Contradições dos protestos na Bielorrússia: que podemos aprender

A crise na Bielorrússia se intensifica.

Aleksandr Buzgalin 10 set 2020, 12:51

A crise na Bielorrússia está se intensificando e, mesmo que Alexander Lukashenko consiga se manter no poder, sua autoridade continuará precária. Na sociedade deste país, a compreensão da necessidade de mudança e a preparação para lutar por ela amadurecerão ainda mais. Não importa como a situação se desenvolva, é claro que a Bielorrússia (e não apenas a Bielorrússia) não será mais a mesma do último quarto de século. Uma questão é se os cidadãos, membros da esquerda, e os governos dos países pós-soviéticos conseguirão compreender os acontecimentos que se desenrolam agora na Bielorrússia para tirar as lições apropriadas.

Uma outra questão, não menos causadora de perplexidade, é qual será o conteúdo dessas lições. À primeira dessas questões, estou inclinado a responder negativamente. Provavelmente, as pessoas envolvidas falharão mais uma vez em aprender alguma coisa, mas isso não deve poupar os teóricos de esquerda de tentar explicar o significado dos eventos. Ainda não chegou o momento de conclusões definitivas, mas algumas reflexões iniciais podem e devem ser aventadas.

Lição um: a estagnação não pode durar para sempre

Começarei com o óbvio: sistemas que parecem completamente estagnados, nos quais o poder econômico e político reside fundamentalmente na burocracia, enquanto os cidadãos são reduzidos a desempenhar o papel de consumidores passivos de “ações benéficas” mais ou menos significativas por parte de um estado paternalista, existem, no máximo, por algumas décadas.

A razão de sua degeneração é bem conhecida: os sistemas em que o poder econômico e político é exercido basicamente pela burocracia estatal são instáveis por princípio. Eles são capazes de existir apenas como formas de transição em um processo geral de desenvolvimento. A tendência desse desenvolvimento é tanto para o poder econômico e político dos trabalhadores, que subordinam a burocracia aos seus interesses (isto é, o socialismo), quanto para o poder econômico e político do grande capital (nas condições atuais , capital transnacional), que emprega o aparelho de Estado para servir aos seus fins.

Por enquanto, deixaremos a primeira variante de lado; em 2021, fará trinta anos desde que a URSS se despediu do futuro, e quanto mais longe estejam as bases para discutir o socialismo do século XXI, maiores elas se tornam.

Agora, encaremos a segunda variante. Por uma questão de brevidade, iremos designá-lo como o sistema “Lukashenko”. Sua essência é um capitalismo burocrático-paternalista e, no decorrer de sua existência, surgiram novas forças interessadas em sua transformação.

A primeira dessas forças é o capital privado, incluindo o capital “humano” e de pequena escala, cuja acumulação e poder o antigo sistema burocrático começou a bloquear ativamente. Os portadores desse “capital humano” merecem menção especial. A maioria dessas pessoas são jovens, com idades entre 16 e 30 anos. Eles foram educados, ou estão sendo educados, em um espírito neoliberal que reproduz o “fundamentalismo de mercado”. Eles habitam um ambiente cultural e informacional totalmente comercializado, denominado “Ocidental”. Possuem certo potencial de ganho de dinheiro (uns mais, outros menos, estes últimos na maior parte apenas na imaginação, inflamada pela publicidade), com o objetivo de adquirir bens de marca e fazer parte da tendência. Sem dúvida, o sistema Lukashenko está no caminho deles.

Uma segunda força é a nova geração da nomenklatura de Lukashenko, que, em essência, habita o mesmo ambiente neoliberal e cujo cenário social inteiro consiste em pessoas (de cônjuges e amantes a filhos e netos) que vivem de acordo com estes padrões (“ocidentais”). Para os membros desse estrato, a Bielorrússia, seu povo e até mesmo os empregos na hierarquia estatal não passam de uma base para acumular seu poder privado e capital. Há algum tempo, essas pessoas consideram a vida no sistema burocrático bastante vantajosa. Mas assim que surgir a oportunidade de romper o poder da hierarquia e ganhar a “liberdade” de se tornarem empreendedores privados, eles começarão com um entusiasmo invejável a demolir as próprias estruturas de poder que recentemente incorporaram. Mesmo agora, um número significativo de pessoas do entorno de Lukashenko está fazendo isso.

