Cúpula do PT, Capital financeiro e Grandes corporações: Relações orgânicas e pactos de sangue

Pretender aproximar-se da verdade para expô-la da maneira mais fiel não significa fazer o jogo da direita.

Charles Rosa e Pedro Fuentes 14 set 2017, 13:33

A primeira semana de setembro registrou um terremoto político de grau cinco, cujo nome poderia ser “malas de Geddel/delação do Palocci”. Se isso não bastasse, ainda houve a revelação de novos áudios que culminaram na rescisão do acordo que Joesley Batista fez com a Justiça e na sua ida para a cadeia. Segue havendo uma grande crise nas alturas; porém, apesar dela, o governo golpista (sustentado pela casta política) consegue fazer tramitar suas reformas neoliberalizantes e não para de agravar a regressão social que vive o Brasil. Por todos os cantos do país, é perceptível o aumento diário da fome, do desemprego, da violência e da miséria. Contudo, outra seria a situação se a mobilização do 30J não tivesse sido freada; a suspensão da greve geral foi mais golpe contra o povo; e, desta vez, quem aplicou o golpe foram as direções sindicais com o aval de um Lula desesperado por recuperar a confiança da burguesia. A consequência mais dramática desse recuo operado pela burocracia sindical foi que, ao perder as ruas, os trabalhadores e o povo perderam a possibilidade de passar para uma ofensiva direta. Na gíria futebolística, desperdiçou-se um contra-ataque. E é por isso que em meio de sua rocambolesca crise, os de cima podem seguir manobrando e governando ao sabor do ‘mercado’.

Esta situação complexa expressa um impasse crítico que não significa, em definitivo, nem calma nem derrota. Afinal, ela também pode ser a janela de oportunidade para passar a limpo a história recente do país e colocar em seu devido lugar quem é quem na política brasileira, condição essencial para continuarmos construindo as nova alternativas de empoderamento popular. Os textos que escritos ultimamente por Roberto Robaina , Luciana Genro e Israel Dutra, entre outros, têm nos ajudado a entender melhor o pandemônio em que estamos. Em poucas palavras, a fotografia do momento pode ser resumida da seguinte forma: 1-este governo golpista é nosso inimigo público número um contra o qual temos que lutar; 2- a existência deste governo é resultado de uma ofensiva das classes dominantes, parte de uma política mundial de todos os governos burgueses e do imperialismo a fim de que os setores populares paguem pela crise; 3- ao mesmo tempo, é impossível constatar que esta ofensiva se desdobra com relativa facilidade no Brasil, devido ao fato de que o PT e sua política – estelionato eleitoral, fisiologismoparlamentar, ajuste do Levy, etc – abriram as portas e recolocaram na mesa presidencial à direita sem disfarces (ou é possível esquecer que Michel Temer já foi ovacionado num Congresso do PT?).

Pretender aproximar-se da verdade para expô-la da maneira mais fiel não significa fazer o jogo da direita, como a ala mais carcomida do lulismo procura mistificar seus adversários à esquerda. Conforme os textos que escrevemos nos últimos meses, defendemos o direito democrático de Lula candidatar-se nas próximas eleições, visto que nenhum dos outros presidenciáveis envolvidos nos esquemas da Odebrecht provavelmente será impedido de se postular. É o povo – a partir da compreensão de que não é o PT que resolverá as suas necessidades mais sentidas, na linha do que acaba de indicar um estudo sobre a evolução das desigualdades sociais do país entre 2001-2015 1 – ,e não um tribunal ‘tecnocrático’, quem deve decidir o nome do próximo presidente da República. Afirmar isso também é algo muito distinto de sequer cogitar um apoio ao PT e/ou se calar sobre as metamorfoses que este partido atravessou nas últimas décadas. Roberto Robaina já expressou muito bem as posições do MES em diversas intervenções, ao afirmar que a débacle do petismo é para o Brasil um acontecimento similar ao que foi a queda do Muro de Berlim em1989 para a esquerda mundial. O partido da ‘estrela’ não só governou para os interesses das grandes corporações e do rentismo financeiro (que nunca acumularam tanto capital, fato evidenciado em inúmeras estatísticas e na histórica entrevista do ‘economista-mor’ da ditadura, Delfim Netto, em que resumiu numa frase a satisfação das elites com o PT: “Lula salvou o capitalismo brasileiro”!): a trajetória do PT também significou um golpe profundo na consciência das massas. Mais do que ‘aquilo-que-poderia-ter-sido-e-não-foi’, o PT “foi-aquilo-que-sempre-negou-durante-os-tempos-de-oposição”.

O partido operário – que teve nos seus anos iniciais o seringueiro assassinado por Chico Mendes, por exemplo– tornou-se hoje o melhor amigo da ruralista Katia Abreu (que a bem da verdade sempre foi grata pelos ganhos que o agronegócio teve desde 2003, ao contrário da Família Marinho). O partido progressista – que teve um Florestan Fernandes em suas fileiras – hoje acha normal andar a tiracolo do coronel Renan Calheiros em Alagoas. O partido ético – cuja ficha de filiação nº 1 foi assinada pelo histórico trotskista Mario Pedrosa – é presidido por uma senadora suspeita de desviar dinheiro dos aposentados para sua campanha eleitoral.

