Olho por olho em Santiago

A luta no Chile continua.

Bruno Magalhães 12 dez 2019, 12:49

“Ojo! Nuestras cameras te están mirando”

“Ojo!”, ou “olha!” em português, é uma expressão chilena para “atenção!”. E quem chega ao centro de Santiago rapidamente vê os cartazes do governo exigindo atenção com a mensagem “nossas câmeras estão te olhando”, uma ameaça fracassada aos milhares de compradores do mercado informal que lotam as ruas próximas da Estação Central.

O cartaz oficial ironicamente remete a duas questões centrais sobre o estallido, a explosão social que incendiou o país nas últimas semanas. Primeiro porque é impossível ler a palavra “olho” no Chile atual sem pensar nos quase trezentos manifestantes feridos nos olhos pela polícia, muitos com lesões permanentes. Faixas e pichações por toda a cidade dizem coisas como “viver no Chile custa o olho da cara” ou “o governo quer nos deixar cegos”, denunciando a intensa repressão policial que também levou até o momento à 24 mortes, centenas de denúncias de violência sexual nas delegacias e milhares de feridos.

Além disso, a ameaça de vigilância no cartaz do governo remete diretamente à chamada “democracia controlada” vigente no país. O Chile possui a mesma Constituição desde a ditadura de Augusto Pinochet e toda sua legislação tem como característica principal a manutenção do modelo neoliberal antidemocrático que levou a maioria da população a uma situação de limite. Praticamente todos os bens comuns do país foram privatizados, o índice de endividamento familiar é o mais alto do mundo, uma imensa maioria dos idosos vive com pensões miseráveis, a educação e a saúde são completamente mercantilizadas e o custo de vida é um maiores da América Latina.

O estallido começou com a declaração do aumento da tarifa do metro de Santiago em trinta pesos no fim do mês de outubro. Trinta pesos equivalem hoje a cerca de 16 centavos de real, e foi este aumento que levou um grupo de jovens do distrito pobre de Maipú a realizar uma ação de evasão da tarifa que foi violentamente reprimida. O apoio popular aos jovens acendeu o pavio e levou a uma onda de mobilizações que se espalhou e atingiu inclusive pequenas cidades do interior. A palavra de ordem “não são trinta pesos, são trinta anos” chegou a localidades do interior que nunca sonharam com obras do metro, mas traduzia o sentimento geral de insatisfação popular. É impossível não lembrar da frase “não são só 20 centavos” que tomou o Brasil nas jornadas de junho de 2013.

O presidente Sebastián Piñera, que semanas antes havia declarado o Chile com um “oásis” perante as mobilizações na América Latina, reagiu inicialmente com uma arrogância típica do autoritarismo e declarou que o país se encontrava “em guerra”, instituindo o estado de emergência com toques de recolher e controles de circulação por todo o país. Mas, ao invés de intimidar a população, as medidas repressivas do governo levaram a um aumento da mobilização que colocou o regime político chileno na maior defensiva desde as mobilizações que culminaram no fim da ditadura cívico-militar. Tomou então medidas paliativas, como um aumento irrisório nas aposentadorias, que também não conseguiram reduzir a mobilização que se expandia cada vez mais.

O alvo dos manifestantes chilenos é nítido, estão lutando contra o neoliberalismo. Esta modelo econômico está na boca da população de Santiago, tanto nas grandes manifestações e assembleias de vizinhos como também nos ônibus e nos bares, e a compreensão desta origem política dos problemas do sistema chileno parece ter se espalhado tão profundamente como a revolta espontânea que quebra a rotina do país. A ideia de que o Chile foi o berço e será o caixão do neoliberalismo politiza o processo de maneira impressionante, levando famílias trabalhadoras a ocuparem as ruas de suas vizinhanças e gerando uma mudança cultural de proporções enormes em um país marcado pelo estímulo ao individualismo, à competitividade e à meritocracia.

