parlamentar. O desastre da experiência petista levou ao crescimento do PSDB e ao aparecimento de uma direita mais orgânica e ideológica.

No Brasil a “governabilidade” lulista foi fundada na cooptação de trânsfugas da ditadura, como Sarney e ACM, e na gestão da massa fisiológica de parlamentares através de cargos e dinheiro. O “mensalão” foi parte desta gestão, algo que a Operação Lava Jato mostrou ser apenas a ponta do iceberg.

A política econômica do lulismo se apoiou numa aliança do Estado com o grande capital privado, com os banqueiros e agronegócio. Ao mesmo tempo fez concessões precárias às massas trabalhadoras, como aumento do salário mínimo, Bolsa Família, PROUNI, etc., e estimulou o consumo através de um endividamento explosivo.

Mas o capitalismo no Brasil se desenvolve fundamentalmente via a superexploração. A acumulação do capital pressupõe um arrocho salarial maior do que a média dos países centrais para que o Brasil encontre seu lugar na divisão internacional do trabalho. Este processo de acumulação tende a eliminar, em um rápido espaço de tempo, as conquistas sociais. Não houve, de fato, políticas de combate à desigualdade, mas sim políticas de capitalização da classe mais pobre, o que é algo diferente. Os rendimentos das classes mais altas continuaram intocados e em crescimento.

Assim, o Brasil continua um país de níveis brutais de desigualdade. O governo também foi incapaz de modificar tal situação através de uma política de impostos sobre a renda, como o imposto sobre grandes fortunas. Acrescenta-se a isto o fato dos salários brasileiros continuarem baixos e de que 93% dos novos empregos criados nos últimos dez anos são empregos que pagam até um e meio salário mínimo – e agora estes empregos estão sendo extintos pela crise.

Reinaldo Gonçalves pontua que a análise de questões econômicas estruturais durante o governo Lula leva à conclusão de que não houve grandes transformações, nem reversão de tendências estruturais, nem sequer políticas desenvolvimentistas. De fato, segundo Gonçalves, os eixos estruturantes do Nacional Desenvolvimentismo foram invertidos e o resultado é desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização das exportações, maior dependência tecnológica, mais desnacionalização, perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa estrutural na esfera financeira, maior concentração de capital, crescente dominação financeira, subordinação da política de desenvolvimento à política monetária focada no controle da inflação. Enfim, uma verdadeira “inversão de sinais” que faz com que ele atribua ao governo Lula a responsabilidade pela implementação de um “Nacional Desenvolvimentismo às avessas”10.

O lulismo no Brasil é, portanto, parte deste fenômeno mundial de adaptação da velha esquerda às políticas neoliberais ou sociais-liberais. Esta adaptação também apagou qualquer traço de luta anti-imperialista consequente. Por exemplo, ao invés de desenvolver o bolivarianismo, Lula isolou-o, e chegou ao ponto de negar asilo a Edward Snowden, o jovem americano que enfrentou o império.

Além disso, há que se ressaltar outra prova cabal do papel de agente capitalista do projeto lulista: o fato, já comprovado, de que entre 2011 e 2014, R$ 20,7 milhões foram doados pelas empreiteiras envolvidas na corrupção da Petrobras para o Instituto Lula, além de mais R$ 10 milhões em pagamentos por palestras do ex-presidente.11 Há ainda a suspeita de que Lula recebeu presentes destas mesmas empresas, como a reforma no sítio, o armazenamento de seus pertences e talvez até um apartamento. Se Lula cometeu ou não diretamente o crime de corrupção, ainda está por ser provado. Mas que ele transformou-se em agenciador dos interesses de empreiteiras corruptas parece evidente.

Os governos Lula e Dilma foram tolerados porque tinham a capacidade de conter os movimentos sociais e aplicar os planos do capital, distribuindo as bordas do bolo, mas deixando intacto o seu recheio, os lucros dos bancos e especuladores. Junho de 2013 mostrou que o PT e seus satélites não controlam mais o movimento de massas. A crise econômica veio a exigir ajustes profundos e, portanto, a burguesia preferiu governar com um seus filhos “legítimos”, no caso o presidente ilegítimo e impopular Michel Temer. O PT foi descartado por já não ter mais força para cumprir o papel que lhe era destinado.

