O verão argentino 

O verão argentino 

O plano de choque apresentado por Milei precisa ser respondido num patamar superior pelo movimento de massas

Israel Dutra 11 jan 2024, 10:06

Milei assumiu prometendo uma nova era para a Argentina. Para além das suas polêmicas declarações, seu plano de governo despertou imediata reação por parte de diversas parcelas da sociedade, ativando protestos que trouxeram à memória dos “dezembros argentinos”. 

Agora, diante de um verão decisivo, nosso país vizinho está polarizado: Milei quer aplicar, imediatamente seu plano de choque; o movimento de massas precisa responder num patamar superior, a fim de defender conquistas. 

O próprio Milei sabe disso. Anunciou o “tripé” de seu plano: o plano econômico (“Caputazo”, alusão ao ministro da economia), o DNU(Decreto Nacional de Urgências) e a chamada “Lei ônibus.  Esses três passos criam condições institucionais para retirada de direitos e garantias, uma desvalorização da moeda nacional, a repressão aos movimentos sociais e uma governabilidade por decreto por dois anos. Se rejeitado o pacote, o presidente prevê uma “catástrofe de proporções bíblicas” para a sociedade argentina. 

A resposta não tardou: veio com o ato dos piqueteiros da esquerda, rompendo as ameaças autoritárias e ocupando a Praça de Maio, em 20 de dezembro. Na mesma noite, incentivada pela coragem dos piqueteiros, milhares tomaram as ruas batendo panelas. Sindicatos convocaram uma greve geral para o dia 24 de janeiro. 

O verão será decisivo. 

O alcance internacional do projeto de Milei 

Milei tem um plano coordenado com a extrema-direita; ele é, claro, a expressão do fenômeno internacional, mas de forma consciente. Atua para fazer da Argentina um laboratório. Um ponto de apoio para a disputa que a extrema-direita fará em diversas frentes. 

O epicentro da situação internacional se encontra no genocídio em curso na Palestina. A extrema-direita mundial se agrupou para justificar e legitimar as ações de Netanyahu. Milei passou a campanha colocando a defesa do sionismo como um dos seus principais esteios ideológicos. Dias antes da posse, Netanyahu ligou para cumprimentar Milei pela decisão de transferir a embaixada para Jerusalém e por sua lealdade na atual campanha militar de Israel. 

Em segundo lugar, ajudar a alavancar a extrema-direita e seu projeto político nas disputas eleitorais de 2024; a disputa central, inevitavelmente, será nos Estados Unidos, onde Trump fará de tudo para voltar à presidência; mas a Europa, com a ponta de lança de Meloni, também terá uma luta intensa, em eleições e nas agendas de cada país. A centralidade no combate à imigração pautará a agenda política da extrema-direita europeia, cotejada por Milei. O partido neofascista “Chega” pode ter uma votação expressiva em Portugal, justamente no ano em que se celebra o cinquentenário da Revolução dos Cravos. E nas eleições europeias do meio do ano, o risco de uma “bancada histórica” de setores neofascistas e xenófobos é grande. O fracasso ou o êxito de Milei influenciará nas coordenadas de todas essas disputas. 

Há um outro elemento, fundamental, que envolve outro dos homens mais poderosos do mundo, Elon Musk. Apoiador de posições reacionárias, Musk está envolvido na batalha de Milei para acelerar a mineração predatória na Argentina, incrustada no chamado “triângulo do lítio”.  A província de Jujuy que foi palco de uma rebelião recentemente é a principal fonte de extração desse material essencial para Musk e seus negócios. O bilionário que já foi artífice do golpe de direita na Bolívia em 2019, agora se lança no apoio ao projeto devastador de Milei, com ambos conversando frequentemente; dentro do seu decreto, o plano é sucatear e privatizar a empresa argentina de satélites-Arsat- para permitir a entrada de empresas “como a Starlink”, nas palavras de Milei acerca de um dos principais braços econômicos de Musk. 

Um êxito inicial de Milei teria incidência sobre a relação de forças internacional, agrupando um setor da burguesia que se desloca para posições mais duras à direita. Por outro lado, o não ingresso nos BRICS e a retirada da Argentina de acordos como a UNASUL impactam as relações políticas e comerciais com o Brasil. 


Entre Macri e Menem 

Qual será a profundidade do plano Milei ? 

