Por um feminismo afro-latino-americano
Considerações teóricas a respeito do feminismo de uma perspectiva brasileira.
Neste ano de 1988, Brasil, o país com a maior população negra das Américas, comemora o centenário da lei que estabeleceu o fim da escravização neste país. As celebrações se estendem por todo território nacional, promovidas por inúmeras instituições de caráter publico e privado, que festejam os “cem anos da abolição”. Porém, para o Movimento Negro, o momento é muito mais de reflexão do que de celebração. Reflexão porque o texto da lei de 13 de maio de 1988 (conhecida como Lei Áurea), simplesmente declarou como abolida a escravização, revogando todas as disposições contrarias e… nada mais. Para nós, mulheres negras e homens negros, nossa luta pela liberdade começou muito antes desse ato de formalidade jurídica e se estende até hoje.
Nosso empenho, portanto, se dá no sentido de que a sociedade brasileira ao refletir sobre a situação do seguimento negro que dela faz parte (daí a importância de ocupar todos os espaços possíveis para que isso suceda) possa voltar-se sobre si mesma e reconhecer nas suas contradições internas as profundas desigualdades raciais que a caracterizam. Neste sentido, as outras sociedades que também compõem essa região, neste continente chamado América Latina, quase não diferem da sociedade brasileira. E este trabalho, como reflexão de uma das contradições internas do feminismo latino- americano, pretende ser, com suas evidentes limitações, uma modesta contribuição para o seu avanço (depois de tudo, sou feminista).
Ao evidenciar a ênfase direcionada a dimensão racial (quando se trata da percepção e do entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão. Por outro lado, baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A essa mulheres-exceção eu as chamo de irmãs.
Feminismo e Racismo
É inegável que o feminismo como teoria e prática vem desempenhando um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao apresentar novas perguntas, não somente estimulou a formação de grupos e redes, também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o encaminhamento das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou todo um debate público em que surgiu a tematização de questões totalmente novas – sexualidade, violência, direitos reprodutivos, etc. – que se revelaram articulados as relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaços por parte de homossexuais de ambos os sexos, discriminados pela sua orientação sexual (Vargas). O extremismo estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o mundo não foi mais o mesmo.