E quanto à maioria dos trabalhadores – os trabalhadores da indústria, os professores, o pessoal da saúde? Antes de tentar responder a esta pergunta, devo enfatizar que a natureza do capitalismo burocrático é tal que se move inevitavelmente do crescimento extensivo até a estagnação, e então as massas mudam do apoio forçado ao sistema como um mal menor para uma resistência vaga a ele. É o que está ocorrendo agora na Bielorrússia.

Neste país, está em curso há cerca de duas décadas uma tentativa de combinar o capitalismo semiperiférico com o paternalismo burocrático. A indústria, a agricultura e a infraestrutura se desenvolveram e, pelos padrões da semiperiferia, foram estabelecidos sistemas de saúde e educação geralmente acessíveis e de qualidade razoável. (Deve-se enfatizar que a educação tem sido principalmente de caráter liberal-globalizado; isso contribuiu muito para moldar as opiniões dos jovens de mentalidade liberal que passaram pelas universidades, onde aprenderam o básico do fundamentalismo de mercado junto com mitos sobre a democracia liberal.) Até recentemente, o nível de diferenciação social na Bielorrússia era a metade do da Rússia e um terço menor do que nos Estados Unidos.

Deve-se enfatizar novamente que o capitalismo burocrático-paternalista está condenado à estagnação e à crise se não se mover na direção do socialismo. Lukashenko tomou o caminho de fortalecer o papel do mercado e do capital, resultando na estagnação da renda real, na restrição dos interesses dos trabalhadores por meio do Código do Trabalho e da reforma das pensões, e assim por diante. Tudo isso minou as bases do sistema que se formou sob seu governo. Até mesmo pessoas “comuns” na Bielorrússia começaram a mudar sua atitude em relação ao homem que antes consideravam uma espécie de figura parental.

Enquanto a burocracia e o capital proporcionaram certos aumentos nos padrões de vida, com garantias de segurança e estabilidade, os trabalhadores nutriram um vago ódio pelo sistema, mas o toleraram, subordinando-se e reconciliando-se com ele e escolhendo-o como um mal menor. Não acreditavam na própria força nem na da oposição de esquerda, que na sua maioria era genuinamente impotente ou cedia às autoridades a cada momento decisivo.

Mas quando um sistema antigo entra em estagnação, se não em crise, as pessoas começam a acordar. A partir daí as “pessoas comuns” – operários, fazendeiros, professores, pessoal médico – estarão prontas num momento decisivo para declarar: “Não somos ralé!”.

É por isso que me atrevo a afirmar que a raiz do problema está na estagnação econômica e na desigualdade social, não apenas na negação dos direitos políticos e na falta de liberdade de expressão. Daí a primeira lição, para as autoridades (que, é claro, acham inconcebível abordá-la): se a nomenklatura capitalista do Estado não deseja cooperar com a maioria dos trabalhadores e não garante reformas oportunas e completas de orientação social (uma renda progressiva impostos, educação e saúde para todos, sindicatos fortes e assim por diante), juntamente com o crescimento acelerado da economia nacional, ela se torna um inimigo não apenas das forças pró-liberais, mas também da maioria dos cidadãos e, além disso, mais cedo ou mais tarde será traída pela nova geração de cínicos dentro de suas próprias fileiras. Isso, propriamente falando, começou a ocorrer na Bielorrússia.

Na Rússia, a situação é um tanto diferente: a burocracia estatal não se subordinou tanto ao grande capital oligárquico, mas ele se entrelaçou. Na maior parte, a burocracia russa atende aos interesses econômicos e políticos do grande capital e, portanto, possui uma base econômica mais durável do que o sistema de Lukashenko. Subjacente ao poder do Estado na Rússia estão os trilhões de dólares pertencentes aos oligarcas russos. Mas essa aliança também não é eterna. Além disso, na Federação Russa, a estagnação e as políticas antissociais já duram mais de uma década, e a paciência da maioria, ao que parece, está no limite. Portanto, e ao contrário da situação na Bielorrússia, é possível que os resultados não se limitem a perturbações políticas e se estendam mais e mais profundamente à revolução socioeconômica.