Uma decepção como o PT cria imensas dificuldades na hora de se construir uma nova alternativa. A visão do movimento de massas é atrapalhada pelo fracasso de um projeto outrora transformador a ponto de não ser fácil enxergar a nova alternativa que o PSOL e a esquerda precisam construir e estão construindo. Para milhões de pessoas, é como se o próximo ciclo da esquerda brasileira estivesse condenado a repetir os passos petistas. Pode-se identificar, entretanto, ao menos um elemento positivo neste problema, uma vez que a negação é uma etapa que costuma anteceder à reflexão e à busca pelo novo, ainda que isso demande uma certa paciência e aumente a urgência de reafirmarmos categoricamente “que não somos todos iguais” e “que há outra saída em construção”.

Relação orgânica

Neste sentido, convém reforçar que a nossa saída está sendo construída com cimentos muito sólidos, com alicerces fincados já em 2002, a partir de uma análise marxista que já era capaz de compreender a transmutação acelerada da cúpula do PT como determinante-chave de seus rumos uma vez tendo chegado ao governo. A famosa Carta aos Brasileiros (2002), assinada por Lula e afiançada pelos Odebrecht, que buscava assegurar à burguesia que o PT não mexeria nas estruturas econômicas do país, pode ser considerada a ponta do iceberg da capitulação petista. Agora que o papel dos atores da tragédia lulista está mais claro, (vide as confissões de Palocci, Delcídio e do marqueteiro João Santana, p. ex.), não seria ruim voltar a tal assunto para explicar a “relação orgânica” da direção majoritária do PT com o grande Capital.

Sobre o tema há trabalhos e reflexões bastante elucidativos, como o livro “A Falência do PT” (2003) de Robaina e Luciana Genro, o artigo “A financeirização da burocracia sindical no Brasil” (2011) de Ruy Braga e Alvaro Bianchi ou mesmo o ensaio “O Ornitorrinco” (2003) do grande sociólogo Chico de Oliveira. Neste último convém se deter na sua explicação para o surgimento de uma ‘nova classe‘ (os administradores dos fundos de pensão). Num bom resumo de “O Ornitorrinco”, elaborado pela Folha de SP ainda em 2003, quando o PT tentava passar sua Reforma da Previdência, encontramos:

“O que caracteriza a história recente do Brasil é o fato de que os sindicalistas tornaram-se capitalistas sem capital: deixaram de ser trabalhadores sem terem se convertido em empresários. Eles não são burgueses porque não têm a propriedade das empresas, mas controlam os recursos públicos que o capital precisa para sobreviver.

A evolução do país acabou assim numa nação anômala, que não é mais subdesenvolvida, pois conseguiu se industrializar, mas não chegou a ser desenvolvida, pois só consegue acumular capital sugando recursos públicos. Para explicar o monstrengo social resultante dessa “acumulação truncada” é que Oliveira usou a imagem do ornitorrinco, mamífero com bico de pato e que põe ovos”.”

Em entrevista ao jornal no mesmo ano, Chico de Oliveira desenvolvia melhor aonde queria chegar:

“a meta dessa nova classe social não é a ampliação dos direitos trabalhistas, mas uma boa gestão financeira, pois ‘o que está é jogo é a aposentadoria deles”. São esses administradores de fundos que definiram a política econômica conservadora do governo Lula. (…) Os operários foram transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT”.

Adiante, Oliveira acrescentava com lucidez que no PT a fração sindicalista adquiriu maior predominância na correlação de forças interna dentro do partido e fundiu-se com a fração chamada de origem propriamente ‘política’. Os expoentes mais visíveis dessa camarilha foram Gushiken, Berzoini, Delúbio, Vaccari, Okamoto, Paulo Bernardo, Gilberto Carvalho, Lula, Palocci e Dirceu.

Se a existência determina a consciência, nessa nova localização social da direção petista, os que administram os milionários fundos de pensão, ao mesmo tempo, defendem que esses fundos logicamente maximizem seus lucros, o que implicará em última instância em defender o capital explorador, e não ao trabalhador explorado – que dirá o meio ambiente! Logo, resta concluir que osseus interesses passam a ser também os interesses da burguesia, especialmente a mais rentista parasitária, com a vantagem adicional para esta de que não precisa desgastar seus quadros com o ônus da ‘vitrine política’, combinando mecanismos garantidores do ‘consenso passivo’ das camadas subalternas com o “consenso ativo” das burocracias sindicais.

