Leon Trotsky e os apontamentos com  C.L.R. James
CLR James em 1946

Leon Trotsky e os apontamentos com C.L.R. James

Danilo Serafim descreve o intercâmbio político e intelectual entre CLR James e Leon Trotsky na elaboração de um programa antirracista e revolucionário para o SWP no fim dos anos 1930.

Danilo Serafim 25 ago 2021, 20:11

Neste ano de 2021, os marxistas revolucionários, lembram da morte brutal de Leon Trotsky pelas mãos de Ramon Mercader, um agente o stalinismo, no México, na certeza  que a herança política do grande revolucionário da Revolução Russa de 1917, juntamente com Lênin, continua viva política e culturalmente, enquanto o stalinismo sucumbiu em sua degeneração burocrática contrarrevolucionária.

Isaac Deutscher, no prefácio do primeiro livro da sua trilogia sobre a vida do revolucionário Leon Trotsky O Profeta Armado, escreve: “Durante cerca de 30 anos as poderosas máquinas de propaganda do stalinismo trabalharam furiosamente com o objetivo de arrancar seu nome dos anais da revolução, ou deixa-lo ali apenas como sinônimo de arquitraidor”.

A trágica história da vida do grande revolucionário soviético onde teve praticamente toda a sua família vitimada pelas mãos assassinas do stalinismo as duas filhas e os dois filhos, não foi suficiente para extirpar o pensamento de Trotsky da memória e da ação dos marxistas revolucionários. 

Neste artigo, pretendo mostrar que Trotsky foi um dos poucos líderes da Revolução Russa de 1917 que dedicou  tempo, num dos momentos mais dramáticos da sua vida, para entender a questão do racismo e da segregação racial nos Estados Unidos e em outros lugares com seus diálogos com C.L.R. James no México, em 1939, para juntos debaterem e elaborarem a tática, a estratégia e um programa antirracista para o SWP (Socialist Workers Party), tendo como ponto de partida a autodeterminação e a teoria da Revolução Permanente.

Isabel Wilkerson relata, num trecho de seu livro Casta, As Origens de Nosso Mal-Estar, a atmosfera do sistema de ódio, violência  e segregação racial dos Estados Unidos e dos negros e negras no sul país, daquele período. Se não vejamos:

“No centro de Omaha, acenderam e prepararam uma fogueira para Will Brown. Os jornais tinham anunciado previamente o linchamento, e nada menos que 15 mil pessoas se reuniram na praça do tribunal naquele dia de setembro de 1919, e era tanta gente que não é possível distinguir os rostos no mar humano numa foto tirada do alto. Aqueles milhares de pontinhos numa fotografia – pais, avós, tios, sobrinhos, irmãos , adolescentes – estavam unidos no mesmo espírito, fundidos num organismo em si, voltados para uma única missão, não apenas para matar, mas para humilhar, torturar e incinerar outro ser humano e, juntos, aspirar de carne queimada.

Dois dias antes, uma mulher branca e seu namorado haviam dito que um negro a molestara quando o casal estava passeando na cidade. Nenhuma pessoa ainda viva sabe o que aconteceu, e desde então surgiram muitas perguntas. O rancor contra o influxo de sulistas negros  indo para o Norte durante a Grande Migração, vinha aumentando, e os policiais prenderam Will Brown, que trabalhava num abatedouro. Não houve investigação, não houve processo. Naquele dia, a turba saqueou as armas das lojas de penhores locais e disparou contra o tribunal onde Brown ficara detido”         

A influência da Revolução Russa e da Terceira Internacional chamou atenção da questão racial nos Estados Unidos e nas lutas contra o colonialismo na África, e promoveu um giro na política nacional para a luta dos negros.

O PC passou a observar a necessidade de um programa especial para a questão que pautasse a dupla exploração dos trabalhadores negros e que compreendesse a questão negra especialmente como uma luta por libertação nacional.

Lênin formulou que todo revolucionário deveria apoiar movimentos por autodeterminação, mesmo que estes sejam liderados pelas burguesias nacionais, como meio de se opor ao imperialismo e avançar no socialismo. Os líderes da Revolução Russa tinham conseguido influenciar os comunistas estadunidenses para mudar sua abordagem das lutas dos negros na década de 1920. 

A questão racial passava então a ser vista como uma questão nacional e a luta do povo pela autodeterminação.

