Dias de trabalho

Sobre as alterações de calendário realizadas pela União Soviética para superar a tradição ortodoxa russa e adequar a força de trabalho aos novos ensejos industrializantes do país.

Tony Wood 14 out 2017, 19:29

Entre as muitas coisas que desapareceram durante a turbulência mundial da Revolução Russa – juntamente com o czarismo, a aristocracia, os bancos privados, a propriedade da terra – foram os primeiros treze dias de fevereiro. Em 24 de janeiro de 1918, Lenin assinou um decreto ordenando que o país mudasse do calendário juliano, usado pela Igreja Ortodoxa, ao gregoriano, deixando a Rússia revolucionária alinhada com o resto da Europa. Os dois sistemas haviam se desviado cada vez mais do alinhamento desde o século XVI, tanto que, em 1918, fazer a mudança significava saltar diretamente de 31 de janeiro a 14 de fevereiro. A partir de então, qualquer pessoa que se refira a eventos que tiveram lugar antes deste interregno precisa ser clara se a data utilizada era em estilo antigo ou estilo novo. A mudança também explica por que o aniversário da Grande Revolução de Outubro sempre foi comemorado em novembro, o que muitas vezes confundiu visitantes à URSS.

A reforma do calendário de 1918 foi uma mudança abrupta e única, projetada para sinalizar a irreversibilidade do salto do antigo regime para o novo. Destruir a revolução agora significaria literalmente voltar no tempo – o que alguns personagens da parte superior da crosta tentam fazer no romance de Sigizmund Krzhizhanovsky, Memories of the Future (1929), quando pedem ao inventor de uma máquina do tempo para levá-los de volta aos dias de servidão. Empurrar o calendário adiante foi somente uma parte, entretanto, de uma campanha mais ampla para varrer o atraso e a superstição, e para enfraquecer o domínio da religião na vida cotidana. No início, os Sovietes inventaram uma série de cerimônias destinadas a substituir os rituais ortodoxos: além dos casamentos e funerais seculares, o governo introduziu a “Outubrização”, uma alternativa leninista ao batismo. Havia também um jornal semanal chamado Bezbozhnik—“Ateu,” “Sem Deus”—e, a partir de 1925, uma Liga de Militantes Sem Deus. Entretanto, como os bolcheviques descobriram ao longo da próxima década, grande parte do país ainda estava profundamente aferrada à religião, e ainda estava em sintonia com os ritmos estabelecidos pelas festas eclesiásticas, dias santos e similares. Mesmo os nomes dos dias da semana abrigavam uma teimosa piedade: o sábado russo é Subbota, de “Sabat”, enquanto que a palavra para o domingo é simplesmente “Ressurreição”, Voskresen’e.

Em agosto de 1929, o governo soviético decretou uma segunda reforma do calendário, que ostensivamente tinha diferentes objetivos dos da mudança de 1918. No final da década de 1920, o país estava em meio a um frenético impulso rumo a industrialização, estimulado pela adoção do primeiro Plano Quinquenal em 1928. Uma febre de construção apossou-se da nação, quando pontes, fábricas e até cidades inteiras começaram a brotar em toda a paisagem. O plano colocava uma série de metas ambiciosas que nações com bases industriais mais sólidas teriam dificuldades de alcançar; jornais soviéticos, cartazes e filmes exortavam os trabalhadores a conquistas cada vez maiores no âmbito industrial, por meio da impressão de montanhas de estatísticas e brilhantes relatórios de “competição socialista” entre as fábricas que buscavam mutuamente se superar para além dos tetos projetados pelo plano. O romance de Valentin Kataev Time, Forward! (1932) descreve uma dessas lutas, com foco em único dia em que uma fábrica tenta quebrar o recorde de concreto derramado. Surpreendentemente, a história consegue criar um pouco de suspense, com suas frases avançando com o ritmo acelerado da sociedade como um todo. (O livro mesmo começa se adiantando, ao abrir com as seguintes palavras: “O primeiro capítulo é omitido por enquanto”).