Ampliando essa perspectiva, convém retomar o conceito de ‘classe gerencial’ de Dumenil/Levy (desenvolvido no livro “A crise do liberalismo” de 2011). Os economistas franceses mencionam a diferenciação de uma nova classe gerencial, ‘os aliados de alto escalão’ que operam em benefício das camadas mais altas de renda, isto é, os proprietários capitalistas e as frações superiores da administração. A maior concentração de renda constituirá a realização crucial da nova ordem social. Esta análise nos pareceu muito interessante e potente para entendermos o papel gerencial que passaram a desempenhar a velha social-democracia europeia, o PT no Brasil e outros agrupamentos políticos ao redor do mundo.

As cúpulas políticas dos partidos identificados (mais na retórica e na simbologia, do que na prática) com os setores operários e populares integram-se de tal forma na reprodução do metabolismo capitalista que vão se convertendo paulatinamente em castas alienadas ou distanciadas dos interesses das camadas médias e baixas da sociedade, ou seja, suas classes de origem. Se não são exatamente burgueses, já que não são os titulares efetivos dos meios de produção, atrelam seu destino estrutural ao sucesso estrutural da grande burguesia. Ao invés de serem os coveiros do Capital, tornam-se os seus médicos, como o dr. Palocci evidencia com o seu patrimônio milionário.

Pacto de sangue

Pois é exatamente este processo que contaminou o aparato petista. A maioria da direção do PT (opetit comité que expulsou os radicais do partido em 2003 e que até toparia trocar Babá por Geddel Vieira Lima em 2003!) celebrou seu compromisso sério e inabalável com a burguesia através da referida Carta aos Brasileiros, sacramentando de papel passado sua transformação política. Foi amudança social dessa direção que explica o que se sucedeu no plano político. O “pacto de sangue” com a grande burguesia vampiresca do Brasil impede que o PT encampe qualquer projeto minimamente emancipatório. Voltando à metáfora dos gramados, é como se esperássemos que um jogador fizesse gols para o nosso time, mesmo já tendo assinado contrato com o adversário. E se tem uma coisa que o PT soube fazer até agora foi respeitar os contratos… com a burguesia!

Esta é a análise marxista que não podemos perder de vista agora. Palocci, com sua delação, pode ter traído ao seu velho companheiro Lula; porém, como assinala bem Robaina, o ‘Italiano’ não mentiu nem atuou contra seus novos interesses de classe. Da mesma forma, as relações orgânicas entre Lula e a Odebrecht são indiscutíveis: ‘nunca antes na história deste país’, um político do porte de Lula agenciou tão bem os interesses subimperialistas da construtora como ele o fez. E as vinculações de outros grandes empresários (Walfrido Mares Guia, Luiz Fernando Furlan, Leo Pinheiro, etc) com Lula também são orgânicas.

Compreender esta análise marxista foi o ponto de partida acertado, e segue sendo, para construir com o PSOL e outras forças a nova alternativa contra as variantes social-liberalista e neoliberalista que dominaram e dominam o Brasil. Para isso, é preciso matar o monstrengo sindical-político engendrado pela formação social do Ornitorrinco, porque ele não vai morrer por si próprio.

(Artigo originalmente publicado no Portal de la Izquierda.)


Nota dos autores

1 Fazendo um resumo bem esquemático da orientação econômica dos 13 anos de lulismo no governo até o golpe palaciano, podemos dizer que as opções estratégicas dos governos petistas foram no sentido garantir primeiramente a sobrevivência dos privilégios dos mais bilionários, através da super-estabilidade do setor financeiro e das massivas benesses concedidas aos setores agro-extrativistas, enquanto funcionalizavam a pobreza com as políticas públicas gestados pelo Banco Mundial e estimulavam o consumo com crédito barato dos trabalhadores que, absurdamente, foram chamados de ‘nova classe média’. Acompanhando as variações e oscilações do capitalismo neste início de século e principalmente ‘os ventos chineses’, a ortodoxia neoliberal dos primeiros anos de lulismo (com Palocci, ministro da Fazenda) foi sucedida pela política de campeões nacionais (com Mantega, ministro da Fazenda) e, finalmente, voltou-se com a ortodoxia neoliberal nos últimos atos do governo Dilma (com Joaquim Levy, na Fazenda). Os programas compensatórios (que a máquina de propaganda governamental chegou a comparar com os direitos conquistados pela luta operária durante o governo Vargas ou mesmo com a Constituição de 88, fazendo o tipo de política mais rasteira em cima da fome de milhões de brasileiros) não alteraram no essencial o quadro da desigualdade social no país, como acaba de comprovar um estudo do Instituto de Thomas Piketty: de 2001 a 2015, as parcelas de apropriação de renda pelos 10% mais ricos e pelos 10% mais pobres permaneceram absolutamente as mesmas, com uma ou outra variação residual. De todo o crescimento econômico registrado no período, os 10% mais ricos amealharam 61%, deixando os 10% mais pobres com magros 18%. Ademais, é importante recordar a expansão escandalosa dos empregos precarizados e terceirizados durante o auge do lulismo, que agora este governo ilegítimo tenta consolidar de vez no ordenamento jurídico do país.


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