A catástrofe iminente e a urgência em detê-la
WhatsApp-Image-2023-10-18-at-17.28.52-1

A catástrofe iminente e a urgência em detê-la

Gilberto Achcar reflete sobre a violência dos oprimidos em Gaza e resistência anticolonialista

GIlbert Achcar 19 out 2023, 11:23

Publicado originalmente em Contrabando Editorial

Tradução: Carolina Freitas

Nos últimos dias, Gaza sintetizou a divisão global Norte-Sul mais do que qualquer outro conflito na história contemporânea. A indecente unanimidade dos governos ocidentais, expressando, sem reservas, apoio incondicional ao Estado israelense – no preciso momento em que iniciava uma campanha evidente de crimes de guerra contra o povo palestino de magnitude sem precedentes nos 75 anos de história do conflito regional – tem sido de repugnância atroz. Desde 7 de outubro, estes governos vêm se superando neste esforço: desde a projeção da bandeira de Israel no Portão de Brandemburgo em Berlim, no Parlamento em Londres, na Torre Eiffel em Paris e na Casa Branca em Washington; até ao envio de aparato militar para Israel, bem como os reforços navais americanos e britânicos para o leste do Mediterrâneo, num gesto de solidariedade com o Estado Sionista; incluindo ainda a proibição de várias formas de expressão de apoio político à causa palestina, restringindo assim liberdades políticas básicas.

Tudo isto ocorre enquanto o desequilíbrio habitual nas reportagens dos meios de comunicação ocidentais sobre Israel/Palestina atingiu o seu auge. Como sempre, os israelenses enlutados, especialmente as mulheres, são expostos em abundância nas telas, incomparavelmente mais do que os palestinos enlutados. A Operação Inundação de Al-Aqsa, do Hamas, provocou uma avalanche de imagens de violência contra pessoas desarmadas, com foco especial na festa rave, semelhante àquelas comumente organizadas nos países ocidentais, a fim de acentuar a “compaixão narcisista … muito mais evocada pelas calamidades abatidas contra pessoas como nós, e muito menos para calamidades que afetam outras pessoas além de nós”. Desde que o Hamas lançou a sua operação, a violência israelense contra civis em Gaza, perpetrada numa escala muito maior, tem sido muito menos denunciada e em nenhum caso condenada. Mesmo um crime de guerra flagrante como o bloqueio total de água, alimentos, combustível e eletricidade, infringindo uma população de 2,3 milhões de pessoas, além da não menos flagrante violação dos direitos humanos na ordem dada a mais de um milhão de civis que abandonem a sua cidade, ou enfrentem a morte sob os escombros de suas casas, é basicamente tolerada por líderes políticos ocidentais proeminentes e pela grande mídia ocidental.

É como se tivessem remontado a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens, no qual Kurtz, personagem ficcional de Joseph Conrad no livro Coração das Trevas, escreve um relatório concluído com o terrível pós-escrito: “Exterminem todos os bárbaros!”[2]. Na verdade, a prescrição de Kurtz encontrou um equivalente no anúncio sinistro do Ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant: “Ordenei o cerco total à Faixa de Gaza. Não haverá electricidade, nem comida, nem combustível, tudo será fechado… Estamos lutando contra os animais humanos e agimos de acordo”.

Não é de surpreender que os meios de comunicação ocidentais tenham feito eco aos meios de comunicação israelenses descrevendo a operação do Hamas como o ataque mais mortífero dirigido contra os judeus desde o Holocausto, dando continuidade ao padrão habitual de nazificação dos palestinos para justificar a sua desumanização e o seu extermínio. Contudo, a verdade é que, por mais terríveis que tenham sido alguns aspectos da operação do Hamas, eles não são um contínuo da violência imperialista nazista a partir de qualquer perspectiva histórica considerável. Pelo contrário, fazem parte de dois ciclos históricos muito diferentes: o da luta dos palestinos contra a expropriação e a opressão colonial israelense e o da luta dos povos do Sul Global contra o colonialismo.

A chave para entender a mentalidade subjacente às ações do Hamas não se encontra em Mein Kampf [Minha Luta] de Adolf Hitler, mas em Os condenados ​​da terra de Frantz Fanon, a mais conhecida interpretação dos sentimentos dos colonizados por um pensador político, que era também psiquiatra. Fanon refletiu sobre as lutas dos colonizados, especialmente dos argelinos, contra o colonialismo francês. Os paralelos são impressionantes:

O colonizado que decide realizar este programa, para se tornar o seu motor, está sempre disposto à violência. Desde o seu nascimento, é claro para ele que este mundo estreito, semeado de contradições, só pode ser desafiado pela violência absoluta.

