Em defesa da democracia ou em defesa do governo?

Não há elementos suficientes para se diagnosticar neste momento um “golpe” contra o Estado Democrático de Direito, embora o país atravesse uma grave crise institucional na qual não se pode minimizar uma dinâmica de saída conservadora.

Charles Rosa 26 abr 2016, 16:12

Em artigo publicado no blog Junho, o cientista político Frederico de Almeida busca se contrapor ao Movimento Esquerda Socialista (MES) a respeito de como caracterizar a atual situação política do país. A discórdia gravita em torno da conceituação de “golpe” para o desmoronamento da governabilidade petista e o possível impeachment de Dilma Rousseff. Conforme a opinião do polemista, a corrente política de Luciana Genro exibe uma visão turva da realidade presente, em decorrência de um método de análise que ignora episódios relevantes da história, “instrumentaliza” as instituições democráticas e superestima as oportunidades abertas aos movimentos populares na hodierna correlação de forças. Este texto visa prosseguir o debate salutar com Almeida e o conjunto da esquerda, sustentando que não há elementos suficientes para se diagnosticar neste momento um “golpe” contra o Estado Democrático de Direito, embora o país atravesse uma grave crise institucional na qual não se pode minimizar uma dinâmica de saída conservadora.

Antes de tudo, porém, vale explicar um pouco mais o nosso rigor implacável com o emprego do termo “Golpe”. Preciosismo acadêmico de quem se deleita com o manuseio de enciclopédias ou preocupação prática de um agrupamento que se pretende revolucionário? Embora a primeira atitude não seja condenável em tempos de culto à desinteligência, acreditamos que a segunda atitude seja mais condizente com a tradição política reivindicada pelo MES, a qual remonta períodos de enfrentamento a regimes ditatoriais na América Latina. Se há “golpe” em vista, nenhuma outra tarefa justifica a não mobilização de todos os efetivos e quadros de nossas fileiras para obstaculizar a marcha contrarrevolucionária. Impulsionar formas de milícias populares ao lado de TODOS os setores democráticos consequentes não seria uma tática fora de cogitação, mas quiçá uma obrigação impostergável.

Mas o que entendemos por “golpe”, afinal? O MES reserva a nomenclatura “golpe ao Estado Democrático de Direito” para um certo tipo de manobra ultrarreacionária executado pelas classes dominantes, no sentido de conformar a maquinaria estatal às suas incessantes e crescentes necessidades de exploração da maioria do povo, redundando na perda acelerada e qualitativa de direitos civis e sociais das classes populares. Algo que resulte de uma conspiração extremista das organizações de direita, visando suspender as garantias legais de propaganda e agitação da esquerda. Um retrocesso evidente no regime jurídico em curso que acentua o componente de coerção na qual se lastreiam a obediência da população ao Estado e a hegemonia de uma classe social fundamental sobre a outra. Uma alteração abrupta nas regras convencionadas no estágio da luta de classes em que se processa o golpe, de modo que, uma vez consolidado, inibe as massas de reivindicarem suas conquistas históricas. Em suma, “golpe” é a investidura estatal (através da força e/ou da artimanha institucional) de um condomínio de interesses minoritários alheios e frontalmente contrários ao de uma maioria social que conferia legitimidade ao governo deposto.

Historicamente, “golpes” ocorreram e ainda ocorrem em todos os cantos do mundo. A metodologia da execução dos “golpes” varia no tempo e no espaço, de acordo com as circunstâncias propiciantes. Nestes casos, detectável sempre é a flagrante agressão aos princípios basilares da “democracia liberal”: atropelamento da Constituição vigente, insubordinação das forças armadas, ingerência de diplomacias imperialistas, inexistência das vozes oficiais nos jornais e TVs golpistas, etc.

Para não incorrermos em anacronismos, vamos tipificar três golpes célebres processaram na América Latina neste século:

a) Paraguai de 2012: O ex-bispo católico Fernando Lugo é apeado do poder por uma votação-relâmpago no Senado. Em menos de 36 horas, sem condições de ampla defesa, Lugo é destituído do cargo. Seria como se o STF brasileiro não tivesse regulamentado o processo de impeachment de Dilma Rousseff em novembro de 2015 e Cunha tivesse levado sumariamente a plenário o rito de afastamento da presidenta sem que a sociedade pudesse debater decentemente a conveniência da proposta.