O IV Congresso do Comintern, em 1922, o último que Leon Trotsky participou ativamente, aprovou as Teses sobre a questão negra, que afirmavam:

  1. O IV Congresso considera essencial apoiar todas as formas do movimento negro que visam minar ou enfraquecer o capitalismo e o imperialismo ou impedir a sua expansão.
  2. A Internacional Comunista lutará pela igualdade racial de negros e brancos, por salários iguais e igualdade de direitos sociais e políticos.
  3. A Internacional Comunista fará todo o possível para forçar os sindicatos a admitirem trabalhadores negros onde a admissão é legal, a vai insistir numa campanha especial para alcançar esse fim. Se esta não tiver êxito, ela irá organizar os negros nos seus próprios sindicatos e então fazer uso especial da tática da frente única para forçar os sindicatos gerais a admiti-los.
  4. A Internacional Comunista vai tomar imediatamente medidas para convocar uma conferência ou congresso internacional negro em Moscou

No fim da década  de 1930, a Internacional Comunista, controlada pelo Stalin, abandonou a Resolução do IV Congresso e mudou a leitura da resolução. O PC impôs a chamada “teoria do Cinturão Negro (Black Belt)”, que ora adotava uma linha sectária ou ora aderia à linha de Roosevelt e a sua política imperialista, revelando que a degeneração stalinista crescia rapidamente na organização estadunidense.

Em 1933, Leon Trotsky rompeu com a Terceira Internacional Comunista e liderou a Oposição de Esquerda contra a burocratização e a degeneração da Revolução Russa. Os militantes que se alinhavam à Oposição de Esquerda e com as críticas à burocratização stalinista foram expulsos do Partido Comunista Americano e fundaram uma nova organização revolucionária dos EUA: o Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP).

Os aliados de Trotsky foram aos Estados Unidos para falar diretamente com os comunistas do SWP sobre as questões do racismo e da opressão contra a população negra, minoritária naquele país, provocando-os a superar sua passividade política num país onde as leis Jim Crown determinavam a vida, a sorte e a morte dos afro-americanos.

Trotsky admitiu saber muito pouco sobre a situação concreta dos afro-americanos, daquele sistema de segregação racial no país da “democracia e da liberdade” e, através de reuniões e trocas de correspondências, procurou se inteirar mais com a direção do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) .

A atmosfera do racismo nos Estados Unidos era tão espessa e o ambiente de segregação tão pesado que negros não frequentavam as mesmas escolas, igrejas (o cristianismo racial), lanchonetes, restaurantes, transportes de brancos, onde os linchamentos de negros e negras era uma prática comum, que os próprios dirigentes do SWP mal foram capazes de dizer a Trotsky até mesmo se os negros do sul falavam outro idioma ou não.

C.L.R. James encontra com Trotsky: debates sobre autodeterminação e organização independente de massas da luta negra

James (1901-1989) nasceu em Trinidad e Tobago, onde trabalhava como jornalista esportivo. Aos 30 anos, mudou-se para a Inglaterra e começou a militar no Partido Trabalhista Independente  (Independent Labor Party) e na pequena organização trotskista chamada Grupo Marxista (Marxist Group). Nesse período, ele escreveu suas duas maiores contribuições teóricas: World Revolution (1937) e Os Jacobinos Negros (1938).

O clássico Os Jacobinos Negros, escrito por L.C.R. James, evidenciou sua a adesão clara ao marxismo. James registrou um dos momentos ou o movimento mais importante de uma revolta de escravos na ilha de São Domingos, que durante anos foi omitida e negligenciada dos livros de história, em particular aqui no Brasil, que pode ser resumida no seguinte por Jacob Gorender:

“Entre todas as numerosas insurreição de escravos, ocorridas desde até os tempos modernos, somente uma foi vitoriosa: a insurreição de escravos da Colônia de São Domingos, iniciada em 1791, no território onde hoje se localiza a república do Haiti”.

A Revolução de São Domingos destruiu a suposição racista de que os negros africanos nunca poderiam se libertar e governar  a si mesmos, acelerou o fim do comércio de escravos e se tornou um importante ponto de referência na Guerra Civil Americana e em revoltas de escravos no Brasil e outros países da América Latina e do Caribe.  

James foi um dos fundadores da IV Internacional, em 1938, e logo se mudou para os Estados Unidos, onde militou ativamente como dirigente do SWP, adotando o nome J.R. Johnson no partido.

C.L.R James, trotskista, revolucionário e negro caribenho, viajou ao México, em 1939, onde se reuniu com Trotsky para debaterem juntos tática e estratégia, para formulação de um programa político do SWP para a luta negra estadunidense. Foram debates que cravaram raízes profundas na tradição política do marxismo revolucionário e da luta negra. James tornou-se internacionalmente reconhecido por colocar a questão do povo negro como um tema central para compreender a formação da classe trabalhadora na América e no Caribe, e a perspectiva marxista revolucionária.     

Os debates de 1939, de Trotsky com C.L.R. James, giraram em torno do nacionalismo negro e dos princípios da autodeterminação e auto-organização independente dos oprimidos, além do plano com centralidade na questão negra para o SWP.

O debate deu-se sobre como deveria ser analisada a questão do negro norte-americano: como uma minoria nacional ou uma minoria racial? A posição de Trotsky:

“O importante para Trotsky era reafirmar que as lutas por autodeterminação são lutas democráticas importantes para uma perspectiva de revolução permanente, independente do seu conteúdo, os marxistas revolucionários  devem demonstrar apoio, no discurso e prática política, pois só pela nossa coerência e radicalidade que mostrarão as diferenças entre os pequenos burgueses, oportunistas, reformistas e revolucionários”.

