Entrevista com David Miranda

Deputado concedeu entrevista ao Le Monde Diplomatique.

David Miranda 29 abr 2020, 20:25

Em tempos de pandemia, na qual as opções de sobrevivência são menores e as vulnerabilidades se somam, ter referências de vidas que emergiram de cenários adversos é essencial. Uma dessas histórias é a do David Miranda, hoje deputado federal (PSOL-RJ), que já passou por situações que seriam dignas de filmes. Desde cedo, o amor foi um fator transformador na sua vida, passando pelo exemplo da sua tia, até o seu companheiro, com quem é casado há 15 anos e juntos constituíram uma família.

David Miranda é o mais novo dos sete filhos de Sonia, uma mãe solo que trabalhou como prostituta para sustentar sua família, e que acabou morrendo vítima de um tumor gerado no útero. A morte foi consequência da violência obstétrica sofrida durante o parto de um bebê que anos mais tarde se tornaria deputado federal. O pequeno David perdeu sua mãe com apenas 5 anos de idade, além disso nunca conheceu seu pai e nem os pais dos seus irmãos.

Após ficar órfão, o menino foi acolhido pela sua tia Eliane, irmã da sua mãe, que teve quatro filhos e acabara de perder o marido. Já seus irmãos tiveram outros destinos, alguns foram parar na Fundação Casa, outros simplesmente sumiram. Na infância foi da tia Eliane o papel de estimular o jovem David à leitura e a buscar nos livros uma saída para as dificuldades, e fugir dos caminhos em torno da criminalidade.

Ainda na juventude, o atual deputado federal trabalhou como engraxate, entregador de panfleto, faxineiro, office boy e atendente de telemarketing para se manter, mas em tempos conturbados chegou a dormir na rua. Nessas idas e vindas da vida, David conseguiu abrigo com alguns primos que moravam em outra região do Rio de Janeiro e decidiu voltar a estudar após um tempo parado por conta de suas ocupações para sobreviver.

Após conhecer o seu companheiro, com quem hoje é casado, David decidiu começar a estudar Marketing e Publicidade. Agora estudando, e ainda trabalhando como telefonista, o jovem traçou o objetivo de ajudar Glenn de alguma forma na sua carreira como jornalista. Em 2016, concluídos os estudos e acumuladas as experiências, David decidiu se candidatar a vereador do Rio de Janeiro. Com sua vivência diretamente ligada a realidade do Rio, o fruto da favela Jacarezinho conseguiu se eleger.

Durante sua atuação como vereador na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, David conheceu Marielle Franco, de quem se tornou um grande amigo e colega. Ambos representantes LGBTQI+, negros e vindos de favela logo se identificaram com as mesmas lutas. A morte da amiga é definido por David como um dos piores dias da sua vida.

Na capital carioca, em dois anos de mandato como vereador, David teve mais de 15 projetos e proposições aprovadas, entre as quais se destacam a que garante o direito ao uso do nome social nas instituições públicas por travestis, mulheres e homens transexuais; e projeto que determina prioridade ao pagamento dos servidores da Prefeitura, impedindo o congelamento ou parcelamento da remuneração ou, ainda, que outra despesa municipal seja paga antes do trabalhador. Projeto com o mesmo teor foi apresentado, posteriormente, na Câmara dos Deputados.

Após o seu colega de partido Jean Wyllis desistir do seu mandato de deputado federal, David foi empossado em 2019 por ser seu suplente. Já na Câmara Federal, o seu primeiro projeto de lei determina medidas protetivas para a população LGBTI, relacionadas à Lei Maria da Penha, com mecanismos para proteger pessoas em situação de violência. A medida apresenta também uma proposta que determina quais órgãos públicos devem afixar placas do Disque 100, para denúncias de violência especializadas em raça e etnia. O deputado também propôs o projeto que cria ações para combater o suicídio e o sofrimento psíquico de profissionais da segurança pública, como os policiais.

Como é a vida de uma criança órfã numa favela?