b) Honduras de 2009: Uma quartelada usurpa o governo de Manuel Zelaya. Seria como se Dilma Rousseff acordasse pela manhã e, sem poder trocar seus pijamas, fosse sequestrada pela Força Aérea Brasileira e remetida a contragosto para um outro país.

c) Venezuela de 2002: Parte do exército venezuelano insurge-se contra Hugo Chávez, substituindo-o pelo presidente da Câmara e anulando a Constituição de 1999. O golpe fracassa quando uma multidão comparece às ruas de Caracas para defender o processo revolucionário bolivariano e assegurar a governabilidade chavista, a despeito de todo o esforço golpista feito pelas principais televisões empresariais do país. Seria como se uma parcela das Forças Armadas brasileiras tramasse a colocação de Eduardo Cunha no Palácio do Planalto e anulasse a Constituição de 1988.

Que latino-americano honesto haveria de negar aos três eventos citados o status de golpe efetivo contra as respectivas democracias burguesas? A manipulação “ao arrepio da lei” de setores burgueses reacionários com a anuência e/ou protagonismo de militares, sob o amparo explícito do imperialismo estadunidense, se fez presente nos três casos.

Situações que se distanciam qualitativamente do que se desdobra no Brasil há mais de um ano. As movimentações da oposição de direita para derrubar Dilma Rousseff são absurdamente oportunistas e sem legitimidade, em grande parcela por já conhecermos o caráter dos seus porta-vozes e articuladores. São sujos querendo destituir mal lavados. Mas tais movimentações até agora não configuram um “golpe” em sentido estrito e não alteram qualitativamente as “regras” da luta de classes que vem sendo “disputada” nos últimos anos no país (Como já observaria um sagaz comentarista de internet, “Fla x Flu” verdadeiro é “ricos x pobres”; “PT x Globo” é mais um jogo-treino entre titulares e juniores de um mesmo clube de futebol). Ter consciência disso implica em não adotar posturas passíveis de serem instrumentalizadas “em nome de uma democracia abstrata” pelo “setor político pró-burguesia” prestes a ser removido do governo, ainda que ninguém em sã consciência tenha coragem hoje em dia de se dizer um governista incondicional.

Logo, vejamos alguns indícios que a realidade e a boa construção de análises de conjuntura nos obrigam a considerar para não cairmos no “conto do golpe”:

a) O pedido de impeachment encampado pela oposição de direita foi confeccionado por Hélio Bicudo (notório defensor dos Direitos Humanos) e Miguel Reale Jr. (um dos signatários da “Carta aos Brasileiros de 1977” que afrontou o ditador Ernesto Geisel e um dos proponentes do impeachment de Fernando Collor). A frágil tese das “pedaladas fiscais” foi protocolada na Câmara em outubro do ano passado, concedendo tempo de sobra para a equipe de articulação política do governo angariar 171 votos na Câmara (um deles é do “baluarte da democracia” Paulo Maluf e outros tanto votos no Senado (em novembro essa articulação foi prejudicada pela prisão do líder do governo, Delcídio do Amaral). Os advogados da presidenta contam com todos os meios estatais possíveis para expor os elementos que desconstruam a “tese das pedaladas” perante a sociedade.

b) No TSE, tramitam quatro ações judiciais pró-cassação da chapa eleitoral de Dilma Rousseff/Michel Temer, uma delas por “captação ilícita de recursos”. A prisão do marqueteiro João Santana por recebimento de pelo menos 21,5 milhões de reais do “departamento de propina” da Odebrecht robustece esta tese.

b) A decisão quase unânime das 27 sessões estaduais da OAB em requerer o impeachment da presidenta ocorreu com a presença e a defesa do contraditório feita pelo advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo. É irrefutável que a OAB apoiou o Golpe de 64, como Frederico de Almeida rememora, mas também é irrefutável que desde o nascimento da Constituição de 88, a OAB vem se comportando como uma possível aliada das causas democratizantes empunhadas pelos movimentos sociais. Alguns exemplos: a campanha pelo fim do financiamento empresarial de campanhas, o pedido de cassação de Fernando Collor, o pedido de afastamento do ex-governador candango José Roberto Arruda (então do DEM), a luta pela não redução da maioridade penal, a PEC contra o trabalho escravo, atos contra a prisão de ativistas, etc. Há menos de um ano, a bancada parlamentar do PT que hoje ataca a entidade comprava uma briga com o reacionário ministro do STF Gilmar Mendes, o qual chamara a OAB de “laranja do PT”. Ou seja, embora nada desse passado recente justifique erros crassos que possam ser cometidos no presente pela OAB, cunhá-la de agente “golpista”, exclusivamente por causa de 64, inviabiliza o debate frutífero.