Lição dois: o povo não é ralé e os principais problemas não podem ser resolvidos à força

Começarei com uma tese totalmente controversa (dirijo estas palavras aos patriotas russos): não há necessidade de temer o ativismo dos próprios cidadãos. O desenvolvimento constante de um país (não estagnação com imitação de prosperidade!) requer cidadãos política e socialmente ativos, unidos na base de iniciativas de baixo, e precisa deles como precisa do ar. Profundas reformas sociais e democráticas, implementadas com base em iniciativas a partir de baixo, são uma condição para a socialização (pelo menos) do capitalismo do século XXI, para não falar de um avanço em direção à sociedade do futuro, em direção ao socialismo (o capital moderno global não é tal condição, uma vez que não tem intenção de seguir por esse caminho e, portanto, está estagnado, não apenas no espaço pós-soviético). Cidadãos passivamente tolerantes e obedientes, que (ao que parece para as autoridades e os patrões) se submeteram ao status quo, constituem a base para o colapso e decadência do poder do Estado e até dos negócios. É o caso do poder estatal, visto que é cada vez mais forçado a confiar nos órgãos de coerção e na manipulação política e ideológica – para ser bem franco, no engano e na violência. Esse sistema não pode existir por muito tempo, muito menos se desenvolver. As empresas também perdem estrategicamente sob tal sistema, uma vez que em uma economia onde o principal fator de desenvolvimento é o potencial criativo humano, os trabalhadores precisam ser talentosos e criativos, e isso significa que eles precisam da oportunidade de auto-organização social e política. Enquanto isso, o desenvolvimento estrategicamente orientado é uma questão indiferente ao capital na época neoliberal; o curto prazo e o domínio da financeirização orientam os negócios para a especulação, para a “acumulação por despossessão” (David Harvey) e, às vezes, para a pilhagem feudal direta.

No que diz respeito à política, o sistema econômico e político neoliberal oferece apenas liberdades de imitação, substituindo a democracia pela manipulação política por parte de quem tem as mãos sobre o capital, criando um sistema justamente descrito pelos marxistas como “democracia para poucos” (Michael Parenti ). Na Bielorrússia e na Rússia, a maioria dos cidadãos “comuns” sentem que sua democracia é uma falsidade, mesmo que não entendam por quê. Como Aleksandr Blok (sim, o grande poeta da Idade da Prata russa!) declarou há um século, precisamos de democracia, mas não no estilo americano. Precisamos de direitos e liberdades políticas reais, a oportunidade real de formar sindicatos e associações, de controlar as autoridades e de realizar iniciativas que surjam de baixo.

Este texto não é o lugar para elaborar o que é “democracia básica” e como ela funciona. No entanto, deve-se dizer que onde as pessoas não têm oportunidades reais de ação social e política construtiva conjunta, os protestos de rua ocorrerão, com todas as suas contradições. Como nos EUA, ou como os “coletes amarelos” na França, e como na Bielorrússia. Nem a polícia secreta nem as tropas de choque da OMON serão capazes de detê-lo. Esta é a lição da Bielorrússia.

Por que a Bielorrússia permaneceu em silêncio por tanto tempo? Existe uma explicação para isso. Ainda operando na expansão pós-soviética, está uma crença, formada ao longo dos séculos, no conceito do “bom czar”. Na URSS (e até recentemente na Bielorrússia), essa crença baseava-se em uma genuína solicitude do Estado em relação às pessoas “comuns”.

Acreditávamos (e até certo ponto ainda acreditamos) que o “bom czar” puniria os “boiardos maus” (ministros, deputados), os patrões excessivamente gananciosos e os burocratas ladrões, enquanto defendia o país dos inimigos externos (e eles são reais !) com a ajuda de um forte exército, e em geral, resolveria todos os nossos problemas. Infelizmente, isso não é um exagero – é o que as autoridades se propuseram a inculcar nas “pessoas simples” na Bielorrússia, e não apenas lá. Não foi por acaso que, até recentemente, Lukashenko era conhecido coloquialmente como “papai”.

