O experimento Milei: primeiros passos 
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O experimento Milei: primeiros passos 

Milei foi a Davos fazer uma pregação contra o “socialismo e o feminismo” durante o Fórum Econômico Mundial. E se há algo que podemos ter de consenso quanto ao caráter de seu governo é de que é um ‘experimento’

Israel Dutra 22 fev 2024, 10:29

Foto: Fotos Públicas

A imagem emblemática de Milei recebendo a notícia de que seu projeto tinha sido retirado no Parlamento, em pleno Muro das Lamentações, é a grande fotografia dos seus primeiros dias de governo. Seu apoio incondicional a Netanyahu é parte da cartilha ideológica e política do campo que a extrema direita aponta no mundo. 

Milei foi a Davos fazer uma pregação contra o “socialismo e o feminismo” durante o Fórum Econômico Mundial. E se há algo que podemos ter de consenso quanto ao caráter de seu governo é de que é um “experimento”, como ele mesmo define sua presença à frente da Casa Rosada. Isso coloca uma importância vital para o acompanhamento da Argentina, pois condensa os elementos mais destacados da realidade: a força da extrema direita capaz de chegar a governos e a necessidade de combatê-la, a enorme crise orgânica de representação política das classes dominantes e o método de ação organizada da classe trabalhadora para defender seus direitos e assim fazer frente a governos desse tipo.

Javier Milei assumiu em 10 de dezembro e tinha como plano aprovar seu projeto conhecido como Lei Ônibus  – que, oficialmente, tinha o pomposo nome de “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos” – e celebrar em visitas à Jerusalém e ao Vaticano, como forma de manifestar o apoio das “forças do céu”. 

Milei perdeu o primeiro round

Seu plano envolvia inicialmente três pilares: um ajuste econômico sob medida do empresariado (nas mãos do ministro Caputo), um novo ordenamento político através da Lei Ônibus e do DNU e o disciplinamento das manifestações, disputando as ruas com seu protocolo antipiquete (ministra Bullrich). 

A estratégia de governo de Milei é uma estratégia de tensão permanente. Assim que colocou um verdadeiro plano de choque, de guerra contra o povo, chamado “motosserra”, em ação. 

A resposta do movimento de massas foi importante, a começar pela celebração do aniversário da rebelião popular de 2001, o “Argentinazo”, no dia 20 de dezembro, quando a manifestação organizada e convocada pela esquerda e pelos piqueteiros “quebrou” o protocolo de Bullrich e tomou a Praça de Maio. À noite, houve um panelaço e manifestações de populares nos bairros da capital e da região metropolitana. 


Com o anúncio de seus projetos e o ataque aos direitos trabalhistas, as centrais sindicais, a CGT e as duas CTAs tiveram que convocar uma manifestação no dia 27 de dezembro, em frente aos Tribunais. O ato transbordou todas as expectativas. A pressão por baixo e a brutalidade do ataque obrigaram a CGT e demais centrais a tomarem uma inédita medida: convocaram uma greve geral com mobilização, com um pouco mais de 30 dias de governo. 

No dia 24 de janeiro, a greve geral foi um fato nacional, paralisando parcialmente as atividades laborais por 12 horas e somando concentrações nas praças do país, com epicentro em frente ao Congresso. Se estima que entre 600 e 900 mil pessoas em toda a Argentina foram parte das manifestações. 

Um elemento importante, que precisa ser registrado, foi a solidariedade a questão do tema internacional em apoio ao 24. Redes se moveram e colocaram a data na agenda da vanguarda de dezenas de países, gerando uma importante discussão na esquerda. Países como Brasil, Itália, França, Alemanha, México e Colômbia tiveram protestos coordenados pelos sindicatos, em frente às embaixadas e consulados argentinos. 

Na semana seguinte, com um projeto já desidratado durante a própria votação, novas batalhas de rua em frente ao Congresso, com ampla cobertura de mídias, com a esquerda e assembleias de bairro à frente. 

Ao final do último dia programado para a votação, depois de longas sessões legislativas, vendo que não teria quórum para artigos importantes da Lei Ônibus, com uma dose de improviso, a bancada governista teve que retirar de pauta; isso significa voltar às comissões iniciais de trabalho, ou seja, voltar à estaca zero. 

Na mesma tarde, a Justiça acatou um pedido do MST e de Celeste Fierro contrário ao protocolo.  

Podemos afirmar que o primeiro round do governo terminou com uma derrota, a não aplicação dos seus planos e uma retomada da mobilização. 

As manifestações, que ainda não foram generalizadas, tiveram importantes características: foram multisetoriais, com setores da classe trabalhadora, piqueteiros, servidores públicos e interessados em ainda embrionárias assembleias populares. O movimento da cultura, se notou com força, com destacados artistas como Darín e Lali Esposito colocando a cara a favor da luta. 

A presença da esquerda, que esteve à frente das mobilizações no Congresso, foi destacada pela mídia.  