O mês de abril de um calendário de bolso do trabalhador de 1931. Aqui, os cinco grupos de trabalho diferentes são representados por cinco símbolos – um feixe de trigo, uma estrela vermelha, uma foice e martelo, um livro, um budenovka, ou boné militar de lã. Cortesia de Erste Butakov

Este foi o contexto em que Yuri Larin, economista bolchevique, começou a agitar um plano que permitiria que as fábricas operassem todos os dias do ano. No Quinto Congresso dos Soviets, em maio de 1929, ele defendeu o que foi conhecido como a nepreryvka, a “semana de trabalho contínua”1. . Isso implicou a divisão da força de trabalho em grupos e a alocação de cada dia de descanso diferente. Com efeito, o plano propôs transferir o conceito de um sistema de mudança para os dias da semana. No início, os colegas de Larin não ficaram entusiasmados – especialmente o Comissariado do Trabalho, que tinha dúvidas sobre a logística para executar muitas fábricas continuamente. (Era difícil conseguir provisões e trabalhadores para eles executarem em absoluto: os estrangulamentos eram uma maldição constante da economia soviética, e as taxas de absenteísmo eram especialmente altas nos estágios iniciais da campanha de industrialização.)2 Mas Larin aparentemente conseguiu agradar os ouvidos de Stalin e, em junho, uma proposta que semanas antes não havia sido discutida foi saudada na imprensa como “a grande ideia socialista”.

O plano de Larin envolveu mais do que uma mudança para uma semana de trabalho contínua, no entanto; isso também significou alternar a força de trabalho de um padrão de sete dias para cinco dias. Até 1929, os cidadãos soviéticos trabalhavam durante seis dias e descansavam aos domingos; a partir de agora todos trabalhariam por quatro dias com um dia de folga. Todos iriam ter mais tempo livre, porém Larin claramente convenceu os planificadores que os ganhos obtidos com as fábricas em funcionamento contínuo compensariam mais que as horas de trabalho perdidas. A força de trabalho ficaria dividida em cinco grupos, cada um com um dia de descanso diferente. Os cinco turnos foram frequentemente numerados. Em muitos casos, foram codificados pela cor – vermelho para 1, verde para 2, e assim por diante – e algumas vezes inclusive símbolos, como o martelo, a foice, a bandeira vermelha o avião e o cartão de pertencimento ao partido, foram usados para representar os diferentes grupos. O esquema de cores ou símbolos, em particular, variava de lugar de trabalho para outro. Ainda que a economia soviética estivesse centralmente planificada, muitos dos detalhes da vida cotidiana na URSS dependiam da empresa individual em que se trabalha; o mesmo se aplicava aos calendários nepreryvka, que poderiam parecer muito diferente inclusive para as pessoas empregadas no mesmo setor. Embora o princípio subjacente fosse o mesmo, a profusão de horários deve ter sido bastante desorientadora. Os benefícios para a indústria do novo arranjo de Larin foram suficientemente óbvios, mas os próprios trabalhadores ficaram menos entusiasmados. Por mais que na realidade significasse que os dias livres viriam mais rapidamente, não era garantido que familiares e amigos teriam os mesmos dias de descanso, e já em outubro de 1929, o Pravda publicava cartas de reclamações de trabalhadores decontentes (ou entediados?):

O que podemos fazer em casa se nossas esposas estão na fábrica, nossos filhos na escola e ninguém pode nos visitar, de modo que não resta mais do que ir a uma salão de chá estatal? Que tipo de vida é essa se descansamos em turnos e não juntos como um proletariado completo? Isso não é folga se você é obrigado a ficar sozinho.3

O esquema de Larin permitia alguns dias quando toda a força de trabalho pudesse ter um intervalo – cinco, para ser preciso (por isso, um dos panfletos que ele publicou para explicar como o nepreryvka expandiria o número de dias de trabalho era intitulado 360 em vez de 300). As novas festas que todos compartilhariam seriam o 22 de janeiro, em comemoração tanto da morte de Lenin quanto do aniversário do Domingo Sangrento, quando as tropas czaristas alvejaram os participantes de uma marcha pacífica dos trabalhadores em 1905; 1 e 2 de maio, para conmemorar o Dia Internacional dos Trabalhadores; 7 e 8 de novembro, para celebrar a Revolução de Outubro. Mas, além disso, havia poucas oportunidades para o descanso coletivo – o novo calendário soviético era decididamente curto nas festividades de massas, sem nada parecido com o fluxo de cerimônias civis que o calendário revolucionário francês havia previsto.


Cartaz soviético que liga feriados da igreja com embriaguez, década de 1920. Cortesia da Hoover Institution, Universidade de Stanford.