No entanto, os cidadãos “simples” dos países pós-soviéticos estão longe de ser simples. Nós crescemos com a cultura e a prática da URSS, e trinta anos de capitalismo semiperiférico não nos degradaram inteiramente. Isto aplica-se à maioria dos cidadãos da Bielorrússia, e não apenas da Bielorrússia, seja qual for o caso das elites privilegiadas que adotaram os valores neoliberais.

Se o capitalismo burocrático perpetua, ou pior, fortalece a estagnação econômica e a injustiça social, se aumenta a ilegalidade política a que a maioria está sujeita, então os trabalhadores que supostamente foram hipnotizados para sempre se levantarão em protesto.

Aqui, é verdade, uma passo atrás importante é necessário: o nível real de ativismo da maioria dos trabalhadores, camponeses, pessoal de saúde, professores e assim por diante na Bielorrússia não é tão grande quanto os líderes da oposição liberal tentam fazer parecer. Na maioria dos casos, as ações descritas como “greves” são, na verdade, reuniões de protesto organizadas por ativistas políticos. Das greves reais, uma certa proporção é indiretamente apoiada por chefes de empresas que consideram o regime de Lukashenko como não servindo aos seus interesses, ou por altos dirigentes que, como na URSS às vésperas de seu colapso, esperam que esta onda de lutas dê a eles a oportunidade de privatizar empresas que por enquanto estão nas mãos do Estado. Em algumas empresas – e este é o aspecto que é mais importante para nós – existe um potencial real de ocorrência de greves. No entanto, tais ações são quase impossíveis de organizar por causa da legislação draconiana e da repressão dirigida aos líderes dos comitês de greve. Onde os trabalhadores nessas circunstâncias têm conseguido organizar as chamadas greves “italianas” (“operação-tartaruga”), é possível e necessário falar de um verdadeiro protesto laboral. Mas, mesmo aqui, ainda não há uma oposição independente, voltada para a defesa dos interesses dos trabalhadores e não para fazer a transição de um modelo burocrático para um modelo neoliberal de capitalismo.

Lição três: a falta de uma alternativa de esquerda está levando os trabalhadores para o campo dos neoliberais

As massas populares estão começando a se levantar em protesto. Mas aqui a questão se apresenta: o que as pessoas pedirão? Com quem eles ficarão ao lado e contra quem será dirigida a sua raiva?

Se, neste momento, não houver oposição de esquerda no país, forte, organizada e capaz de ações construtivas e positivas, o povo acabará como marionetes cujos cordões são puxados por políticos neoliberais – por políticos que, sem surpresa, serão descritos como “pró-Ocidente” (devo salientar que não se trata de uma questão de geopolítica, mas de economia política – por trás desses políticos estará o poder econômico, político, midiático e militar do capital global). Se os trabalhadores acabarem como fantoches, sujeitos a esse controle, eles perderão (e de fato, nós estamos perdendo). A razão é simples: nos países pós-soviéticos, o capitalismo neoliberal traz consigo um grau ainda maior de degradação econômica, desigualdade social e ilegalidade política do que os sistemas que o precederam.

Daí as seguintes lições, para as autoridades, para os cidadãos e para a oposição.

Para os que detêm o poder nos países pós-soviéticos, a lição é esta (não será assimilada, pois não servirá, a curto prazo, aos propósitos dessas pessoas): transformando os cidadãos de seus países em figurantes em seu show de palco, você se condena ao isolamento no “momento da verdade” – isto é, no momento em que o capital privado e a minoria pró-liberal ativa se afastam de você, e quando os elementos mais ativos dentro de seu campo percebem que é mais vantajoso para eles traí-lo. Adicione a isso a poderosa pressão da mídia, econômica e política aplicada pelo capital global (eu enfatizo: não apenas os políticos poloneses ou lituanos que buscam exercer influência sobre a Bielorrússia, mas o capital global), e se as pessoas não estão com você, mas contra você, mesmo que não ativamente, você terminará sozinho. Tentar confiar no aparato de coerção será inútil. Não apenas a força se mostrará incapaz de resolver o problema, mas, no momento decisivo, quem a aplica irá simplesmente abandonar você, não querendo terminar do lado perdedor. Foi o que aconteceu na URSS em 1991 e na Ucrânia em 2014…

