O Brasil precisa atender ao chamado palestino por boicote a Israel
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O Brasil precisa atender ao chamado palestino por boicote a Israel

“Não há mais dúvida sobre apartheid promovido por Israel. A dúvida é o que fazer”, diz Maren Mantovani, ativista do movimento BDS

Samir Oliveira 9 dez 2022, 16:00

O que fazer diante do apartheid promovido por Israel contra o povo palestino? Essa é a questão posta diante da comunidade internacional. E a própria questão por si só representa um avanço, se considerarmos que há alguns anos o conceito de apartheid não encontrava eco em atores importantes da sociedade civil. Isso tem mudado radicalmente, aponta Maren Mantovani, coordenadora de relações internacionais do movimento Stop The Wall, uma das organizações que compõem o chamado por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel.

Maren conversou com a equipe da Revista Movimento durante sua passagem pelo Brasil, onde articulou a entrega de uma carta à equipe de transição do futuro governo Lula, exigindo que o Brasil reconheça o apartheid praticado por Israel e se coloque de maneira firme ao lado do povo palestino. 

Nesta entrevista, Maren resgata a trajetória de lutas do movimento BDS, inspirado nas mobilizações por boicote contra o regime de apartheid da África do Sul, e conclama o Brasil e a América Latina a aderirem a esta tática, com a certeza de que o isolamento de Israel e a pressão internacional – de governos, entidades da sociedade civil e organizações políticas – são fundamentais para por fim ao regime colonialista, à ocupação militar e ao apartheid imposto contra o povo palestino.

Revista Movimento – A senhora poderia começar se apresentando, apresentando o movimento no qual atua e a luta por BDS?

Maren Mantovani – Sou coordenadora de Relações Internacionais da campanha contra o muro (Stop The Wall), que é um movimento de base que está se construindo na luta, com organização de manifestações, apoiando as comunidades que estão resistindo contra a limpeza étnica. Apoiamos quem está defendendo suas casas e escolas contra as demolições. Esse movimento se forma em 2002, quando Israel começa a construir o muro do apartheid, que circunda as aldeias e cidades palestinas, roubando terras, águas e recursos naturais do povo palestino, deixando-os praticamente presos dentro de muros – seja em Gaza, seja na Cisjordânia. Mais ou menos 13% do território palestino está cercado de muros. Quem não está incluído nestes 13% ou está no exílio (mais da metade do povo palestino já está no exílio), ou está lutando contra sua própria expulsão. E esse movimento de campanha contra o muro, desde 2005, faz parte integral da fundação do chamado por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que nasceu em julho daquele ano. O BDS é uma campanha, uma estratégia e um movimento que luta para que o mundo deixe de apoiar o apartheid israelense, deixe de ser cúmplice deste apartheid em várias maneiras.. 

O BDS é um chamado apoiado por toda a sociedade civil palestina, todas as forças sociais, incluindo refugiados da Cisjordânia e de Gaza, bem como os que são cidadãos de Israel também. E o Comitê Nacional Palestino, junto com o BDS, recorre a todas as organizações, como um guarda-chuva, para dar uma direção e uma referência para nosso movimento, que hoje é global e existe em todos os continentes, desde a ponta mais ao Norte da Noruega até a Patagônia. E nesse movimento, eu faço parte do Comitê Nacional Palestino, do Secretariado Internacional, sendo responsável, entre outras coisas, pela América Latina.

Revista Movimento – O BDS teve inspiração no movimento contra o apartheid na África do Sul. Que paralelo é possível fazer entre o regime de Israel hoje e o que existiu no país africano?

Maren – A inspiração é muito clara. Em 2001, ocorre a grande conferência das Nações Unidas contra o racismo, em Durban, na África do Sul. Lá surge pela primeira vez o tema de que Israel está fazendo não somente uma ocupação militar, o que já seria grave, mas a instauração de um regime de lesa-humanidade, de apartheid, de supremacia e opressão sobre o povo palestino. À época, na conferência, a nível governamental, o tema da Palestina chegou junto com a reivindicação dos movimentos negros por reparação sobre a escravização. Acho interessante que esses dois pontos de racismo estrutural – desde a escravização até a questão palestina e o apartheid israelense – foram centrais naquela conferência. Mas o mundo e os governos não podiam aceitar, e rechaçaram esse tema. O acordo fracassou, mas permaneceu dentro dos movimentos a ideia de que para avançar na luta e na solidariedade com a Palestina, teríamos de reajustar nossos parâmetros, nosso entendimento do que está se passando com a ocupação e o projeto colonial de segregação.

Revista Movimento – Quais são os elementos que corroboram essa avaliação do apartheid? De que forma ele se dá sobre a população palestina?