A semana contínua de cinco dias não foi apenas projetada para reorganizar os padrões laborais industriais e para espremer mais horas do mercado de trabalho. Para a maior parte da população, talvez o mais importante fosse o assalto implícito do nepreryvka, não apenas nos dias de descanso por si mesmo, mas nos fins de semana especificamente. A reforma de 1929 não havia acabado totalmente com os sete dias da semana: os calendários que traçavam o esquema de cinco dias continuavam relacionados com os dias individuais segundo seus nomes tradicionais, mas agora a semana laboral começaria em dias diferentes dependendo do seu número ou de sua cor. O que aconteceu, então, era que o ritmo de trabalho da população foi desacoplado do ciclo padrão de sete dias. Enquanto os revolucionários franceses acabaram com os velhos tempos e os meses, instituindo um calendário completamente novo, o nepreryvka soviético não era tanto uma reforma do calendário, mas uma tentativa de subtrair o significado do calendário existente substituindo-o por outro. Uma vez que o dia de descanso de um trabalhador continuaria caindo em dias diferentes, certamente nenhum dia poderia ter mais significado do que qualquer outro. Evidentemente, havia um dia em particular que afetaria mais do que outros; em teoria, a reforma tornou impossível que a população observasse adequadamente as festas religiosas ou comparecesse regularmente à igreja.

Eviatar Zerubavel, em seu livro sobre a história da semana, vê o elemento antirreligioso do nepreryvka como uma parte crucial de seu apelo à liderança soviética, e sua introdução como uma continuidade da ofensiva ateísta anterior: os dias de descanso nos finais de semana, “esses dois bastiões semanais dos sentimentos religiosos Judaico-Cristãos, foram os alvos principais”. 4 É certo que desde o ínicio a propapaganda estatal, que anuncia os benefícios da semana de cinco dias, destacou sua importância na luta contra a piedade; festivais religiosos também tendiam a encorajar pesadas bebedeiras entre os trabalhadores. Um pôster de propaganda de1930 orgulhosamente anuncia, num verso com rimas bastante torpe, que: “Em nome da eficiência econômica/ Domingos foram queimados como tocos podres: / Já não há mais uma completa ociosidade festiva! Todo mundo tem seus próprios dias de folga!”. O cartaz retrata um trabalhador calculando quantos dias ele recebe por ano (a resposta é setenta e dois); talvez foi esta aritmética nacional que permitiu o pôster afirmar que o nepreryvka “eleva o nível cultural do trabalhador”.


Fora com o velho. Pôster de 1930 em defesa de nepreryvka, que é retratado como um martelo que expulsa a influência da religião do calendário. O texto no final é um poema satírico de Dem’ian Bednyi. Cortesia da Hoover Institution, Stanford University.

Ainda que devesse se limitar à indústria e se implementar gradualmente, a nova semana laboral continua de cinco dias estendeu-se rapidamente. Dentro de um ano, a maioria esmagadora dos empreendimentos industriais relatavam que eles já tinham aderido ao novo regime, e um grande número de locais de trabalho em outros setores juntaram-se a eles, inclusive repartições governamentais, comércios, cinemas e restaurantes.5 O nepreryvka trouxe uma alteração profunda aos ritmos de vida cotidiana e lazer para toda a força de trabalho. Neste sentido, o argumento de Zerubavel que era principalmente uma reforma antirreligiosa podia estar exagerando suas credenciais ateias: em todo caso, o nepreryvka de cinco dias não era tanto um movimento destrutivo anti-Ortodoxo como um gesto de fé secular em industrialização, uma tentativa de trazer vida diária alinhada com as demandas da era da máquina.

Contudo, não passou muito tempo antes de que a semana contínua de cinco dias se defrontasse com problemas bastante previsíveis: a decomposição da maquinaria através do uso excessivo, a má coordenação de turnos, os estrangulamentos de oferta mais freqüentes, as queixas de empregados que nunca viram suas famílias. Em junho de 1931, Stalin fez um discurso em que se queixou de que “alguns de nossos camaradas foram um pouco precipitados em apresentar a semana de trabalho ininterrupta; com pressa, distorceram-na e transformaram-na em um sistema de falta de responsabilidade pessoal”.6 O sistema foi então substancialmente alterado mudando para um padrão de seis dias—cinco dias de trabalho, um dia de folga— e, crucialmente, dando a todos o mesmo sexto dia de folga. Os dias de descanso foram fixados no sexto, décimo segundo, décimo oitavo, vigésimo quarto e trinta dias de cada mês; os domingos foram despojados de seu lugar regular como ponto final da semana. Na verdade, a semana de seis dias, ou shestidnevka, era, como sua antecessora de cinco dias, projetada para habitar e deslocar gradualmente a semana de sete dias, como um ovo de cuco colocado no ninho de outro pássaro. Os calendários do final da década de 1930 mostram meses divididos em ciclos de seis dias, com os nomes tradicionais dos dias úteis agora substituídos por números ordinais: primeiro, segundo e terceiro etc. Os meses consistiam em cinco semanas de seis dias, mais, em alguns casos, um trigésimo primeiro dia que ficava sozinho, e que geralmente era um dia útil “de bônus”.