Para a massa da população, a lição é esta: se no momento do conflito não desenvolvermos uma consciência social e política madura; se não conseguirmos entender quem somos, entender pelo que lutamos, quem defendemos e onde estão nossos interesses estratégicos; e se nos comportarmos como ovelhas repentinamente despertas, então, na melhor das hipóteses, seremos conduzidos a um novo curral e, na pior, massacrados. As autoridades farão uso do nosso ativismo, sejam as velhas autoridades, depois de nos convencerem de que representam um mal menor, sejam os novos detentores do poder, pendurando o signo da “liberdade” neoliberal ao mesmo tempo em que fortalecem nossa sujeição ao mercado e ao capital.

A lição para a oposição de esquerda é a seguinte: se até o “momento da verdade” essa oposição não se tornar potente e construtiva, o papel que seus integrantes acabarão desempenhando não será nem de figurantes, mas, sim, de espectadores. Os espectadores de uma tragédia.

PS. A lição para os patriotas russos: vocês precisam pensar em mais do que os interesses geopolíticos de seu país.

Hoje, a esmagadora maioria dos políticos, jornalistas e analistas especializados, quando reflete sobre a Bielorrússia e a Rússia, prioriza as questões de geopolítica. Enquanto isso, eles expressam um refrão particular, áspero, senão sempre proeminente: “Nós (a Rússia) precisamos pensar sobre os nossos interesses, sobre o que é e o que não é vantajoso para nós no conflito da Bielorrússia e sobre quem pode ou não ser útil para nós” Ao mesmo tempo, e como algo não menos óbvio, repetem a linha de que somos dois povos fraternos, dois países no quadro de um singular estado de união…

Por tudo isso, nem mesmo ocorre à maioria dos russos que uma contradição profunda está envolvida aqui: se somos irmãos, então o povo russo, como verdadeiros irmãos e camaradas, deveria em primeira instância pensar nos interesses do povo bielorrusso, e não nos benefícios geopolíticos para o estado russo, benefícios que estão sendo vistos de forma muito óbvia pelos interesses comerciais do grande capital russo.

Os bielorrussos também percebem esses motivos egoístas dos verdadeiros donos da Rússia.

É importante notar que nós, o povo multinacional da Rússia, temos uma unidade de interesses genuína e profunda com o povo multinacional da Bielorrússia. Isso resulta não apenas de nosso passado histórico comum, e não apenas da vitória heróica na Grande Guerra Patriótica (patriótica, eu acrescentaria, para os russos, para os bielorrussos e para todos os povos que constituíram a URSS). Também nasce da experiência inestimável que nossos povos acumularam na construção do socialismo e da unidade de nossas culturas. E o mais importante: é mais fácil e produtivo para nós se nos desenvolvermos juntos neste mundo, que está cheio de profundos problemas e contradições.

Mas!

Mas capitais russos e bielorrussos são concorrentes. Produzimos quase as mesmas coisas, lutamos por cada dólar do preço das transportadoras de energia e competimos uns com os outros por investimentos “benéficos” do Ocidente e do Oriente.

Mas na geopolítica, não há amigos, apenas rivais na luta por esferas de influência, por território, por lucros para seu capital.

Mas os “patriotas” (as aspas invertidas não são por acaso) de nosso país afirmam: “A Rússia não tem amigos além de seu exército e sua marinha”.

Assim é a realidade. Para concluir, gostaria de dar uma lição para os patriotas (sem aspas) e para as seções (política, mídia de massa, cultural) do sistema que pensam genuinamente no futuro dos povos da Rússia e da Bielorrússia, e não nas vantagens para o capital russo ou bielorrusso, nos interesses dos burocratas dos dois países e assim por diante. Esta lição é simples: para os povos da Rússia e da Bielorrússia (e, na verdade, para todos os outros povo), há apenas um caminho estratégico que contém alguma promessa estratégica. Esse é o caminho que leva à transformação dos operários (não “operários de fábrica”, mas os operários modernos – cientistas, programadores, professores, médicos, artistas) de engrenagens passivas na máquina burocrática, de escravos do dinheiro, de tendências e marcas, em donos da economia e da política, em pessoas que colocam o progresso da humanidade acima dos lucros e da politicagem.