Maren – Na definição da convenção internacional do apartheid, esse regime envolve várias formas opressão e discriminação sistemática de um povo ou população, com cunho racial. Acho que a grande diferença entre um Estado como o Brasil, onde há, sem dúvida, um racismo estrutural que continua desde a colonização até hoje, é que em Israel a discriminação do povo palestino é prevista em lei. No Brasil, as comunidades negras, faveladas, quilombolas e indígenas, de fato, não têm os mesmos direitos. São oprimidos e mortos. Há um genocídio em andamento. Mas em Israel ele está institucionalizado. Palestinos e palestinas não têm os mesmos direitos. E não são apenas os que vivem em Gaza ou na Cisjordânia que estão sob regime de apartheid. Palestinos com cidadania israelense em Israel não têm os mesmos direitos diante da lei. Em 2018, Israel se declara um Estado para judeus somente. Enquanto qualquer pessoa judia, ainda que nunca tenha visitado aquela parte do mundo, pode decidir ser cidadão de Israel e mudar-se para lá, palestinos refugiados, expulsos de suas próprias casas e terras, ainda que com as chaves da porta na mão, não podem voltar. Essa é a grande distinção, a legalização da discriminação e do racismo, que acarreta uma série de opressões, assassinatos, detenções, negação ao direito à educação e à saúde, entre outras coisas.

Revista Movimento – Até recentemente, a caracaterização do apartheid israelense era tida como polêmica. Muitas organizações de direitos humanos não a aceitavam. Isso tem mudado no último período. A Human Rights Watch e outras organizações importantes encamparam essa definição de apartheid. Você avalia que está crescendo a aceitação da compreensão geral das pessoas e organizações de que, de fato, o que Israel faz com os palestinos é um regime de apartheid?

Maren – Eu diria que a percepção sobre o apartheid israelente mudou radicalmente. Praticamente ninguém mais questiona se Israel comete ou não esse tipo de crime. A Human Rights Watch, que não é um conselho revolucionário, a Anistia Internacional, a Federação Internacional dos Direitos Humanos, os relatórios das Nações Unidas sobre os direitos humanos estão todos dizendo que está acontecendo esse crime. A mesma coisa aqui, na América Latina. Visitei vários países, falando não somente com organizações de direitos humanos, mas com correspondentes políticos, e não encontrei ninguém que tenha dúvidas sobre o apartheid. Estamos num ponto em que a dúvida é: “o que fazer?’, e não se existe ou não apartheid em Israel contra o povo palestino.

Revista Movimento – O crescimento do movimento BDS resultou em diversas tentativas de criminalização dessa estratégia de luta por parte de Israel. Como está esse cenário atualmente?

Maren – Israel está tentando criminalizar o BDS e qualquer organização ou pessoa que critique suas políticas. Eles não conseguiram, contudo, porque é muito difícil argumentar que aplicar a lei internacional é um crime. É difícil dizer que as pessoas, ao escolher eticamente como consumir e contratar empresas, estejam cometendo crime. Isso é o que o BDS pede: que as pessoas pensem, façam uma escolha ética ao comprar produtos, ao contratar serviços, ao se relacionar com instituições israelenses que fazem propaganda desse estado de apartheid. Então, pouco efeito tem tido essa tentativa de criminalização. Há dois ou três anos, Israel fechou seu Ministério de Assuntos Estratégicos, que, fundamentalmente, era um órgão criado para combater o BDS. Ao fechá-lo, a mensagem explícita foi a de que ele havia fracassado.

Vai ser difícil para Israel ganhar nesse caminho. A política israelense contra o povo palestino está cada vez mais brutal e violenta, e como resultado do próprio apartheid, Israel exibe hoje o governo mais abertamente racista de sua história. O projeto [de nação] foi colonial e racista desde o início, sabemos, mas nasceu com uma retórica, uma intenção de construir uma visão liberal da “única democracia do Oriente Médio”, e todas essas mentiras de propaganda. Hoje temos um governo com políticos que pedem abertamente o assassinato e a limpeza étnica de palestinos. Como uma companheira palestina outro dia me disse: “Antes tínhamos medo de, nos checkpoints militares, não conseguirmos passar. Agora estamos a um ponto que nosso medo não é apenas não conseguir passar, mas sermos mortos”. São diários os assassinatos de pessoas que não fizeram absolutamente nada. Essa matança cotidiana está amentando, o que torna o movimento do BDS mais urgente do que nunca, por uma resposta global que acabe com esse apartheid. A cada dia que esperamo, há outros palestinos e palestinas mortos. 

Revista Movimento – Qual a importância da América Latina e do Brasil nesse movimento? Quais parcerias com Israel podem ser questionadas?

Maren – Nesse movimento, trabalhamos por boicotes e sanções. Temos absoluta urgência e pedimos aos governos que, pelo menos, deem o passo que não deram 20 anos atrás, e finalmente reconheçam que Israel comete o crime de apartheid. Que reabram, nas Nações Unidas, o comitê especial para termos um mecanismo de enfrentamento ao que ocorre na Palestina. Esse caminho na ONU nasceu há cerca de dois anos, quando lideranças de África, Ásia e América Latina lançaram uma declaração chamada de “Resposta do Sul Global”. Eles se juntaram para reconhecer o regime de apartheid israelense e pediram a reabertura do comitê das Nações Unidas – já que Corte Penal Internacional atua sobre as queixas há anos, mas ninguém faz nada –  e, evidentemente, trabalhar sobre sanções. Essa resposta do Sul Global foi assinada por nomes que fizeram parte da primeira onda do progressismo sul-americano, como os presidentes Lula da Silva, Dilma Rousseff, Mujica, Correa, congressistas de várias forças políticas brasileiras, e presidentes chegados recentemente ao poder, como Boric, no Chile. 