É muito comum nas favelas e periferias ter uma quantidade enorme de crianças que ficam órfãs muito cedo. No meu caso, eu tive a família da minha mãe, pude ter apoio emocional e estrutural. Minha tia que virou minha mãe, minhas primas e meus primos, então assim, é uma situação difícil, mas eu ainda tive muita sorte por ter essa família que me deu muita base.

Quanto pesam as vivências da sua infância e adolescência no seu presente como parlamentar?

A minha juventude e a minha infância pesam muito, porque hoje em dia eu quero fazer um trabalho para essas pessoas. Eu faço um trabalho no intuito de ajudar essas pessoas o tempo todo. Então é muito gratificante poder trabalhar para as pessoas que eu represento e uma camada da população que eu fui e sou dentro da sociedade. Minha família ainda mora nas favelas, os meus amigos ainda moram nas favelas, a comunidade negra continua sendo a que mais morre. Ser LGBT, representar a minha família e com todos esses fatores desse lugar onde eu tô é muito importante. A minha juventude e a minha Infância tem um papel primordial no que eu faço hoje com a política na minha vida.

Quão importantes são as políticas de defesa dos direitos humanos para quem mora na periferia?

São de extrema importância. Eu escutei uma frase de uma mãe dizendo isso: que só vai entender o que é direito e o que é um juiz, quando tá de frente com o juiz nos juizados. Então os direitos humanos são de extrema importância para a gente conseguir ter no mínimo uma justiça social para esses locais, porque falta saneamento básico, água, educação, saúde, segurança, lazer, falta tudo nesses locais, nas favelas, nas periferias. Os direitos humanos são essenciais para a política das periferias e das favelas.

Nas periferias do Brasil existe a presença incisiva do crime e da violência policial e pouco é feito pelo Estado para combater isso. Como foi para você, um jovem favelado, ter tido esse contato tão cedo com esses fatores?

É muito difícil. O primeiro corpo morto que eu vi eu tinha 8 anos de idade, saindo de casa para ir para escola. A violência policial nesses lugares é massiva. Existe a criminalidade, que é um fruto das periferias e de um caps social e econômico que é fruto do capitalismo, mas ao mesmo tempo a violência estrutural do Estado com as periferias e favelas é um fator decisivo político que é tomado pelos governos que a gente tem. No entanto, até agora os dados mostram que com a quarentena muito menos pessoas estão morrendo por causa das operações policiais. A gente precisa ter mais inteligência na polícia, menos operação e menos bala nas favelas. Isso me afetou muito, porque hoje eu quero fazer um trabalho em prol das favelas, como eu venho fazendo desde sempre, porque eu vivo essa realidade ainda. Por mais que eu não esteja morando numa favela agora, minha família mora, minha mãe mora, minhas sobrinhas moram, meus irmãos, todos eles moram. Então eu vejo no WhatsApp, vejo em todas as situações quando acontece algum tipo de crime. Quando tem operação eu fico com coração apertado, porque pode ser um sobrinho meu que pode ser assassinado, pode ser uma sobrinha minha, pode ser minha mãe tomando um tiro perdido. É muito complicada essa situação da violência policial. Por isso que eu trabalho bastante. Inclusive pelos policiais, fazendo projeto anti suicídio, conseguindo verba para polícia civil carioca, para assim poder investir mais em inteligência do que investir em aparato policial e em operações na favela. Com inteligência você consegue combater muito mais crime o organizado do que com um aparato violento do Estado.

Como você se sente quando um governador como Wilson Witzel é eleito e chega com um discurso de institucionalização da violência policial nas periferias?