c) A delação premiada de Delcídio do Amaral, o ex-líder do governo no Senado, se evidenciada na parte concernente à Dilma Rousseff, pode enquadrar a presidenta no crime de responsabilidade. Teria a presidenta escalado Delcídio para barrar a Lava Jato? Se Aloízio Mercadante agiu por conta própria ao oferecer ajuda ao ainda não delator Delcídio, por que Dilma não o demitiu? Questões em aberto e sub judice: Dilma não é culpada até que se prove o contrário. Mas também não está isenta de fortes suspeitas.

d) O STF, uma das instâncias supostamente “golpista”, dispõe de todo o respeito da parte de Dilma Rousseff e Lula (os quais indicaram 8 dos 11 ministros da corte). E não é apenas Delcídio do Amaral que expressa isso. O ex-presidente afirmou ter plena confiança na corte máxima em recente carta. Caso o STF estivesse participando de um GOLPE, seria um dever cívico dos golpeados trazerem a público os traidores da pátria. Aliás, vale recordar sempre que nestes 14 anos de governo, o PT nunca foi consequente nas suas críticas ao reacionário Gilmar Mendes e só agora apoia o impeachment do togado tucano.

e) Michel Temer, o primeiro na linha sucessória, fez parte da chapa eleitoral que obteve mais de 54 milhões de votos na última eleição, graças aos “brilhantes” acordos de governabilidade operados pelo “genial” Lula. Quem votou na presidenta Dilma estava ciente do vice que ela carregava por livre acordo, uma vez que a foto de Temer também emergia na urna quando apertado o “13”. Então, os que usam nas redes sociais a pic-badge “ninguém vai tirar a legitimidade dada pelas urnas” precisam explicar se Temer não está sujeito a essa lógica também, da mesma forma que os defensores da entronização do vice precisam explicar por que Dilma deve ser cassada por corrupção e seu vice (frequentemente citado em delações premiadas e co-partícipe de uma chapa movida “a caixa 2”) não.

f) A Lava Jato, o principal vetor externo de desestabilização do governo Dilma (o vetor interno é o estelionato eleitoral), também vem atingindo todos os “caciques” da oposição de direita, ainda que assimetricamente e repleta de desvios próprios da Justiça burguesa. Eduardo Cunha é um dos alvos preferenciais do procurador-geral Rodrigo Janot e o nome de Aécio Neves já apareceu uma dezena de vezes nas investigações. Os grampos de Dilma merecem repreensão por não serem uma praxe mais frequente no que diz respeito aos escândalos tucanos (embora FHC tenha sido grampeado à época das privatizações). Mas não é ocioso recordar que em 2012, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo defendeu corretamente a escuta que flagrou uma conversa entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e o ex-senador do DEM Demóstenes Torres, que era protegido pelo foro privilegiado. Apenas um mentecapto ousaria argumentar que a cassação de Demóstenes foi um “golpe”.

g) São dependentes financeiramente do governo federal tanto a Globo (viciada em publicidade oficial) quanto a FIESP (bilionárias isenções fiscais). Os “golpistas”, consoante a narrativa governista, são faustosamente alimentados pelos “golpeados”. Um “golpe” muito sui generis este!

h) O Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu nesta semana um telegrama para as embaixadas brasileiras alertando para a iminência de um “golpe”. Mas, logo em seguida, desmentiu a si mesmo. Disse que não havia golpe. Além disso, o presidente argentino Maurício Macri, o parceiro estratégico de Washington na América do Sul, vem empenhando seu apoio ao governo brasileiro. Estaria a Casa Branca perdendo uma oportunidade de embarcar num “golpe” reacionário no Brasil, o qual certamente aumentaria sua presença aqui?

Ou seja, os pedidos de impeachment da presidenta que transcorrem no Parlamento e nos “encanamentos” do TSE, apesar de inconsistentes, oportunísticos e deturpados pela oposição de direita, obedecem às regras e convenções da atual democracia burguesa precária do país, assim como o pedido de afastamento de Collor em 1992 também obedeceu (não custa lembrar que posteriormente o oligarca alagoano seria absolvido no STF). A presidenta não está sendo vítima senão da própria indisposição e incompetência em contra-atacar os seus adversários à direita. Acostumou-se tão gravemente aos hábitos de “toma lá, da cá”, que quando perdeu irremediavelmente seu capital político de barganha viu-se em apuros. Naturalizou tão incisivamente as relações escusas com a burguesia parasitária, que não levava em conta a possibilidade de vir à tona a erupção de denúncias fatais que dinamitam sua legitimidade.