Chamamos o Sul Global para mover-se com razão, com ética ideológica, porque o apartheid e o colonialismo são questões em comum entre esses países. Há uma responsabilidade de se unir nessa luta e, por outro lado, porque se queremos ganhar uma resolução nas Nações Unidas, são os votos do Sul que fazem a maioria. Essa resposta do Sul Global foi o início do plano estratégico que estamos trabalhando agora. A grande questão é: onde está agora, quando há nova onda de governos progressistas, a mobilização da América Latina? Enquanto temos governos dispostos a liderar esse processo também nas Nações Unidas, na África e na Ásia, na América Latina ninguém deu um passo adiante. E o Brasil, agora com novo governo, tem um papel fundamental. É só lembrarmos o que passou com o reconhecimento do Estado da Palestina. Em 2010, ou 2012, quando a ONU fez sessão para reconhecê-lo, quando o Brasil se levantou a favor, imediatamente outros países o seguiram. Sabemos que Chile, Colômbia e Argentina e outros estão dispostos a seguir o Brasil. Basta o novo governo assumir esse papel.

Revista Movimento – Foi entregue uma carta à equipe de transição com o pedido de que o novo governo Lula reconheça que Israel promove um regime de apartheid. Como foi essa articulação?

Maren- Ficamos muito felizes que movimentos negros, indígenas e favelados se uniram para escrever uma carta ao novo governo brasileiro, pedindo que tomasse a pauta contra o apartheid israelense como sua, por solidariedade ao povo palestino, que está sofrendo com morte, discriminação e perda de terras. É uma luta em comum e se o governo brasileiro realmente quiser tomar uma posição global antirracista, terá de tomar uma posição contra o apartheid. Esperamos que o governo Lula escute esse chamado da própria população.

Revista Movimento – Se a América Latina é importante para o BDS, também o é para Israel. De que forma esse país atua sobre o continente com parcerias militares, comerciais, políticas?

Maren – Israel tem muita influência no Brasil. Não por acaso, a esposa de Jair Bolsonaro foi votar no segundo turno com a bandeira israelense na camiseta. Há bandeiras de Israel perto dos quartéis militares [usadas pelos bolsonaristas que pedem golpe]. As mesmas bandeiras apareceram na tentativa de golpe pró-Trump, nos EUA, e nas manifestações de extrema direita na Europa. Sem falar que não houve um golpe de Estado na América Latina nos anos 1970 que não fosse apoiado, armado e treinado por Israel. Isso continua até hoje e, provavelmente, tem uma abrangência muito mais global. A campanha do movimento do BDS aqui tem um slogan que diz: “As balas israelenses matam na Palestina e na América Latina“. Porque há exportação de ideologia, metodologia e tecnologia de apartheid para reprimir e manter sistemas de opressão racial. Basta pensarmos no Bope, que cada dia mata mais nas favelas. Ele foi treinado por uma empresa israelense. Há um vídeo em que o diretor dessa empresa acompanha os soldados no Complexo do Alemão e diz: “Vocês fazem um trabalho fantástico, exatamente o que fazemos com os palestinos em Gaza”. Acho que não tem uma maneira mais simples para explicar o que se passa. 

O que está acontecendo na Colômbia e no Chile, com a chegada de governos progressistas, e deve acontecer também no Brasil, é Israel tentar esconder um pouco a relação fundamental já existente. Não que vá acabar, mas vai se esconder, ser substituída por uma propaganda que “ajudará na mudança climática”, na seca, na resolução dos problemas no campo e coisas assim. De fato, o governo do Rio Grande do Sul, há duas ou três semanas, mandou uma delegação oficial a Israel para ver novas tecnologias, e estou segura que veremos muito disso. Ocorre que a agrotecnologia israelense não ajuda a nenhum camponês. Nem no Brasil, nem em outro lugar. Porque, à parte de ter drones militares adaptados para uso agrícola, é uma tecnologia feita para um agronegócio que tem como principal objetivo a colonização, o roubo de terra de camponeses que foram expulsos de suas casas. Israel faz uma limpeza étnica, toma terras e planta nelas para garantir que os palestinos não retornem. Isso seguramente não é útil para a proteção da Amazônia, não resolve o problema das comunidades indígenas e dos pequenos agricultores, que vivem também no temor de perder suas terras para o grande agronegócio. A única coisa que Israel pode fazer é piorar a situação no Brasil. E há vários casos no mundo em que Israel exportou suas tecnologias com resultado desastroso para camponeses e indígenas.

Revista Movimento – Há essa ideia muito vendida no Brasil e no Rio Grande do Sul de que “Israel fez florescer o deserto” com seu modelo de irrigação. Na verdade, o que o país faz é roubar água da Palestina.

Maren – A Palestina nunca foi um deserto. Antes da Segunda Guerra Mundial, metade dos grãos que eram comercializados no Mediterrâneo saíam de lá. O país era o centro da produção de trigo. Essa ideia de fazer florescer o deserto é uma mentira absolutamente glamourosa em uma terra que teve uma história de agricultura milenar e muito importante. Pois eles (israelenses) chegaram, tomaram a terra, roubaram a água dos agricultores palestinos. Os camponeses, evidentemente, não podem produzir sem água num campo de refugiados. Mas dizer que os palestinos e palestinos não tiveram rica e abundante produção agrícola e de alimentos é inverdade. O grande ponto é que o agronegócio israelense não foi feito para produzir alimentos, mas para confiscar terras. É importante entender isso. 