É uma tristeza muito grande quando a população se volta para um discurso populista e que minimiza os fatos do grande problema social e econômico que nós temos. Falando que bandido bom é bandido morto, o Witsel surfa nessa onda do bolsonarismo, que é de extrema direita e vem ganhando espaço aqui no Brasil e no mundo inteiro. Essa onda é muito perigosa para humanidade, mas ao mesmo tempo é uma resposta ao progresso que o mundo vem vivendo nesses últimos tempos. Em questões de abrir os olhos da população sobre questões de gênero, raça, sexualidade, xenofobia e muitos outros. A qualidade social e econômica vem sendo debatida cada vez mais em filmes, revistas, jornais, e isso faz com que um conservadorismo extremo seja utilizado como massa de manobra para manter o poder daqueles que sempre estiveram no poder. Então, o extremismo chega para ser fator decisivo. E não vamos nos enganar, porque o fator que traz o extremismo de direita vem contemplado com fatores econômicos fundados por bases muito retrógradas, com líderes religiosos e grandes empresários. É isso que faz uma boa combinação para a extrema direita se manter no poder. É muito complicado quando a gente tem um governador desse no estado do Rio de Janeiro, assim também como um presidente.

Quão necessárias são para as pessoas marginalizadas as políticas de contenção e assistência social (políticas de cotas raciais, de gênero, bolsa família, etc)?

São de extrema importância. A cota racial, de gênero e Bolsa Família são essenciais. Hoje o mundo inteiro está debatendo sobre uma renda emergencial para a população. Esse debate deve continuar lá na frente para aquecer a economia. Para fazer uma distribuição mais igualitária. Eu acho que o mundo vai passar por uma revisão de valores, que é importante para entender onde a gente tá agora, porque tá muito clara a divisão econômica e social do mundo inteiro, e principalmente no Brasil. Essas medidas são extremamente necessárias e eficientes também. As cotas raciais provaram muito isso, só que elas ainda não são suficientes. O Estado precisa ter mais poder para dialogar diretamente com o setor privado e o terceiro setor, para que isso seja um acúmulo cada vez maior e a gente poder ter uma sociedade mais contemplada em todos os sentidos, com menos desigualdade econômica e social.

Quanto mudou sua vida a presença do Glenn Greenwald? Você vê o amor como uma potência transformadora?

A gente se conheceu quando eu tinha 19 anos. Oito meses depois o Glenn começou a escrever, ele sempre queria escrever, e ele se transformou num dos maiores jornalistas do mundo. Referência para vários intelectuais, que é difícil até de citar. E sim, o amor é uma das maiores potências. Faz você se transformar. Você olha para pessoa que está do lado e você quer ser uma pessoa que dá suporte, que vai sonhar junto, que vai caminhar junto, que vai fazer milhares de coisas juntos. Então o amor transforma porque existe cumplicidade e carinho. Existe toda uma base que se estrutura para você se transformar em várias coisas diferentes. Sem sombra de dúvida, um dos fatores que mudou bastante minha vida foi quando a gente se conheceu, há mais de 15 anos, e desde então a gente continua junto até hoje.

Neste ano de 2020 completam dois anos da morte de quem foi uma grande amiga e colega sua. De que forma a Marielle seria importante nesse momento tão delicado da política e da saúde no Brasil?

A Marielle estaria lutando em todas as fronteiras. Dando discursos, fazendo lives, fazendo política para população periférica, da favela, mas para a população carioca e brasileira também. Ela seria uma grande voz a se somar com a gente. Faz mais de vinte e cinco meses que a gente pergunta quem mandou matar, e temos suspeitas e tudo mais, mas Marielle estaria fazendo um grande trabalho. Ainda mais agora nessa situação política caótica que a gente tá vivendo.

Ultimamente, além da covid-19 e do processo de impeachment contra Jair Bolsonaro, o que também tem mexido com os sentimentos e emoções do brasileiro é o Big Brother Brasil. Você inclusive se posiciona constantemente nas suas redes sociais sobre o reality. Fato é que o BBB tem obtido audiências impressionantes, segundo o IBOPE a produção da Rede Globo desbancou as outras emissoras com média de 30 pontos na preferência dos brasileiros. Nas redes sociais acontece o mesmo, o assunto está sempre no topo dos mais comentados. Como um programa como esse pode servir para reflexão política e social sobre o comportamento do brasileiro?