Se a Rússia oferece à Bielorrússia (e não apenas à Bielorrússia) um caminho desse tipo, primeiro de reformas sociais e depois do socialismo (não tenho medo desse conceito, quase proibido em artigos “sérios”), então a maioria dos cidadãos (não monopólios de capital, não políticos, mas cidadãos) da Bielorrússia será nossa amiga. E não apenas a maioria da Bielorrússia.

Se buscarmos ganhos para nosso capital e benefícios para nossos interesses geopolíticos, podemos esperar perder tudo e todos, assim como já perdemos quase todos os nossos amigos no espaço pós-soviético. Por enquanto, a Bielorrússia permanece… •

Protesto na Bielorrússia: Quem? Por quê? Com quais objetivos? – Uma análise político-econômica

A onda de debate que se seguiu aos acontecimentos na Bielorrússia deixou de fora da narrativa as questões-chave: por que as pessoas estão tomando as ruas de Minsk e de outras cidades, e quem são essas pessoas? O que exatamente elas querem? Elas estão preparadas para arriscar sua liberdade, sua saúde e até mesmo suas vidas? Por que existem dezenas de milhares delas, provavelmente mais? E por que isso está acontecendo na Bielorrússia, aparentemente um país excepcionalmente pacífico e estável, com fortes tradições históricas de antifascismo e de amizade com a Rússia?

Antes de sugerir respostas a essas perguntas, deixe-me enfatizar: não estou escrevendo estas linhas como um mero observador. A minha pátria foi e continua a ser a URSS, da qual a Bielorrússia é uma parte inseparável. Estas são as linhas de quem tem muitos camaradas em Minsk e para quem o destino da Bielorrússia não é uma questão de indiferença pessoal.

A essência: o capitalismo bielorrussos

No centro dos problemas atuais do país estão as peculiaridades de seu sistema socioeconômico e político. As últimas décadas viram a formação na Bielorrússia de um modelo inteiramente distinto de capitalismo semiperiférico – de um sistema em que o poder econômico e político não reside, fundamentalmente, no capital privado, mas com um aparato estatal burocrático-paternalista, cujo símbolo (embora não seja seu dono) é Lukashenko.

Ao contrário da situação na Federação Russa e na maioria dos outros países da Comunidade de Estados Independentes, o capital oligárquico em grande escala está apenas fracamente desenvolvido na Bielorrússia, e sua relação com o aparato estatal é em sua maior parte subordinada. Assim, os elementos do capital privado que não se entrelaçam com a burocracia submetem-se aos funcionários e pagam tributos a ele. É importante observar que essa subordinação não é apenas econômica por natureza, mas também administrativa, política e até cultural-ideológica. Isso se aplica a empresas de pequeno, médio e grande porte (a situação na Rússia é semelhante, mas aqui a classe proprietária do capital em conjunto domina o estado, enquanto na Bielorrússia o inverso é verdadeiro).

É significativo que na Bielorrússia o estado seja ao mesmo tempo paternalista e burocrático-capitalista. Na primeira dessas funções, dedica parte substancial de seus recursos à manutenção da indústria, do setor rural, da infraestrutura e da população. Em seu segundo papel, a burocracia, mesclada com o capital, subjuga e explora a maioria da classe trabalhadora tanto de forma econômica quanto político-administrativa, atuando como capitalista de estado.

A maioria operária

O ponto-chave aqui é que na Bielorrússia, o operariado (eu emprego este conceito, agora tão pouco utilizado, de forma bastante deliberada), que não há muito tempo possuía vidas relativamente prósperas e seguras em geral, foram privados da chance de existir como seres humanos em vez de meras engrenagens de uma máquina, em vez de partículas de uma massa despersonalizada e obediente. Eles foram privados da oportunidade de serem indivíduos, sujeitos da vida econômica, política e cultural, em vez de objetos passivamente obedientes das maquinações (com e sem aspas) do “Papai” Lukashenko.