Neste contexto, esgrimindo o “jogo sujo” da política parlamentar burguesa, a oposição de direita compartilha um projeto de país com a TV Globo, maior partido das elites brasileiras. A alternativa constitucional de empossamento do vice Michel Temer (o chefe máximo do Leviatã nacional da corrupção que é o seu PMDB) configura mais uma dessas manobras reacionárias que povoam a nossa História. A remoção parlamentar de Dilma, por obra de um Congresso eivado de “homens de bem” do quilate de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, tem de ser rechaçado por quem se considera de esquerda sem qualquer vacilação. Trata-se da troca de um governo sem respaldo popular por outro com menos respaldo popular ainda, por manobra de um Congresso atolado em escândalos. Cumpre insistir que as mesmas ações ilícitas que comprometem Dilma também comprometem Temer e também comprometem as Casas Legislativas.

Além disso, é preciso considerar que, do alto do seu 1% de preferência eleitoral revelado pelo último Datafolha, Michel Temer tentará entregar à burguesia aquilo que o PT não pode mais entregar (disposição não tem faltado):

a) a aplicação do ajuste neoliberal que Dilma, enfraquecida pelo estelionato eleitoral e pela baixíssima popularidade, não consegue levar adiante à maneira completa exigida pelos “mercados”. Nesta mesma semana, o ministro da Fazenda Nelson Barbosa enviou ao Congresso o Projeto de Lei Complementar 257/2016 que trata de uma reforma fiscal. Em pauta, o arrocho do funcionalismo público e a “desburocratização” dos cortes em investimentos sociais. Ocorre que a agenda do impeachment imobiliza a tropa governista no Congresso. Ciente disso, Michel Temer já monta sua equipe econômica com os ex-lulistas Marcos Lisboa e Delfim Netto e agita para os “mercados” o seu plano econômico intitulado “Ponte para o futuro”, cuja viga mestra seria a destruição quase total do atual sistema previdenciário, já golpeado nos governos petistas e tucanos.

b) o abafamento da Operação Lava Jato. Dilma e Lula não conseguem controlar a Polícia Federal e a procuradoria-geral. A cada dia, surgem delações e “listões da Odebrecht” que tiram o sono da casta. Na visão da partidocracia, o juiz Sérgio Moro e a PF (agentes com alta popularidade) necessitam de um freio, antes que incendeiem de vez o que restou da República. Enquanto Lula se reúne frequentemente com Renan e a ala sarneyzista do PMDB para lhes oferecer seu capital político como escudo das investidas judiciais (o que parece cada vez menos crível), Temer e o PSDB já trabalham em sintonia com a Globo para, uma vez finalizado o impeachment, congelar a Lava Jato.

Em síntese, Michel Temer representará uma intensificação da guerra econômica que as elites estão travando contra o povo. Mas se a “alternativa Temer” não pode ser de nenhuma maneira aceita, só nos resta sair em defesa deste governo que foi eleito com um programa exatamente oposto ao que está sendo concretizado? Sair em defesa de um governo que não se diferencia da oposição de direita no que tange à promiscuidade com as empreiteiras? Sair em defesa de um governo que não conta mais com a maioria social que lhe elegeu nas urnas? Sair em defesa de um governo que há um ano não desapropria um centímetro sequer de terra arável para a reforma agrária? Sair em defesa de um governo que ousa se comparar com o reformista e golpeado João Goulart, mas permanece inerte no que tange à revisão da Lei da Anistia que perdoa torturadores do regime militar? Sair em defesa de um governo que comparece a convescotes com o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, um dos maiores partícipes do golpe de 1973 no Chile que interrompeu o governo popular de Allende? Sair em defesa de um governo que organizou a Copa da FIFA, assentada em ilegalidades e remoções? Sair em defesa de um governo que constrói barragens de usina em cima de santuários indígenas? Sair em defesa de um governo que turbinou a criminalização dos movimentos sociais depois de junho de 2013? Sair em defesa de um governo que salvou a TV Globo da falência? Sair em defesa de um governo que conduziu o país para a pior recessão desde os anos 1930? Sair em defesa de um governo que assiste bestializado o extermínio juventude negra e periférica pelas PMs fascistas? Sair em defesa de um governo que convoca o povo a defendê-lo ao mesmo tempo que sanciona a Lei Antiterror que iguala manifestantes a terroristas? Sair em defesa de um governo que insiste na consecução de um programa econômico que em um ano elevou a taxa de desemprego do país de 6,7 milhões para 9,6 milhões? Sair em defesa de um governo cujas diretrizes macroeconômicas levaram de novembro/15 a janeiro/16 a uma perda de 2,4% no rendimento do trabalhador em relação ao mesmo trimestre do ano anterior? Sair em defesa de um governo que veta a auditoria da dívida pública? Sair em defesa de um governo que afiança lucros recordes para os banqueiros? Sair em defesa de um governo que negocia com José Serra o entreguismo do nosso pré-sal?