Essa versão revisada da reforma provou-se mais resistente, durando até 26 de junho de 1940. Zerubavel argumenta que, ao longo do curso da década de 1930, a reforma do calendário com efeito dividiu a população soviético em “duas sociedade distintas”, um segmento urbano industrial que opera num ciclo secularizado de seis dias e os moradores do interior rural, que completamente desconsiderou os novos calendários elaborados em Moscou e continuou a seguir o “batente” de sete dias – continuando com seus mercados camponeses e indo à igreja aos domingos.7 A esse respeito, a abolição do shestidnevka pode ser vista como uma vitória para o antigo ciclo de sete dias e para o passado profundo e rural, que eventualmente se reafirmou apesar das ambições secularizadoras do estado soviético.


Pôster contrastando celebrações frívolas da Páscoa no passado com o compromisso do novo trabalhador comunista, década de 1920. Cortesia da Duke University Libraries.

Mas essa visão pôde resistir a uma oposição entre o reino industrial, urbano e um mundo agrário que se arrasta a pé. O que aconteceu durante a década de 1930 foi muitas vezes uma fusão paradoxal dos dois. Nesta década, a URSS experimentou um dos processos mais rápidos e extensivos de urbanização que o mundo já viu; ao mesmo tempo, o fluxo humano do interior do país foi tão enorme que terminou “ruralizando” as cidades — daí o título contraditório do retrato de Moscou feito por David Hoffmann nos anos 1930s, Peasant Metropolis [Metrópole Camponesa].8 O trabalho industrial, também, foi parcialmente ruralizado. As fontes soviéticas estão repletas de queixas sobre o fracasso dos migrantes recém-chegados para derramar seus velhos hábitos de trabalho, em particular a tendência de relaxar por longos períodos de tempo apenas para compensar uma corrida frenética quando os prazos se aproximaram – um padrão de “assalto” que permaneceu uma característica da economia soviética até o fim. Todo o caráter do sistema soviético, em outras palavras, foi moldado pela colisão e confusão dos ritmos rurais e urbanos. Mais do que ver uma vitória de um sobre outro, é possível chamar isso de um empate; enquanto grande parte da população seguia observando as tradições religiosas às escondidas, o país que retornou ao padrão de sete dias em 1940 tinha se transformado numa superpotência industrial. Quando foi testado na Segunda Guerra Mundial, a URSS acabou superando a máquina industrial alemã – e o resultado definitivamente não foi um empate. O feriado público mais importante na Rússia ainda é o Dia da Vitória, comemorando a rendição alemã final de 1945. Aqui, porém, os calendários russo e ocidental diferem: os outros Aliados da Segunda Guerra Mundial marcam a ocasião em 8 de maio, quando o ato de entrega foi elaborado; os russos, seguindo os soviéticos, escolhem, em vez disso, lembrarem o 9 de maio, quando os documentos foram realmente assinados, nas pequenas horas de uma manhã de quarta-feira em Berlim.

(Fonte: http://cabinetmagazine.org/issues/61/wood.php)


Para uma primeira descrição das origens e implementação do nepreryvka, ver [n.a.], “The Continuous Working Week in Soviet Russia,” International Labour Review, vol. 23, no. 2, February 1931; see also Eviatar Zerubavel, The Seven Day Circle: The History and Meaning of the Week (New York: The Free Press, 1985), pp. 35–43.

R. W. Davies, The Industrialisation of Soviet Russia, vol. 3, The Soviet Economy in Turmoil, 1929–1930 (London: Macmillan, 1989), p. 85.

Citado em [n.a.], “The Continuous Working Week in Soviet Russia,” p. 176.

Eviatar Zerubavel, The Seven Day Circle, p. 36.

Ver [n.a], “The Continuous Working Week in Soviet Russia,” pp. 164–166.

Joseph Stalin, “New Conditions—New Tasks in Economic Construction,” discurso proferido em 23 de Junho de 1931. Publicado em Joseph Stalin, Works, vol. 13 (Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1954). Disponível aqui .

Eviatar Zerubavel, The Seven Day Circle, p. 42.

David L. Hoffmann, Peasant Metropolis: Social Identities in Moscow, 1929–1941(Ithaca, NY: Cornell University Press, 1994).


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