Também é verdade que a “prosperidade” da maioria dos trabalhadores bielorrussos nos últimos tempos tornou-se totalmente relativa: o desenvolvimento econômico e social desacelerou, enquanto a desigualdade social aumentou. O resultado foi uma disposição oculta por parte da maioria dos bielorrussos comuns em apoiar os protestos. Mas, ao mesmo tempo, há também o medo de perder a relativa estabilidade de sua existência paternalisticamente garantida. Daí a posição que até recentemente a maioria dos trabalhadores comuns do país abraçava implicitamente: pela mudança, mas não pelo capitalismo liberal e, portanto, se não houvesse alternativa, então melhor que Lukashenko ficasse.

No decorrer dos protestos, no entanto, a confiança exclusiva de Lukashenko na força alterou o ritmo da situação, não apenas para um ritmo diário, mas por hora. Os cidadãos “comuns” estão acordando e percebendo que o paternalismo implica não apenas estabilidade, mas também estagnação. Enquanto isso, o capitalismo, mesmo do tipo paternalista-burocrático, envolve exploração e sujeição…

A Oposição: quem e por quê?

A natureza fundamentalmente capitalista da sociedade bielorrussa promove uma orientação na maioria da população, especialmente a juventude (e ainda mais, a juventude de “elite”), em direção ao sistema de valores liberais e consumistas que domina o mundo no século XXI.

(Como uma digressão importante, eu observaria que este sistema de valores é muitas vezes, erroneamente, descrito como “Ocidental”. Mas não é Ocidental; é um sistema mundial de interesses e valores que é moldado pelo capital global, mesmo embora suas raízes estejam no Ocidente e ela tenha adquirido uma “autorização de residência” no Oriente). Na Bielorrússia paternalista-capitalista, tais objetivos dos jovens são, por um lado, cultivados (pelo capitalismo) e, por outro lado, bloqueados (pelo paternalismo burocrático). O resultado é uma contradição que levou a uma explosão. Aliada a isso está a posição de uma parte significativa da média e da pequena burguesia, bem como dos profissionais autônomos e de todos aqueles que se consideram (falsamente, na maioria das vezes!) proprietários de um substancial “capital humano”. Este último tipo de mentalidade é especialmente característico de jovens das grandes cidades que receberam uma educação ao estilo ocidental.

(Vou me permitir outra digressão importante: na Bielorrússia de Lukashenko, o sistema educacional basicamente capitalista sempre ensinou aos jovens de acordo com os preceitos dos Estados Unidos, seja em economia, administração, filosofia ou ciência política).

Além disso, eu observaria a falta de qualquer oportunidade para autoexpressão ou para criticar o sistema existente. Tudo isso no contexto de uma mistura econômica, informacional e cultural objetivamente inevitável com o capital político-econômico global (“o Ocidente”).

Como consequência, os estratos sociais listados acima, que compõem a chamada “classe média” nas grandes cidades (na realidade, estes são os 15 a 20 por cento mais altos da população), passaram em sua maioria a representar a oposição para o sistema Lukashenko. Essas pessoas estão longe de ser a maioria, mas são ativas em termos políticos e informacionais.

Aqui encontramos outro fator: a burocracia, distante da vida real, dos interesses e dos problemas das pessoas e do país como um todo, e não sujeita ao controle dos cidadãos, inevitavelmente “se tornou estúpida”, perdendo intelectualmente para a oposição também. O resultado é que os manifestantes, na maioria dos casos, também estão vencendo a guerra de informação e comunicação pelas autoridades. A isso, os últimos responderam com níveis crescentes de força bruta, que simplesmente multiplica o número de seus oponentes…

O fator externo

Finalmente, devemos também levar em conta o fator externo. A Bielorrússia faz fronteira ao norte e oeste com países membros da UE (com os EUA atrás deles), ao sul com a Ucrânia e a leste com a Rússia (e China, no sentido político, se não geográfico). Em sua luta pela Bielottússia como cabeça de ponte econômica, política e militar, o “Ocidente” age vigorosamente; contra os bielorrussos comuns, especialmente os mais jovens, ele emprega não apenas dinheiro e técnicas políticas sofisticadas, mas, o mais importante, métodos modernos de manipulação cultural, ideológica e informativa. O “Oriente” está perdendo, agindo de forma fraca e empregando métodos antiquados. Tenta resolver os problemas que enfrenta exclusivamente no plano das relações pessoais entre dirigentes, dos negócios econômicos e das operações dos serviços da polícia secreta.