Ora, não podemos ser sectários com os 70% de brasileiros que não suportam mais o governo Dilma e que não enxergam uma saída legítima em Michel Temer! Respeitamos os que dizem “defender a democracia” e “fazer oposição de esquerda” ao mesmo tempo. Realmente, seria preocupante considerar-se de “esquerda” e concomitantemente “defender um governo” que na prática só é notado quando divulga seus planos de recuperação da economia calcados no rebaixamento do custo da força de trabalho. Mas estaríamos sendo hipócritas se não salientássemos que são inócuas as exigências de “saída pela esquerda” a um governo que, para derrotar as urdiduras de Temer, demonstra querer ultrapassá-lo em perversão contra os mais pobres. O ajuste neoliberal perfaz a parte estrutural da crise na superestrutura. Caso escape do xeque-mate, o PT tentará recompor sua governabilidade tomando partido dos capitalistas. Não há excedente econômico suficiente para reorganizar uma “paz social” que contemple “melhorias mínimas” nas condições objetivas dos trabalhadores. A simbiose do PT com as forças do capital (demonstradas inúmeras e repetidas vezes nas últimas décadas) tornam ingênuas quaisquer esperanças de rompimento com a estratégia capitulatória. São enormes as chances de toda a mobilização “a favor da democracia – contra o golpe” acabarem instrumentalizadas por Lula (caso escape de ser preso) numa mesa de negociações com o PMDB, com Dilma entrando com a “legitimidade das ruas” e o PMDB com as ideias dos economistas neoliberais, numa “holding” terrível para o povo.

Desta competição “inter-casta” nada de progressivo pode se desenvolver. Não podemos escorregar na ideia derrotista de que a “defesa tática” desse governo é a única saída possível. Em 1999, em meio a uma grave crise econômica e social, quando o presidente era Fernando Henrique Cardoso e o vice Marco Maciel (PFL, reminiscência da ARENA), setores combativos do PT defendiam “novas eleições”. O dirigente histórico da esquerda petista Valter Pomar escreveu com irrepreensível justeza à época:

“Os que criticam hoje o ‘fora FHC’ são os mesmos que questionaram, ontem, o Fora Collor.  A eles respondemos que há base legal, institucional, para defender o afastamento do presidente: estelionato eleitoral, desrespeito a Constituição, danos ao patrimônio público e à soberania nacional, favorecimento a empresas etc.

O PT quer o afastamento de FHC e o cumprimento da Constituição, que prevê novas eleições. Em 1992, Itamar só conseguiu tomar posse porque, erradamente, não exigimos a antecipação das eleições. A antecipação das eleições constitui uma saída democrática para a crise atual. Mas para que a antecipação das eleições seja possível, e para que a direita não a capitalize, é preciso que haja um grande movimento de massas.”

Sabemos que a história não se repete nas mesmas condições de temperatura e pressão. Mas uma ingrata dicotomia entre “Fica Dilma” e “Entra Temer” não fica atrás da dicotomia entre “Fica FHC” e “Entra Marco Maciel”. É fato que a esquerda tinha o PT maduro para assumir o governo (e apodrecer), algo distante do que temos hoje. Mas, por outro lado, Dilma está mais enfraquecida que FHC e a Nova República respira por aparelhos. Não é digno de quem se apresenta como o novo estender a mão para o que falece. Compreende em melancólico casuísmo desprezar agora os princípios que nortearam a política de “Novas Eleições” defendida por Pomar e pela esquerda consequente. Se não confiamos no povo, nos momentos de desintegração da casta, estamos nos comportando de maneira análoga àquele militar que diante de uma manifestação popular convoca as massas para retornarem aos lares com o singelo argumento “O povo é ilegal”, conforme charge genial de Henfil no contexto das “Diretas Já”.