O Big Brother é um espelho de vários cortes da sociedade, apesar de não acompanhar pela televisão, acompanho pelas redes sociais. Nós tivemos e ainda estamos tendo no programa deste ano, muitos debates sobre racismo, racismo estrutural, gênero, identidade de gênero, LGBTfobia, machismo, que foi uma das pautas fortes. Tivemos vários debates influenciando a sociedade. E o corte que é feito, eu não sei como a Rede Globo faz, mas tem um corte ali que você vê várias pessoas do país e de várias áreas diferentes, de situações econômicas ou não. Isso dá um grande impacto para a população. Eu acho que ver isso, e entender a reação das pessoas, é um prato cheio para todos os sociólogos e antropólogos para analisar a situação atual que a gente vive no Brasil e no mundo. O Big Brother mostra muitas classes diferentes, várias tribos diferentes. Assistir o programa não quer dizer que você tá assistindo totalmente a população brasileira, mas dá uma mostra do que um pouco da sociedade brasileira é e pensa. Então é muito interessante olhar por esse aspecto o Big Brother Brasil nessa última temporada.

Os ataques do presidente contra a classe jornalística do país têm se intensificado. Seja descredibilizando ou fazendo “piadas” com temas sérios, ridicularizando os profissionais e incentivando seus apoiadores a fazer o mesmo. Agora, em um período crítico da saúde e com o país ainda mais dependente dos veículos de informação, os ataques persistem. Para você, que além de deputado federal é jornalista e companheiro de outro jornalista que já foi muitas vezes atacado pelo Bolsonaro, como enxerga todo esse cenário, existe perseguição a classe?

Obviamente! O Bolsonaro persegue a classe jornalística há muito tempo. Não é de hoje. Antes ele já agrediu jornalistas fisicamente os empurrando, ele já insultou jornalistas, ameaçou jornalistas, já assediou. Ele se sente ameaçado pela exposição do que ele representa. O jornalismo na sua melhor fase, ou jornalismo na sua essência, é mostrar o que os poderosos estão fazendo. O jornalismo investigativo é isso, é expor, mostrar e questionar tudo que o sistema está fazendo. Jornalistas que fazem isso são uma ameaça ao que o bolsonaro significa, que é o atraso, a ignorância. Então sem sombra de dúvida ele faz ataques porque a classe jornalística é uma ameaça ao seu posicionamento de vida e a quem ele é, uma farsa que ele sempre manteve. Ele é um péssimo político, um péssimo líder. Agora ele tá isolado e com certeza vai ser impeachmado

Como você imagina um Brasil no futuro, como você imagina o Brasil para os seus filhos?

É uma das razões para que eu ainda não tenha desistido da política. Porque eu acredito que a gente pode melhorar metendo a mão na massa e fazendo as pessoas terem mais conscientização. Hoje em dia eu tenho uma plataforma que me dá a possibilidade de dialogar no congresso com amplos setores da direita, do centro, da esquerda, com presidente da Câmara, presidente do senado, propor a sociedade civil, a unidade, um montão de coisas. Mas isso tudo sempre construído com uma base de carinho, de afeto, de escutar os profissionais, as pessoas que têm a vivência de situações que eu proponho lá. Eu acho que nós vamos sair da pandemia no Brasil mais fortalecidos como sociedade, porque estamos prestando mais atenção nos políticos. Não teremos um messias para nos salvar, entenderemos que os sistemas do Brasil, de saúde, de educação, tudo isso precisa ser público e fortalecido. Vai ter um entendimento de classe social mais amplo, vamos ter mais afeto uns pelos outros. Então eu acho que o Brasil pós pandemia vai ser um Brasil melhor. Eu vejo diferente do que Cazuza cantava, vejo o futuro repetir o passado, não, eu vejo um futuro diferente, eu vejo um futuro que, não só no Brasil mas no mundo inteiro, nós vamos ter mais consciência do próximo, do que o próximo sofre. Todos nós estamos sofrendo com isso, com medidas diferentes, mas o olhar ao próximo nesse período vai ser essencial. Eu acho que o mundo vai passar por uma transformação muito grande. Eu como otimista, penso por um lado muito positivo para toda a humanidade.

Entrevista realizada por Uesley Durães e Juan Manuel P. Domínguez para o Le Monde Diplomatique. Reprodução da versão publicada no site de deputado.

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Pedro Micussi