A soma de tudo isso fornece uma resposta à pergunta de quais pessoas estão se juntando aos protestos e por quê.

As barricadas de protesto

A fonte dos protestos de hoje é a rejeição objetiva do sistema econômico e político existente na Bielorrússia pela maioria da chamada “classe média”, que com o apoio informativo e organizacional do “Ocidente” gradualmente atingiu o ponto de luta aberta. Para aumentar a disposição desse estrato para ir para as ruas, houve fatores adicionais, nutridos especialmente para servir a esse fim – sentimento nacionalista, dinheiro, provocações e o trabalho de especialistas políticos e outros. O caldo de protesto começou a ferver.

Quem agora está do outro lado das barricadas? Obviamente, o aparelho de estado e sua máquina de coerção. E quanto à maioria dos trabalhadores?

Por enquanto (este texto foi escrito em 12 de agosto), a maioria deles está permanecendo à margem, recusando-se a participar diretamente nos protestos, pois sentem semiconscientemente que para os trabalhadores da Bielorrússia, uma vitória para os neoliberais a oposição se tornaria um mal pior do que se o sistema existente prevalecesse. Deixe-me explicar: os trabalhadores, camponeses, professores e pessoal médico da Bielorrússia não ganharão a liberdade política como um presente do sistema neoliberal. Na melhor das hipóteses, eles receberão concessões formais que ocultam a total manipulação da opinião pública pelo capital corporativo global e seus representantes políticos. Na pior das hipóteses, eles acabarão sob a ditadura de nacionalistas com inclinações pró-fascistas. Economicamente, a maioria dos trabalhadores (incluindo os jovens manifestantes ingênuos) não receberá nada do neoliberalismo, exceto a redução dos já escassos benefícios sociais e a oportunidade de se transformar de um proletariado defendido paternalisticamente (embora sem direitos políticos) em um precariado empobrecido e politicamente desorganizado, que serve como um meio nutritivo perfeito para o nacionalismo e a ditadura.

Mas isso é por enquanto. Se o sistema de repressão crescer e se autoperpetuar (e essa tendência é inata em um sistema de Estado repressivo que não está sob o controle dos cidadãos), a onda de protestos chegará a incluir bielorrussos “comuns”. Goste ou não, eles chegarão a compreender que o regime existente está preparado para dirigir represálias contra todos sem distinção e que tolerar tal opressão é impossível.

Nesse ponto, a maioria do povo bielorrusso, que apesar de toda a sua paciência não tem medo quando enfurecido, começará a se levantar para valer …

Post scriptum

“Bielorrússia, nossa querida terra …” – as palavras são de uma velha canção – é uma parte do nosso passado, mas não apenas do nosso passado. É uma parte do destino, de um destino em cujo coração reside não apenas a vitória na grande guerra contra o fascismo, mas também a vitória da atividade criativa. Além disso, esta é uma atividade criativa realizada mesmo nas condições mais monstruosas e com base na própria iniciativa e auto-organização das pessoas. Um exemplo é o movimento partidário. Foi precisamente aqui que a Bielorrússia deu um exemplo para todos de como um povo pode lutar contra um inimigo. Não foi por acaso que foi em Minsk, nas próprias ruas e praças onde hoje se realizam os confrontos, que se realizou o primeiro desfile da Grande Guerra Patriótica – manifestação e desfile de trinta brigadas partidárias, com duração de várias horas em 16 de julho de 1944. No dia seguinte, 57.000 oficiais e soldados alemães capturados foram conduzidos pelas ruas de Moscou, e o asfalto foi lavado depois que eles passaram…

Artigo originalmente publicado em The Bullet. Reprodução da versão traduzida pelo Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


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