Ao invés de lutar para desmantelar este sistema corrupto, as cúpulas petistas se moldaram a ele. A corrupção é um elemento orgânico do capitalismo. Combatê-la, portanto, faz parte do combate ao próprio sistema. Uma esquerda que pretenda dialogar com o povo precisa assumir esta demanda democrática. Isso se materializa, no Brasil, no apoio à Operação Lava Jato, o que não significa endossar eventuais arbitrariedades, mas exigir e apoiar o seu seguimento, doa a quem doer. Há uma operação em curso, encabeçada pelo presidente do Senado Renan Calheiros, com o apoio envergonhado do lulismo, para mudar a lei e impedir que as investigações sigam.

Outro operativo em pleno curso é o fechamento dos espaços democráticos de participação eleitoral. Sob a fachada de diminuir o excessivo número de partidos, a burguesia deseja impedir que surjam novos fenômenos partidários de esquerda com peso de massas. A lei Cunha, com a criminosa sanção de Dilma, já cumpriu este papel nas eleições municipais e o que vem pela frente deve ser ainda pior. É preciso resistir.

Os movimentos que eclodiram no mundo desde 2011, cujos ecos ouvimos no Brasil, são a expressão de que a hipótese emancipatória segue viva. Eles ainda não afirmam um novo horizonte, pois o socialismo não é uma referência para a maioria porque nunca existiu em lugar algum. Mas a negação determinada é o primeiro passo para, num processo dialético, construir o novo. Não é necessário um conteúdo positivo pronto para negar o que já está dado. Para superá-lo, sim.

O processo de negação se expressou nos acontecimentos de Junho de 2013, o levante juvenil e popular cujos ecos escutamos novamente em São Paulo no ano de 2015 e em vários estados em 2016, nas ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas, nas ocupações de faculdades, nas manifestações nas ruas contra a PEC que cria o teto de gastos públicos e na luta pelo Fora Temer. Junho de 2013, com suas características positivas e seus limites, nos impõe o desafio de ajudar na formação do sujeito político do processo de transformação que o levante de junho mostrou ser necessário.

A nova etapa aberta no Brasil nos exige trabalhar nesta construção do novo, uma tarefa gigantesca, pois a direita cresceu neste cenário. A desilusão com o PT levou muita gente à apatia e outros tantos a uma total desorientação política canalizada pela direita. Mas o PSOL sobreviveu e se fortaleceu, mesmo neste cenário adverso. É preciso seguir plantando para colher no futuro. Nosso desafio é persistir e construir um projeto alternativo, para que, se não agora, mas no futuro, seja possível a conquista de um governo que signifique, de fato, um poder popular.

(Artigo publicado originalmente no livro Cinco Mil Dias – O Brasil na Era do Lulismo, organizado por Juliano Medeiros e Gilberto Maringoni e publicado pela Editoria Boitempo em parceria com a Fundação Lauro Campos.)


Notas da autora

1 BEAUVOIR, Simone. Balanço Final. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 40

2 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. 2a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 184

3 Dentre várias bibliografias sobre o tema sugiro Paulino, Robério. Socialismo no Século XX. O que deu errado? São Paulo: Letras do Brasil, 2010.

4 MASCARO, Alysson. Estado e Forma Política. São Paulo, SP: Boitempo, 2013, p.118-125.

5 NAVES, Márcio Bilharinho. A Questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 33.

6 DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 31

7 NAVES, Márcio Bilharinho. (ORG). Análise Marxista e sociedade de transição p. 59

8 Henrique Meirelles, atual Ministro da Fazenda, foi presidente do Banco Central dos dois governos de Lula (2003 a 2011) Oriundo do setor financeiro, foi presidente do Bank Boston e era deputado federal eleito pelo PSDB quando foi convidado por Lula para presidir o Banco Central. Após o impeachment de Dilma voltou para o governo como Ministro da Fazenda de Michel Temer.

9 Joaquim Levy foi Ministro da Fazenda do governo Dilma (2015), com a missão de fazer o ajuste fiscal. Trabalhou nos governos de FHC e no FMI.

10 GONÇALVES, Reinaldo. Desenvolvimento às Avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

11 http://www.institutolula.org/as-palestras-de-lula-a-violacao-de-sigilo-bancario-do-ex-presidente-foi-um-ato-criminoso


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