Despojar-se do derrotista lema de “escolher o menos pior, porque é o que a miséria do possível nos concede” não diminui, de forma alguma, as dificuldades reais para o crescimento de uma alternativa progressista independente no campo eleitoral. A aprovação da contrarreforma política que restringe a participação dos partidos de esquerda nos programas de TV e nos debates eleitorais foi um verdadeiro “golpe”. Enquanto a Globo dispõe de 24 horas de concessão pública para manipular à vontade, a esquerda (essa mesma esquerda que os governistas convidam para marchar em defesa do governo) remói os poucos segundos que lhes restaram para se comunicar com as multidões.

Entretanto mesmo neste cenário espinhoso, é preciso ter clareza de que não há por ora uma arrebatadora ofensiva eleitoral do fascista Bolsonaro. O nome de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto pontua por volta dos 6%. Um número significativo, mas incompatível com a onda fascista enxergada pelos oficialistas. Algo que pode deixar de ser verdade daqui 2 anos, caso este governo caquético continue a desmoralizar o nome da esquerda perante amplos setores sociais, os quais também reprovam as alternativas burguesas estabelecidas e buscam um polo orientador por fora do regime político em frangalhos.

Marina Silva seria, em tese, a mais “beneficiada” pela antecipação das eleições. O fato de ela não ter sido atingida pela Lava Jato derruba seus “irmãos siameses” e a conserva viva na disputa. É provável que ela tente de novo reembalar o programa tucano ao sabor dos “mercados” (Marina Silva adotou André Lara Resende, um tucano de quatro costados que participou do alto escalão do governo FHC, como guru nas eleições de 2014), o que não significa algo muito diferente do que já está no governo, na oposição de direita ou em Ciro Gomes (oligarca cearense que começou a carreira no PSDB e agora é um dissidente do lulismo).

Dentre as candidaturas autenticamente outsiders, a com mais potencial para representar no Brasil o fenômeno mundial de revitalização das esquerdas (Bernie Sanders, Bloco de Esquerda, Podemos, Frente Amplia peruana, etc.) é Luciana Genro (PSOL) que aparece com 3% em todos os cenários ventilados pelo Datafolha (o dobro do que obteve em 2014). Na faixa etária de 16 a 24 anos, Luciana Genro alcança 7% de preferência eleitoral em determinados cenários. Além disso, desfruta de baixos índices de rejeição em comparação com os outros presidenciáveis: quase a metade da rejeição de Bolsonaro e Marina, e um décimo da rejeição de Lula. Para uma candidata com a certeza de não estar na lista da Lava Jato estes “handicaps” não são desprezíveis no atual contexto.

Sem dúvidas seria desejável que estivéssemos numa situação pré-revolucionária a qual permitisse uma arrancada das forças populares, nas diferentes frentes, rumo à montagem de um Estado de novo tipo. Contudo, como infelizmente este não é o caso, a convocação de um “recall” e, posteriormente, de “novas eleições gerais” é o mais lúcido e arrojado que o povo pode esperar da esquerda, no espírito leninista do “sempre um passo na frente, nunca dois”. Quem efetivamente se preocupa com o fortalecimento da democracia, na acepção radical da palavra, deveria desde já se incorporar a campanha por “novas eleições gerais” sem financiamento privado de campanha, com a possibilidade de todas as forças políticas postularem abertamente seus programas para resolução da crise. O próprio PT, por exemplo, poderia conduzir democraticamente às urnas o julgamento histórico de Lula.

À guisa de conclusão, reiteramos nossa negativa em tomar lado de uma falsa polaridade teatralesca que responde aos interesses das elites. O terceiro campo não é algo abstrato, como a “defesa da democracia” que oculta “defesa ao governo menos pior”. O terceiro campo vai se construindo ocupação por ocupação, marcha por marcha, piquete por piquete, com a paciência revolucionária dos que entendem que a esquerda não se pode furtar a tarefa de responder às necessidades concretas da população, nem abandonar os interesses históricos dos oprimidos. Por isso que consideramos um golpe, em sentido amplo, um pacto entre as forças políticas feridas pela Lava Jato e a geração de um “consenso parlamentar” repentino. Seria um grande desconhecimento da nossa história pensar que vamos nos resignar à explícita manobra das elites de iminente coroação de Michel Temer e ao aprofundamento do ajuste antipopular.

Defendemos novas eleições já, em defesa da democracia real.


TV Movimento

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Pedro Micussi