Israel também esteve vendendo a ideia de uma super vaca, inclusive para o Rio Grande do Sul. Tratam-se de animais que produzem muito mais leite que as outras vacas. Não sei qual foi o resultado por aqui, mas com as exportadas para a Índia foi um absoluto desastre. As vacas produzem mais, sim, mas dentro de um sistema todo higienizado e cheio de antibióticos, em que se mantém um animal perfeito com veterinários para curá-las, pois não podem viver sozinhas. O resultado é que as vacas custavam um monte de dinheiro. Venderam essas vacas a camponeses indianos que, evidentemente, não tinham aquela estrutura super custosa para mantê-las. Os animais morreram, os camponeses ficaram endividados, e muitos se suicidaram. De fato, temos mais informações sobre o efeito devastador do modelo de agronegócio na Índia e na África, onde movimentos fizeram estudos e concluíram que eram absolutamente horríveis.

Revista Movimento – O que a sociedade civil pode fazer para combater o apartheid em Israel, aderir ao movimento BDS e como e isso se relaciona com a iniciativa de criação dos chamados “Espaços Livres de Apartheid”?

Maren – A primeira coisa que se pode fazer, o passo mais simples e simbólico, é aderir à campanha Espaço Livre de Apartheid. A lógica é: “Não vamos esperar os governos”. Vamos começar em nossos lugares, nossas organizações, em nossos gabinetes, em nossos escritórios, nossas comunidades, nos programas de rádio, nos espaços físicos e virtuais, e declaramo-nos um Espaço Livre de Apartheid Israelense. Isso significa não consumir produtos do apartheid, aderir às campanhas de boicote, não fazer propaganda israelense. Uma vez comprometidos a isso, pode-se usar a logomarcar para fazer uma placa e para declarar o local livre de apartheid, além de se registrar na página do movimento (bdsmovement.net) para fazer parte do mapa interativo de lugares libertos. Assim, podemos construir uma  libertação do mundo, espaço por espaço, escritório por escritório, e ao mesmo tempo difundindo o conhecimento de que o que Israel faz é apartheid – e com isso, fazer um pequeno passo de pressão junto aos governos para que tomem atitude. Obviamente esse espaço livre pode levar a um trabalho mais ativo, de participação de campanhas de boicote em nível nacional e internacional.

Revista Movimento – Qual o papel das universidades e do movimento estudantil na atuação do movimento BDS?

Maren – Uma das próximas etapas junto à sociedade civil será em 21 de março, que não somente é Dia Internacional Contra o Nazismo, mas o período em que construímos a  Semana Internacional Contra o Apartheid. Em todo o mundo se faz iniciativas e campanhas para denunciar o apartheid israelense e construir campanhas de boicote, desenvestimento e sanção. E essa semana foi fundada justamente nas universidades, por estudantes que tomaram essa pauta. A importância dessas instituições é porque não são apenas um espaço de mobilização, mas um espaço no qual Israel tenta legitimizar-se, construindo parcerias para fazer parecer que é normal ter uma relação com um regime de apartheid. Muitas vezes se escuta: “Sim, mas são parcerias de universidades, o que elas têm a ver com isso?”. As universidades israelenses fazem parte do sistema de apartheid. Não somente desenvolvem tecnologia, metodologia e ideologia do apartheid, mas também o reproduzem. Estudantes palestinos não têm os mesmos direitos dos alunos judeus. Uma relação com uma universidade israelense não pode ser nunca neutra ou inocente, e não se pode normalizar um crime de lesa-humanidade como o apartheid. 

Revista Movimento – Uma das questões que mais gera visibilidade ao movimento BDS é quando um artista muito famoso se recusa a se apresentar em Israel, no chamado boicote cultural. Qual a dimensão desse modelo nos últimos tempos?Maren – Definitivamente, tem crescido, ainda que a pandemia não tenha deixado ninguém ir a nenhum lugar. Mas há dificuldade para Israel atrair grandes nomes, pelo poder das campanhas que pedem que os artistas não façam shows ou eventos lá. Se vê também no fato de que em quase todos os casos em que artistas assinam contrato, surge a notícia de que podem desistir por conta do movimento BDS. Então é significante. Já que estamos em época de Copa do Mundo, lembremos também do boicote esportivo. Tivemos duas vitórias recentemente na América Latina, quando Argentina e, depois, Uruguai quiseram jogar amistosos em Israel. Ambos, depois de campanhas, não foram. E esse também é um exemplo de como funcionam times nacionais de futebol. Também vemos hoje o que se passa no Catar, com bandeiras palestinas em todos os lugares. Li um artigo de uma jornalista que está no Catar, dizendo que nunca viu tantas bandeiras palestinas. E evidentemente, a Seleção da Palestina não está lá, porque não há forma de haver um time nacional que treine junto quando jovens jogadores palestinos são mortos ou feridos pelo Exército israelense. Mas mesmo não estando, estão presentes no Catar. O que mostra que, em todo o mundo, esse não é um tema de um lugar específico, de um lugar distante. Mas a luta antirracista e contra o apartheid – que eleva o racismo a nível de crime de lesa-humanidade – é uma questão que afeta todos nós. Se aceitarmos que esse crime está legitimado, aceitamos também que se pode difundi-lo no resto do mundo. Por isso, temos de estar juntos nesta luta.