Para Trotsky a autodeterminação dos povos oprimidos é um principio do internacionalismo revolucionário. Trotsky afirmava que os camaradas negros do SWP devem apresentar para os movimentos negros que a IV Internacional, sempre defenderá a autodeterminação. E que a IV Internacional entende que seria melhor lutar em conjunto com os trabalhadores brancos por uma sociedade sem opressões. James mostrou que tinha acordo com essa formulação de Trotsky.

No entanto, James defendia a formulação que o SWP impulsionasse a construção de uma organização negra independente de massas. Esta organização negra seria responsável por produzir e sistematizar estudos sobre a luta negra na história dos EUA, e produzir um jornal semanal.

Por fim, debateram que uma organização independente de massas, deveria estar aberta para os negros de todas as classes que se dispunham a lutar contra a opressão racial, mas Trotsky atenta para o perigo de uma organização se degenerar quando ela não existe entre os setores mais oprimidos; a possibilidade de ganhar lideranças religiosas e trabalhadoras domésticas.

O objetivo era que o SWP incluísse no seu programa político a centralização e a luta do povo negro como prioridade, sob pena de falhar com a tarefa histórica da revolução permanente. Segundo Ahmed Shawki, em seu livro Libertação Negra e Socialismo, uma das principais preocupações de Trotsky era a crescente adaptação ao ambiente “aristocrático” e seu distanciamento da massa dos trabalhadores, na qual os negros são os mais explorados. A expectativa dele era que os organizadores do partido os colocassem em condições de se tornar lideranças de um novo levante negro.

As discussões entre C.L.R. James e Leon Trotsky marcaram um avanço importante no entendimento da dinâmica da luta dos negros nos Estados Unidos. Elas também tiveram importantes compreensões, que mais tarde, seriam confirmadas pelo surgimento dos movimentos políticos pelos direitos civis e Black Power nos anos 1950 e 1960. Os movimentos que eclodiram naquele país desafiaram o sistema e suas instituições. A luta antirracista, além de mobilizar atos massivos, deixou de ser inativa politicamente e tornou-se uma importante vanguarda da luta de libertação do povo negro que obteve vitórias significativas. Outro momento de crucial importância, segundo Ahmed Shawki em Libertação Negra e Socialismo, foi que, com o impulso da autodeterminação, o SWP tornou-se simpático e apoiou o surgimento do nacionalismo negro nos anos 1960 nos Estados Unidos, em oposição ao partido comunista (stalinista) e à social-democracia de esquerda, que denunciaram Malcolm X e os Panteras Negras.  

Conclusão

O debate feito entre Trotsky e C.L.R. James nos traz algumas lições importantes para serem trabalhadas entre os movimentos negros e trotskistas. O primeiro é que a teoria da Revolução Permanente – apresentada primeiro por Marx, porém, elaborada, escrita e aprofundada por Trotsky, foi um processo vivo, subproduto das polêmicas contra o stalinismo, das reflexões sobre os fatos concretos da luta de classes, sobre as derrotas e vitórias do proletariado – continua mais atual do que nunca.

Segundo, a necessidade de não fragmentar a luta antirracista da defesa da revolução através do partido revolucionário. James, um intelectual orgânico negro, marxista e trotskista, não apenas negro, nem somente marxista, mas sim um negro marxista revolucionário.

A  obra de James, Os Jacobinos Negros, nos ajuda a identificar, a compreender e a reafirmar a luta contra o racismo e o capitalismo, que essa luta só pôde lograr êxito no Haiti através de um combate sem tréguas contra o colonialismo e o bonapartismo francês (enquanto os jacobinos franceses eram guilhotinados, os jacobinos negros de Toussaint combatiam pela liberdade), através de uma insurreição vitoriosa de escravos africanos.

A luta antirracista, exige uma perspectiva radical, anticapitalista e internacionalista, que a IV Internacional fundada por Leon Trotsky propõe-se a levar adiante.  

Para Trotsky, a autodeterminação e auto-organização dos oprimidos e explorados, como questão de principio,  é também uma questão revolucionária. Não pode ser instrumentalizados pelos interesses do partido, ou de uma burocracia. O marxismo como método não ignora os contextos e particularidades, chegando Trotsky a defender que a revolução permanente nos EUA só seria possível com o protagonismo da luta negra. Podemos arriscar-nos a dizer, e não seria absurdo, que o levante antirracista do Black Lives Matter, em 2020, crucial para derrota de Trump, reivindica as grandes mobilizações do movimento negro da década de 1960, o nacionalismo e depois o internacionalismo de Malcolm X, as lutas dos Panteras Negras, de Ângela Davis, que tem no germe a mesma dinâmica de lutas que C.L.R. James defendeu nas décadas anteriores, muito influenciado a partir dos diálogos que teve com Trotsky no México em 1939.


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Pedro Micussi