Cresce o descontentamento 

Além disso, em 29 de janeiro, o FMI reduziu drasticamente o prognóstico para a economia argentina por conta do ajuste de Milei, que antes projetava um crescimento de tanto, agora prevê a queda de 2,5% do PIB. A inflação está na casa dos três dígitos anuais, chegando a 254% como soma dos últimos 12 meses. A pobreza bateu recorde 20 anos depois: são 57% dos argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza.  

Alguns analistas comentam que Milei teve a “lua de mel mais curta” do mundo político ocidental. Ainda que possa ter certos exageros nessa definição, o fato é que Milei perdeu popularidade em muito pouco tempo. Pesquisas indicam que hoje ele tem um pouco menos de 50% de apoio, perdendo pontos, inclusive, nas províncias responsáveis por sua vitória eleitoral, como Mendoza, Córdoba, Santa Fé e Caba.

Para seguir sua estratégia de tensão, a base de seu partido, o Liberdade Avança, agita o questionamento às leis que dizem respeito ao tema do aborto, ameaçando as conquistas das mulheres, às vésperas do dia 8 de março. 

O governo federal  retirou o financiamento de fundos das províncias ligados à educação gerando uma crise, pois não há verbas para aumento salarial dos docentes do Ensino Médio, nem para os custos básicos do funcionamento das universidades.  Os professores ensaiam uma greve nacional, com o não retorno às aulas, prevista para o começo de março. 

Na quarta-feira, dia 21, tivemos uma paralisação do maior setor de transporte ferroviário do país, atingindo milhões de pessoas na região metropolitana de Buenos Aires.  Na quinta-feira (22) uma greve nacional dos trabalhadores da saúde, além de seguir a mobilização dos funcionários públicos federais. E Milei dobra a aposta contra os grandes sindicatos e centrais, querendo desregulamentar as “obras sociais” e os serviços de assistência médica, pilares do modelo sindical argentino. A burocracia da CGT já começa a falar numa segunda greve geral. 

Milei tem um cenário com crises combinadas: a tensão com os governadores, onde teve duros enfrentamentos com os setores chamados da “oposição dialoguista”, por temas como impostos; certa desconfiança de setores da burguesia, que ainda o apoiam, defendem suas medidas, mas começam a ponderar se há viabilidade em seu plano; os resultados da colheita da soja, que tudo indica estarão aquém das previsões iniciais; e, por óbvio, o cenário de crescimento dos preços e da inflação, estimulada pelos anúncios do aumento das tarifas da energia e do transporte. 

O segundo round 

Milei perdeu a primeira batalha legislativa. Agora, quer reorganizar e re-embaralhar as cartas. A representante do FMI, Gitah Gopinath, visitou pessoalmente a Argentina para dar um recado duplo: um sinal claro de apoio à Milei e suas reformas; e ao mesmo tempo, a preocupação em monitorar a gestão, temendo que os choques sociais levem a uma situação insustentável. 

Como Milei levará adiante o segundo round de seu plano de guerra? 

Fragilizado no congresso, Milei vai buscar uma coalizão orgânica com o partido de Macri, o PRO. E irá se apoiar na necessidade da burguesia argentina de impor reformas que desregulem as condições de trabalho, dialogando com atores internacionais: os Estados Unidos, o FMI, o Papa, além do apoio entusiasmado da direita internacional. 

A situação econômica não irá melhorar.  Milei vai testando a relação de forças por um lado; por outro, quer aplainar o caminho para uma futura (e incerta) dolarização. O que vem? Novos confrontos , crise social, choque com sindicatos,  movimento de mulheres, 8 de março, 24 de março, novas greves, paritárias docentes, luta dos estudantes, ferroviários, setores populares, e uma nova greve geral que começa a se gestar. 

Seguir acompanhando e apoiando a luta do povo argentino


A luta entre Milei e a resistência popular do povo argentino vai se acentuar. Um cenário turbulento, numa situação complexa. Estivemos acompanhando desde o princípio do novo governo, enviando uma delegação sindical para participar da greve geral do dia 24 de janeiro; uma nova delegação das mulheres do PSOL se fará presente em 8 de março. É fundamental para a esquerda brasileira seguir de perto o processo, buscando iniciativas e coordenações, como a proposta que está se desenvolvendo de um encontro em Porto Alegre contra a extrema direita. 

Além disso, há uma hipótese interessante para os próximos capítulos da luta na Argentina: a entrada em cena da juventude argentina.

Ao contrário de grandes levantes da juventude que tiveram lugar no Brasil em 2013 ou no Chile em 2019, o ciclo de luta iniciado com o Argentinazo de 2001 teve como centralidade outros setores; não houve uma grande rebelião juvenil ou estudantil. E essa energia acumulada ou represada pode ser um diferencial, sabendo que parte da juventude mais precária acabou votando, sem tanta convicção, no próprio Milei. 


A última grande jornada de luta do movimento universitário foi a que derrotou o pacote de López Murphy, que previa intensos recortes no orçamento universitário.  Isso foi há alguns meses antes da irrupção popular de 2001, uma antecipação de uma situação mais conflitiva. 


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Pedro Micussi