A violência que presidiu à constituição do mundo colonial (…) será reivindicada e assumida pelos colonizados a partir do momento em que, decidida a tornar-se história em ação, a massa colonizada penetra violentamente nas cidades proibidas. Provocar uma explosão do mundo colonial será, a partir de agora, uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e capaz de ser assumida por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado…

Não há, porém, equivalência de resultados, porque os bombardeios aéreos ou os tiros de canhão da frota superam em horror e importância as respostas dos colonizados. Este vai-e-vem do terror desmistifica definitivamente os mais alienados dos colonizados. Comprovam no terreno, com efeito, que todos os discursos sobre a igualdade da pessoa humana acumulados uns sobre os outros não escondem essa banalidade que pretende que os sete franceses mortos ou feridos no desfiladeiro de Sakamody despertem a indignação das consciências civilizadas, enquanto que “não contam” a entrada a saque nas alfândegas de Guergour, da dechm Djerah, a matança de populações em massa que foram precisamente a causa da emboscada[3].

Alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas durante a Operação Enchente de Al-Aqsa foram terroristas? Se o terrorismo significa o assassinato deliberado de pessoas desarmadas, sem dúvida foram. Mas depois, o assassinato deliberado de milhares e milhares de civis de Gaza ao longo dos últimos dezessete anos – desde 2006, apenas alguns meses depois de Israel ter evacuado a Faixa de Gaza para controlá-la a partir do exterior, na crença de que o custo seria menor do que controlá-la por dentro – também é terrorismo. Na verdade, o terrorismo de Estado causou muito mais vítimas na história do que o terrorismo de grupos não estatais.

Da mesma forma, alguns dos atos cometidos pelos combatentes do Hamas foram atos bárbaros? Sem dúvida, mas não é menos indubitável que fizeram parte de um choque de barbáries. Deixe-me citar aqui o que escrevi sobre isso há mais de vinte anos (El choque de barbaries, Icária, 2007), após os ataques de 11 de setembro:

Considerado separadamente, cada ato de barbárie pode ser considerado igualmente repreensível do ponto de vista moral. Nenhuma ética civilizada pode justificar o assassinato deliberado de não-combatentes ou de crianças, seja indiscriminado ou deliberado, por terrorismo estatal ou não-governamental…

No entanto, do ponto de vista da equidade básica, não podemos nos envolver numa ética metafísica que rejeite igualmente todas as formas de barbárie. As diferentes barbáries não têm o mesmo peso na balança da justiça. É verdade que a barbárie nunca poderá ser um instrumento de defesa legítima; é sempre ilegítimo por definição. Mas isto não muda o fato de que quando duas barbaridades se confrontam, a mais forte, aquela que atua como opressor, continua a ser a mais culpada. Exceto em casos de manifesta irracionalidade, a barbárie dos fracos é na maioria das vezes, logicamente, uma reação à barbárie dos fortes. Caso contrário, por que os fracos provocariam os fortes, correndo o risco de serem eles próprios esmagados? Esta é, aliás, a razão pela qual os fortes tentam esconder a sua culpa apresentando os seus adversários como insanos, demoníacos e bestiais.

A questão mais importante na concepção do Hamas sobre a luta contra a ocupação e a opressão israelenses não é moral, mas sim política e prática. Em vez de servir a emancipação palestina e conquistar um número crescente de israelenses para a sua causa, a estratégia do Hamas facilita a unidade nacionalista dos judeus israelenses e fornece ao Estado sionista pretextos para aumentar a supressão dos direitos e da existência dos palestinos. A ideia de que o povo palestino pode alcançar a sua libertação nacional através da confrontação armada com o Estado israelense, que é militarmente muito superior, é irracional. O episódio mais eficaz da luta palestina até à data foi sem armas: a Intifada de 1988 causou uma crise profunda na sociedade, no sistema político e nas forças armadas de Israel, e conquistou uma simpatia massiva para a causa palestina no mundo, mesmo nos países ocidentais.

A mais recente operação do Hamas, o ataque mais espetacular já lançado contra Israel, proporcionou uma oportunidade para retaliações assassinas brutais num ciclo prolongado de violência e contra-violência. O que se vê no horizonte é nada menos que uma segunda etapa da Nakba – catástrofe, em árabe –nome dado ao deslocamento forçado da maioria da população indígena palestina dos territórios que o recém-nascido Estado israelense conseguiu conquistar em 1948. O atual governo israelense, que inclui neonazistas, é liderado pelo líder do partido Likud, portanto, herdeiro dos grupos políticos que perpetraram o mais infame massacre de palestinos em 1948: o massacre de Deir Yassin. Benjamin Netanyahu liderou a oposição a Ariel Sharon e demitiu-se do seu gabinete em 2005, quando Sharon optou pela retirada unilateral israelense de Gaza. Pouco depois, Sharon deixou o Likud, que Netanyahu lidera desde então.