Esta mudança é muito comentada. O adolescente Mascota, “mascote” em português, é um secundarista de Maipú que se recusa a dizer seu nome real mas é assertivo sobre o tema: “antes as pessoas não conheciam seus vizinhos, não ligavam para os problemas dos outros, e agora sabemos que temos que nos cuidar e nos ajudar”. Já Cristian, torcedor do Universidad de Chile que marchava com torcidas de futebol adversárias na Praça da Dignidade, é categórico: “a união foi o melhor que aconteceu, perdemos muito lutando entre nós e agora lutamos contra um só inimigo, o governo”. Alfredo, um motorista de Uber idoso cuja aposentadoria não cobre seus gastos mensais, também não tem dúvidas: “nosso povo teve uma educação muito errada, ninguém aprendeu a pensar nos outros, mas agora as pessoas estão juntas de novo. E o governo só ouviu os protestos porque foram violentos”.

Esse novo espírito gera até cenas engraçadas, como a do sujeito que parou o carro ao lado de uma assembleia de vizinhos e recebeu rapidamente várias ofertas de ajuda com o carro “quebrado” ou do cantor desafinado que apresentou-se em um ônibus e não ganhou nenhum aplauso, mas recebeu moedas de quase todos os passageiros no final. No bairro de Quatro Alamos as pessoas retomam o espírito comunitário fazendo jantares coletivos no meio das ruas enquanto no bairro de Andes del Sur, do outro lado da cidade, lideranças de vizinhos se reúnem para debater teoria do direito frente à questão do novo processo constituinte.

As assembleias de bairros e os cabildos são novas expressões de organização popular que estão se reunindo por todo país, debatendo tanto suas demandas sobre problemas locais como em questões nacionais. As milhares de pessoas que agora constroem estes espaços vêem-se como parte de um processo que pode realmente mudas suas vidas, e mesmo que ainda não esteja consolidada uma organização nacional das assembleias e cabildos, este parece ser o caminho para a consolidação desta nova forma fazer política que surge no Chile. E os dilemas apresentados por esta construção são os mais importantes que os novos e velhos movimentos sociais devem resolver.

Apesar da mobilização permanente das periferias de Santiago, o epicentro simbólico é a antiga Praça Itália, agora renomeada Praça da Dignidade e para onde convergem as grandes manifestações. Mantendo um elemento constante de sublevação, e sempre cantando “las balas que nos tirarón van a volver” (as balas que nos atiraram vão voltar), o enfrentamento contra a repressão na Praça da Dignidade acontece todos os dias, e a tensão entre manifestantes e a polícia leva a ferimentos e prisões a todo momento. O gás lacrimogêneo muitas vezes deixa o ar da praça irrespirável, sendo sentido a quarteirões de distância, e os “pacos” ficam ainda mais violentos ao anoitecer.

Os “pacos” ou a “yuta” são formas pejorativas usadas generalizadamente pela população para se referir aos carabineros, a polícia militar chilena. Esta polícia tem um aparato repressivo muito desenvolvido, com a larga utilização de veículos blindados no policiamento ostensivo e um histórico de violência que remonta à ditadura pinochetista. É preciso lembrar que, mesmo após o fim da ditadura em 1988, o ditador Pinochet continuou como responsável pelas Forças Armadas até 1998 e depois disso ainda tornou-se senador vitalício. Ou seja, as forças da ditadura ainda estão muito presentes na sociedade chilena e os “pacos” são uma forte expressão disso.

Além disso, policiais e militares tem um regime de previdência diferenciado e não são regidos pelo odiado sistema das Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), o sistema de previdência privada chileno que leva ao rebaixamento total da renda dos aposentados. Enquanto reprimem aqueles que lutam contra as AFPs, os “pacos” e “milicos” lutam também pela manutenção de seus privilégios perante o resto do povo. Não por acaso, um dos símbolos da juventude que vai às ruas no estallido é oMatapacos, desenho de cachorro com um lenço no pescoço inspirado em um cachorro real que acompanhava as manifestações há alguns anos atrás.