O que fazer diante do apartheid promovido por Israel contra o povo palestino? Essa é a questão posta diante da comunidade internacional. E a própria questão por si só representa um avanço, se considerarmos que há alguns anos o conceito de apartheid não encontrava eco em atores importantes da sociedade civil. Isso tem mudado radicalmente, aponta Maren Mantovani, coordenadora de relações internacionais do movimento Stop The Wall, uma das organizações que compõem o chamado por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel.

Maren conversou com a equipe da Revista Movimento durante sua passagem pelo Brasil, onde articulou a entrega de uma carta à equipe de transição do futuro governo Lula, exigindo que o Brasil reconheça o apartheid praticado por Israel e se coloque de maneira firme ao lado do povo palestino. 

Nesta entrevista, Maren resgata a trajetória de lutas do movimento BDS, inspirado nas mobilizações por boicote contra o regime de apartheid da África do Sul, e conclama o Brasil e a América Latina a aderirem a esta tática, com a certeza de que o isolamento de Israel e a pressão internacional – de governos, entidades da sociedade civil e organizações políticas – são fundamentais para por fim ao regime colonialista, à ocupação militar e ao apartheid imposto contra o povo palestino.

Revista Movimento – A senhora poderia começar se apresentando, apresentando o movimento no qual atua e a luta por BDS?

Maren Mantovani – Sou coordenadora de Relações Internacionais da campanha contra o muro (Stop The Wall), que é um movimento de base que está se construindo na luta, com organização de manifestações, apoiando as comunidades que estão resistindo contra a limpeza étnica. Apoiamos quem está defendendo suas casas e escolas contra as demolições. Esse movimento se forma em 2002, quando Israel começa a construir o muro do apartheid, que circunda as aldeias e cidades palestinas, roubando terras, águas e recursos naturais do povo palestino, deixando-os praticamente presos dentro de muros – seja em Gaza, seja na Cisjordânia. Mais ou menos 13% do território palestino está cercado de muros. Quem não está incluído nestes 13% ou está no exílio (mais da metade do povo palestino já está no exílio), ou está lutando contra sua própria expulsão. E esse movimento de campanha contra o muro, desde 2005, faz parte integral da fundação do chamado por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que nasceu em julho daquele ano. O BDS é uma campanha, uma estratégia e um movimento que luta para que o mundo deixe de apoiar o apartheid israelense, deixe de ser cúmplice deste apartheid em várias maneiras.. 

O BDS é um chamado apoiado por toda a sociedade civil palestina, todas as forças sociais, incluindo refugiados da Cisjordânia e de Gaza, bem como os que são cidadãos de Israel também. E o Comitê Nacional Palestino, junto com o BDS, recorre a todas as organizações, como um guarda-chuva, para dar uma direção e uma referência para nosso movimento, que hoje é global e existe em todos os continentes, desde a ponta mais ao Norte da Noruega até a Patagônia. E nesse movimento, eu faço parte do Comitê Nacional Palestino, do Secretariado Internacional, sendo responsável, entre outras coisas, pela América Latina.

Revista Movimento – O BDS teve inspiração no movimento contra o apartheid na África do Sul. Que paralelo é possível fazer entre o regime de Israel hoje e o que existiu no país africano?

Maren – A inspiração é muito clara. Em 2001, ocorre a grande conferência das Nações Unidas contra o racismo, em Durban, na África do Sul. Lá surge pela primeira vez o tema de que Israel está fazendo não somente uma ocupação militar, o que já seria grave, mas a instauração de um regime de lesa-humanidade, de apartheid, de supremacia e opressão sobre o povo palestino. À época, na conferência, a nível governamental, o tema da Palestina chegou junto com a reivindicação dos movimentos negros por reparação sobre a escravização. Acho interessante que esses dois pontos de racismo estrutural – desde a escravização até a questão palestina e o apartheid israelense – foram centrais naquela conferência. Mas o mundo e os governos não podiam aceitar, e rechaçaram esse tema. O acordo fracassou, mas permaneceu dentro dos movimentos a ideia de que para avançar na luta e na solidariedade com a Palestina, teríamos de reajustar nossos parâmetros, nosso entendimento do que está se passando com a ocupação e o projeto colonial de segregação.

Revista Movimento – Quais são os elementos que corroboram essa avaliação do apartheid? De que forma ele se dá sobre a população palestina?

Maren – Na definição da convenção internacional do apartheid, esse regime envolve várias formas opressão e discriminação sistemática de um povo ou população, com cunho racial. Acho que a grande diferença entre um Estado como o Brasil, onde há, sem dúvida, um racismo estrutural que continua desde a colonização até hoje, é que em Israel a discriminação do povo palestino é prevista em lei. No Brasil, as comunidades negras, faveladas, quilombolas e indígenas, de fato, não têm os mesmos direitos. São oprimidos e mortos. Há um genocídio em andamento. Mas em Israel ele está institucionalizado. Palestinos e palestinas não têm os mesmos direitos. E não são apenas os que vivem em Gaza ou na Cisjordânia que estão sob regime de apartheid. Palestinos com cidadania israelense em Israel não têm os mesmos direitos diante da lei. Em 2018, Israel se declara um Estado para judeus somente. Enquanto qualquer pessoa judia, ainda que nunca tenha visitado aquela parte do mundo, pode decidir ser cidadão de Israel e mudar-se para lá, palestinos refugiados, expulsos de suas próprias casas e terras, ainda que com as chaves da porta na mão, não podem voltar. Essa é a grande distinção, a legalização da discriminação e do racismo, que acarreta uma série de opressões, assassinatos, detenções, negação ao direito à educação e à saúde, entre outras coisas.