Existem dois modelos que ele busca seguir, apoiando-se politicamente, em teremos de reversão de direitos e desregulamentação do trabalho – tanto que se apoia diretamente nos Macri e nos Menem. O Ex-presidente foi figura decisiva para a vitória de Milei no segundo turno, somando votos de seu partido nas províncias estratégicas como Rosário, Cordoba, Mendoza e Cidade de Buenos Aires, onde seu primo venceu com folga a eleição. E Macri cumpre o papel de fiador político dos primeiros passos do novo governo. Já o sobrinho de Carlos Menem, Martin, é o principal operador legislativo da “revolução libertária-conservadora” * , nada menos que o novo presidente da câmara dos deputados. 

O modelo Macri vigorou entre 2015 e 2019, com a aposta no “gradualismo” das reformas liberais, nada mais do que a desregulamentação do trabalho, foi derrotado pela mobilização contra a reforma previdenciária, em dezembro de 2017, que feriu de morte o governo. Milei quer encadear as mesmas reformas, só que em ritmo alucinante. Quer acelerar o suposto ‘gradualismo’ de Milei. 

Já Menem conseguiu levar a cabo uma mudança neoliberal, que chamou de “revolução produtiva”, após a crise hiperinflacionária que abreviou o mandato de Alfonsin (1989). Durante seus dois mandatos, Menem promoveu privatizações, quebrou direitos, uma expressão claramente neoliberal, para qual contou com a colaboração ativa dos setores mais corruptos da burocracia sindical e de parte do peronismo.

Milei conta com menos condições para uma investida desse tipo. Apesar da passividade do movimento social diante do governo peronista, do fracasso de Alberto Fernandez, Milei não assumiu como produto de mobilizações reacionárias, como por exemplo, as que aconteceram no Brasil pré- Bolsonaro. Ainda que a burocracia sindical argentina seja bastante corrompida, é pouco provável que Milei conseguirá lograr consensos passíveis de arrefecer setores estratégicos. A prova é que o governo entrará para a história com a convocação da primeira greve geral em pouco mais de um mês de gestão, fato inédito. 

Como fará para aprovar tais medidas em um parlamento dividido e que não tem maioria automática? Qual será a relação com os organismos internacionais? Repetirá o modelo de Bolsonaro, se tornando um pária nas relações multilaterais? Terá êxito em quebrar as conquistas de Direitos Humanos, num país emblemático quanto a punição aos crimes da ditadura? Qual será sua relação com a Igreja Católica, vide que o papa Bergoglio é argentino e a ala progressista tem peso no país. 

O verão da resistência e da solidariedade 

Os ataques são duríssimos. Demissões nas estatais. Ataques à cultura. Um cerco ao movimento piqueteiro, com a definição de quem se manifestar irá perder o seu benefício social. Os preços escalam às alturas. O salário perde poder de compra.

Se o plano de Milei passa na sua integridade, estaremos diante de uma derrota “tatcheriana” do ponto de vista dos direitos, abrindo espaço para um giro repressivo de regime, no terceiro país mais importante do continente. 

Por outro lado, se a resistência popular avança, com a greve geral se tornando um fato e os conflitos sociais se multiplicando, debilitando o governo e seu plano, o cenário pode rapidamente se transformar. A imprevisibilidade de um choque poderia abrir uma dinâmica de lutas populares de alta intensidade, num país com histórico de rebeliões e conflitos. 

Temos duas datas centrais- no verão de impasse, drama e luta do povo argentino. A greve geral, marcada para o 24 de janeiro, apesar das hesitações da burocracia sindical; e a tradicional manifestação pelos mais de 30 mil mortos e desparecidos na Ditadura Militar, a ser realizada no próximo dia 24 de março. 

A favor da luta do povo argentino conta a presença de uma esquerda radical e militante com peso e capacidade de convocatória; na primeira manifestação que rompeu o cerco da Praça de Maio20 de dezembro), toda a imprensa teve que noticiar a combatividade das colunas da FITU e do MST, primeiros a chegarem no centro da Praça, desmoralizando o “protocolo” do governo que impedia a entrada. 

A esquerda brasileira tem duas grandes responsabilidades: cercar de solidariedade o conjunto do processo de lutas do povo argentino contra Milei e ser parte da coordenação de um amplo movimento internacional de luta contra a extrema-direita e o neofascismo. 

O verão argentino nos dirá muito sobre tais desafios. 


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