Mas o símbolo principal deste levante popular é a bandeira Mapuche, que junto com as bandeiras nacionais está presente em todos os lados da cidade. É um símbolo muito forte se levado em conta as campanhas genocidas contra o povo Mapuche durante séculos e mesmo hoje, com a militarização da região de Wallmapu no extremo sul do país. A bandeira Mapuche representa a resistência não somente contra o governo de Piñera, mas contra todo um modelo colonial e neocolonial que formou uma sociedade profundamente excludente e violenta contra seus diversos povos.

O papel das mulheres e do movimento feminista também é central. Os lenços verdes da luta pelo direito ao aborto estão bastantes presentes em todas as manifestações e nas ruas, e as companheiras cumprem papel protagonista em todos os aspectos do estallido. Das assembleias de bairro à linha de frente da resistência à repressão, são mulheres de várias idades que representam aquilo que há de mais dinâmico e avançado no processo, transformando esta luta social uma luta evidentemente também contra o patriarcado e suas expressões na violência de estado. A performance “Um estuprador em seu caminho”, do coletivo feminista LaTesis, hoje é reproduzida em ruas e praças de todo o mundo e demonstra o caráter universal desta mobilização.

Um desafio enorme se coloca a frente do movimento popular chileno nesse momento. Há duas semanas o presidente Piñera deu um ultimato de 48 horas aos partidos políticos oferecendo um acordo para uma nova constituinte, umas das pautas mais importantes do estallido, e o chamado Pacto Social foi assinado ou apoiado rapidamente pela grande maioria dos partidos chilenos, da direitista UDI à setores da nova esquerda da Frente Ampla.

O que para alguns foi um avanço para outros foi uma traição. Houveram importantes rupturas partidárias (como a do prefeito Jorge Sharp, de Valparaíso, que rompeu com seu partido Convergência Social, agrupação da esquerda da Frente Ampla) e chegou-se a uma situação que parece contrapor a maioria parlamentar ao sentimento das ruas. O Pacto foi assinado na madrugada, enquanto a repressão continuava nas ruas, e seus apoiadores acabaram tirando sua aposta da mobilização social para investir em um calendário institucional. Por ele, um plebiscito sobre a mudança constitucional vai se realizar somente em abril e iniciará um processo constituinte que pode levar anos para se finalizar.

Esta saída institucional foi proposta no momento mais crítico do governo Piñera até então, e se especulava inclusive a possibilidade de sua queda (algo que seria inédito no pais) quando o Pacto Social foi firmado e reorientou a direção do processo rumo à retomada da estabilidade política. A burguesia chilena prometeu entregar os anéis para não perder os dedos, mas ainda não entregou nenhuma medida que sinalize alguma mudança concreta no eixo dos problemas da população, o sistema econômico.

O critério de quórum acordado para as votações do novo processo constituinte são dois terços dos votos, um número alto que pode barrar avanços sociais importantes caso a direita mantenha seu padrão de votação nas futuras eleições para os deputados constituintes, planejadas para outubro de 2020. Outro problema está relacionado à questões como a garantia de paridade de gênero no processo constituinte, ao modo de participação dos povos originários e aos mecanismos de investigação e punição para os violadores dos direitos humanos durante as manifestações.

Um setor importante apostou no Pacto Social como a saída para uma nova Constituição, defendendo-o como uma vitória impensável por anos, mas parece que a mobilização e a politização do povo chileno já abriu espaço para vitórias muito mais contundentes. Nada está resolvido, e a luta que se desenvolver nos próximos meses vai ser decisiva para que estas vitórias sejam conquistadas.

De qualquer forma, o que fica evidente no cenário chileno atual é que as próximas vitórias populares só serão conseguidas com organização e mobilização permanente das assembleias de vizinhos, dos cabildos e das organizações combativas. Nesta luta olho por olho o único caminho da vitória popular está nas ruas.

Fonte: Observatório Internacional.


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