Revista Movimento – Até recentemente, a caracaterização do apartheid israelense era tida como polêmica. Muitas organizações de direitos humanos não a aceitavam. Isso tem mudado no último período. A Human Rights Watch e outras organizações importantes encamparam essa definição de apartheid. Você avalia que está crescendo a aceitação da compreensão geral das pessoas e organizações de que, de fato, o que Israel faz com os palestinos é um regime de apartheid?

Maren – Eu diria que a percepção sobre o apartheid israelente mudou radicalmente. Praticamente ninguém mais questiona se Israel comete ou não esse tipo de crime. A Human Rights Watch, que não é um conselho revolucionário, a Anistia Internacional, a Federação Internacional dos Direitos Humanos, os relatórios das Nações Unidas sobre os direitos humanos estão todos dizendo que está acontecendo esse crime. A mesma coisa aqui, na América Latina. Visitei vários países, falando não somente com organizações de direitos humanos, mas com correspondentes políticos, e não encontrei ninguém que tenha dúvidas sobre o apartheid. Estamos num ponto em que a dúvida é: “o que fazer?’, e não se existe ou não apartheid em Israel contra o povo palestino.

Revista Movimento – O crescimento do movimento BDS resultou em diversas tentativas de criminalização dessa estratégia de luta por parte de Israel. Como está esse cenário atualmente?

Maren – Israel está tentando criminalizar o BDS e qualquer organização ou pessoa que critique suas políticas. Eles não conseguiram, contudo, porque é muito difícil argumentar que aplicar a lei internacional é um crime. É difícil dizer que as pessoas, ao escolher eticamente como consumir e contratar empresas, estejam cometendo crime. Isso é o que o BDS pede: que as pessoas pensem, façam uma escolha ética ao comprar produtos, ao contratar serviços, ao se relacionar com instituições israelenses que fazem propaganda desse estado de apartheid. Então, pouco efeito tem tido essa tentativa de criminalização. Há dois ou três anos, Israel fechou seu Ministério de Assuntos Estratégicos, que, fundamentalmente, era um órgão criado para combater o BDS. Ao fechá-lo, a mensagem explícita foi a de que ele havia fracassado.

Vai ser difícil para Israel ganhar nesse caminho. A política israelense contra o povo palestino está cada vez mais brutal e violenta, e como resultado do próprio apartheid, Israel exibe hoje o governo mais abertamente racista de sua história. O projeto [de nação] foi colonial e racista desde o início, sabemos, mas nasceu com uma retórica, uma intenção de construir uma visão liberal da “única democracia do Oriente Médio”, e todas essas mentiras de propaganda. Hoje temos um governo com políticos que pedem abertamente o assassinato e a limpeza étnica de palestinos. Como uma companheira palestina outro dia me disse: “Antes tínhamos medo de, nos checkpoints militares, não conseguirmos passar. Agora estamos a um ponto que nosso medo não é apenas não conseguir passar, mas sermos mortos”. São diários os assassinatos de pessoas que não fizeram absolutamente nada. Essa matança cotidiana está amentando, o que torna o movimento do BDS mais urgente do que nunca, por uma resposta global que acabe com esse apartheid. A cada dia que esperamo, há outros palestinos e palestinas mortos. 

Revista Movimento – Qual a importância da América Latina e do Brasil nesse movimento? Quais parcerias com Israel podem ser questionadas?

Maren – Nesse movimento, trabalhamos por boicotes e sanções. Temos absoluta urgência e pedimos aos governos que, pelo menos, deem o passo que não deram 20 anos atrás, e finalmente reconheçam que Israel comete o crime de apartheid. Que reabram, nas Nações Unidas, o comitê especial para termos um mecanismo de enfrentamento ao que ocorre na Palestina. Esse caminho na ONU nasceu há cerca de dois anos, quando lideranças de África, Ásia e América Latina lançaram uma declaração chamada de “Resposta do Sul Global”. Eles se juntaram para reconhecer o regime de apartheid israelense e pediram a reabertura do comitê das Nações Unidas – já que Corte Penal Internacional atua sobre as queixas há anos, mas ninguém faz nada –  e, evidentemente, trabalhar sobre sanções. Essa resposta do Sul Global foi assinada por nomes que fizeram parte da primeira onda do progressismo sul-americano, como os presidentes Lula da Silva, Dilma Rousseff, Mujica, Correa, congressistas de várias forças políticas brasileiras, e presidentes chegados recentemente ao poder, como Boric, no Chile. 

Chamamos o Sul Global para mover-se com razão, com ética ideológica, porque o apartheid e o colonialismo são questões em comum entre esses países. Há uma responsabilidade de se unir nessa luta e, por outro lado, porque se queremos ganhar uma resolução nas Nações Unidas, são os votos do Sul que fazem a maioria. Essa resposta do Sul Global foi o início do plano estratégico que estamos trabalhando agora. A grande questão é: onde está agora, quando há nova onda de governos progressistas, a mobilização da América Latina? Enquanto temos governos dispostos a liderar esse processo também nas Nações Unidas, na África e na Ásia, na América Latina ninguém deu um passo adiante. E o Brasil, agora com novo governo, tem um papel fundamental. É só lembrarmos o que passou com o reconhecimento do Estado da Palestina. Em 2010, ou 2012, quando a ONU fez sessão para reconhecê-lo, quando o Brasil se levantou a favor, imediatamente outros países o seguiram. Sabemos que Chile, Colômbia e Argentina e outros estão dispostos a seguir o Brasil. Basta o novo governo assumir esse papel.

Revista Movimento – Foi entregue uma carta à equipe de transição com o pedido de que o novo governo Lula reconheça que Israel promove um regime de apartheid. Como foi essa articulação?

Maren- Ficamos muito felizes que movimentos negros, indígenas e favelados se uniram para escrever uma carta ao novo governo brasileiro, pedindo que tomasse a pauta contra o apartheid israelense como sua, por solidariedade ao povo palestino, que está sofrendo com morte, discriminação e perda de terras. É uma luta em comum e se o governo brasileiro realmente quiser tomar uma posição global antirracista, terá de tomar uma posição contra o apartheid. Esperamos que o governo Lula escute esse chamado da própria população.

Revista Movimento – Se a América Latina é importante para o BDS, também o é para Israel. De que forma esse país atua sobre o continente com parcerias militares, comerciais, políticas?

Maren – Israel tem muita influência no Brasil. Não por acaso, a esposa de Jair Bolsonaro foi votar no segundo turno com a bandeira israelense na camiseta. Há bandeiras de Israel perto dos quartéis militares [usadas pelos bolsonaristas que pedem golpe]. As mesmas bandeiras apareceram na tentativa de golpe pró-Trump, nos EUA, e nas manifestações de extrema direita na Europa. Sem falar que não houve um golpe de Estado na América Latina nos anos 1970 que não fosse apoiado, armado e treinado por Israel. Isso continua até hoje e, provavelmente, tem uma abrangência muito mais global. A campanha do movimento do BDS aqui tem um slogan que diz: “As balas israelenses matam na Palestina e na América Latina“. Porque há exportação de ideologia, metodologia e tecnologia de apartheid para reprimir e manter sistemas de opressão racial. Basta pensarmos no Bope, que cada dia mata mais nas favelas. Ele foi treinado por uma empresa israelense. Há um vídeo em que o diretor dessa empresa acompanha os soldados no Complexo do Alemão e diz: “Vocês fazem um trabalho fantástico, exatamente o que fazemos com os palestinos em Gaza”. Acho que não tem uma maneira mais simples para explicar o que se passa. 

O que está acontecendo na Colômbia e no Chile, com a chegada de governos progressistas, e deve acontecer também no Brasil, é Israel tentar esconder um pouco a relação fundamental já existente. Não que vá acabar, mas vai se esconder, ser substituída por uma propaganda que “ajudará na mudança climática”, na seca, na resolução dos problemas no campo e coisas assim. De fato, o governo do Rio Grande do Sul, há duas ou três semanas, mandou uma delegação oficial a Israel para ver novas tecnologias, e estou segura que veremos muito disso. Ocorre que a agrotecnologia israelense não ajuda a nenhum camponês. Nem no Brasil, nem em outro lugar. Porque, à parte de ter drones militares adaptados para uso agrícola, é uma tecnologia feita para um agronegócio que tem como principal objetivo a colonização, o roubo de terra de camponeses que foram expulsos de suas casas. Israel faz uma limpeza étnica, toma terras e planta nelas para garantir que os palestinos não retornem. Isso seguramente não é útil para a proteção da Amazônia, não resolve o problema das comunidades indígenas e dos pequenos agricultores, que vivem também no temor de perder suas terras para o grande agronegócio. A única coisa que Israel pode fazer é piorar a situação no Brasil. E há vários casos no mundo em que Israel exportou suas tecnologias com resultado desastroso para camponeses e indígenas.

Revista Movimento – Há essa ideia muito vendida no Brasil e no Rio Grande do Sul de que “Israel fez florescer o deserto” com seu modelo de irrigação. Na verdade, o que o país faz é roubar água da Palestina.

Maren – A Palestina nunca foi um deserto. Antes da Segunda Guerra Mundial, metade dos grãos que eram comercializados no Mediterrâneo saíam de lá. O país era o centro da produção de trigo. Essa ideia de fazer florescer o deserto é uma mentira absolutamente glamourosa em uma terra que teve uma história de agricultura milenar e muito importante. Pois eles (israelenses) chegaram, tomaram a terra, roubaram a água dos agricultores palestinos. Os camponeses, evidentemente, não podem produzir sem água num campo de refugiados. Mas dizer que os palestinos e palestinos não tiveram rica e abundante produção agrícola e de alimentos é inverdade. O grande ponto é que o agronegócio israelense não foi feito para produzir alimentos, mas para confiscar terras. É importante entender isso. 

Israel também esteve vendendo a ideia de uma super vaca, inclusive para o Rio Grande do Sul. Tratam-se de animais que produzem muito mais leite que as outras vacas. Não sei qual foi o resultado por aqui, mas com as exportadas para a Índia foi um absoluto desastre. As vacas produzem mais, sim, mas dentro de um sistema todo higienizado e cheio de antibióticos, em que se mantém um animal perfeito com veterinários para curá-las, pois não podem viver sozinhas. O resultado é que as vacas custavam um monte de dinheiro. Venderam essas vacas a camponeses indianos que, evidentemente, não tinham aquela estrutura super custosa para mantê-las. Os animais morreram, os camponeses ficaram endividados, e muitos se suicidaram. De fato, temos mais informações sobre o efeito devastador do modelo de agronegócio na Índia e na África, onde movimentos fizeram estudos e concluíram que eram absolutamente horríveis.

Revista Movimento – O que a sociedade civil pode fazer para combater o apartheid em Israel, aderir ao movimento BDS e como e isso se relaciona com a iniciativa de criação dos chamados “Espaços Livres de Apartheid”?

Maren – A primeira coisa que se pode fazer, o passo mais simples e simbólico, é aderir à campanha Espaço Livre de Apartheid. A lógica é: “Não vamos esperar os governos”. Vamos começar em nossos lugares, nossas organizações, em nossos gabinetes, em nossos escritórios, nossas comunidades, nos programas de rádio, nos espaços físicos e virtuais, e declaramo-nos um Espaço Livre de Apartheid Israelense. Isso significa não consumir produtos do apartheid, aderir às campanhas de boicote, não fazer propaganda israelense. Uma vez comprometidos a isso, pode-se usar a logomarcar para fazer uma placa e para declarar o local livre de apartheid, além de se registrar na página do movimento (bdsmovement.net) para fazer parte do mapa interativo de lugares libertos. Assim, podemos construir uma  libertação do mundo, espaço por espaço, escritório por escritório, e ao mesmo tempo difundindo o conhecimento de que o que Israel faz é apartheid – e com isso, fazer um pequeno passo de pressão junto aos governos para que tomem atitude. Obviamente esse espaço livre pode levar a um trabalho mais ativo, de participação de campanhas de boicote em nível nacional e internacional.

Revista Movimento – Qual o papel das universidades e do movimento estudantil na atuação do movimento BDS?

Maren – Uma das próximas etapas junto à sociedade civil será em 21 de março, que não somente é Dia Internacional Contra o Nazismo, mas o período em que construímos a  Semana Internacional Contra o Apartheid. Em todo o mundo se faz iniciativas e campanhas para denunciar o apartheid israelense e construir campanhas de boicote, desenvestimento e sanção. E essa semana foi fundada justamente nas universidades, por estudantes que tomaram essa pauta. A importância dessas instituições é porque não são apenas um espaço de mobilização, mas um espaço no qual Israel tenta legitimizar-se, construindo parcerias para fazer parecer que é normal ter uma relação com um regime de apartheid. Muitas vezes se escuta: “Sim, mas são parcerias de universidades, o que elas têm a ver com isso?”. As universidades israelenses fazem parte do sistema de apartheid. Não somente desenvolvem tecnologia, metodologia e ideologia do apartheid, mas também o reproduzem. Estudantes palestinos não têm os mesmos direitos dos alunos judeus. Uma relação com uma universidade israelense não pode ser nunca neutra ou inocente, e não se pode normalizar um crime de lesa-humanidade como o apartheid. 

Revista Movimento – Uma das questões que mais gera visibilidade ao movimento BDS é quando um artista muito famoso se recusa a se apresentar em Israel, no chamado boicote cultural. Qual a dimensão desse modelo nos últimos tempos?

Maren – Definitivamente, tem crescido, ainda que a pandemia não tenha deixado ninguém ir a nenhum lugar. Mas há dificuldade para Israel atrair grandes nomes, pelo poder das campanhas que pedem que os artistas não façam shows ou eventos lá. Se vê também no fato de que em quase todos os casos em que artistas assinam contrato, surge a notícia de que podem desistir por conta do movimento BDS. Então é significante. Já que estamos em época de Copa do Mundo, lembremos também do boicote esportivo. Tivemos duas vitórias recentemente na América Latina, quando Argentina e, depois, Uruguai quiseram jogar amistosos em Israel. Ambos, depois de campanhas, não foram. E esse também é um exemplo de como funcionam times nacionais de futebol. Também vemos hoje o que se passa no Catar, com bandeiras palestinas em todos os lugares. Li um artigo de uma jornalista que está no Catar, dizendo que nunca viu tantas bandeiras palestinas. E evidentemente, a Seleção da Palestina não está lá, porque não há forma de haver um time nacional que treine junto quando jovens jogadores palestinos são mortos ou feridos pelo Exército israelense. Mas mesmo não estando, estão presentes no Catar. O que mostra que, em todo o mundo, esse não é um tema de um lugar específico, de um lugar distante. Mas a luta antirracista e contra o apartheid – que eleva o racismo a nível de crime de lesa-humanidade – é uma questão que afeta todos nós. Se aceitarmos que esse crime está legitimado, aceitamos também que se pode difundi-lo no resto do mundo. Por isso, temos de estar juntos nesta luta.


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Pedro Micussi