A extrema-direita israelense chefiada pelo Likud tem perseguido sem descanso o seu objetivo de uma Grande Israel, abrangendo todo o território palestino do antigo mandato britânico entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, incluindo a Cisjordânia e Gaza. Poucos dias antes da operação do Hamas, Netanyahu, durante o seu discurso na Assembleia Geral da ONU, brandiu um mapa da Grande Israel, um sinal deliberado que não passou despercebido. Portanto, a ordem dada à população do norte de Gaza para se deslocar para o sul é muito mais do que a habitual desculpa hipócrita para a destruição deliberada de áreas habitadas por civis, ao mesmo tempo que culpa o Hamas por se abrigar atrás da população civil (uma acusação decerto absurda: como poderia o Hamas existir no deserto, fora das concentrações urbanas, sem ser aniquilado pelos meios muito superiores da guerra remota israelense?).

Muito mais provável, sob o pretexto de erradicar o Hamas, o que estamos assistindo é o prelúdio de uma segunda onda de deslocamentos dos moradores de Gaza em direção ao deserto do Sinai, no Egito, voltado a concretizar o segundo grande ato de conquista territorial, combinado com limpeza étnica, desde a Nakba. Os palestinos recordam de imediato o êxodo de 1948, quando fugiram da guerra apenas para serem impedidos de regressar às suas cidades e vilas. Eles perceberam que enfrentam agora um segundo ciclo de deslocamento forçado em Gaza que prenuncia um aumento da desapropriação e da colonização. Esta segunda fase da Nakba será muito mais sangrenta do que a primeira: o número de palestinos assassinados no momento que escrevo estas linhas já se aproxima do número dos assassinados em 1948, e isto nada mais é que o início do ataque israelense. Só uma mobilização popular massiva nos Estados Unidos e na Europa poderá levar os governos ocidentais a pressionar Israel a parar antes de cumprir os seus sinistros objetivos de guerra, impedindo este resultado horrível. Isto é urgente ao extremo. Não se engane: a catástrofe iminente não será contida no Oriente Médio, se alastrando, sem dúvidas, pelos países ocidentais, como tem acontecido há várias décadas, numa escala ainda mais trágica.

* Gilbert Achcar é de origem libanesa e é professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS, Universidade de Londres. É autor de vários livros, incluindo Os Árabes e o Holocausto: A Guerra de Narrativas Árabe-Israelenses (2010) e O Povo Quer: Uma Exploração Radical da Revolta Árabe (2013, 2022). Seu último livro é A Nova Guerra Fria – Os Estados Unidos, a Rússia e a China, do Kosovo à Ucrânia (2023).

[1] Publicado no Jornal Viento Sur em 18.10.2023. Disponível em: <(https://vientosur.info/gaza-la-catastrofe-inminente-y-la-urgencia-de-detenerla/>.

[2] Conrad, Joseph. Coração das Trevas, pág. 93.

[3] Fanon, Franz, Os condenados ​​da terra.


TV Movimento

Roberto Robaina entrevista Flávio Tavares sobre os 60 anos do golpe de 1º de abril

Entrevista de Roberto Robaina com o jornalista Flávio Tavares, preso e torturado pela ditadura militar brasileira, para a edição mensal da Revista Movimento

PL do UBER: regulamenta ou destrói os direitos trabalhistas?

DEBATE | O governo Lula apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo que apresenta grandes retrocessos trabalhistas. Para aprofundar o debate, convidamos o Profº Ricardo Antunes, o Profº Souto Maior e as vereadoras do PSOL, Luana Alves e Mariana Conti

O PL da Uber é um ataque contra os trabalhadores!

O projeto de lei (PL) da Uber proposto pelo governo foi feito pelas empresas e não atende aos interesses dos trabalhadores de aplicativos. Contra os interesses das grandes plataformas, defendemos mais direitos e melhores salários!
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 28 abr 2024

Educação: fazer um, dois, três tsunamis

As lutas da educação nos Estados Unidos e na Argentina são exemplares para o enfrentamento internacional contra a extrema direita no Brasil e no mundo
Educação: fazer um, dois, três tsunamis
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 48
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão