Lições da vitória de Milei para o Brasil
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Lições da vitória de Milei para o Brasil

Uma reflexão sobre a vitória da extrema direita na Argentina e seus significados para o Brasil

Frederico Henriques 22 nov 2023, 17:11

Foto: Mídia Ninja

Ainda na noite do dia 19 de novembro de 2023, logo após o reconhecimento da vitória de Milei pelo candidato governista Sergio Massa, uma grande onda de pessimismo se abateu pela esquerda latino-americana. O fim da nova onda rosa, retorno a onda conservadora, crise das esquerdas sul-americanas, guerra híbrida e avanço dos EUA na região, muitas caracterizações passaram a percorrer as redes sociais buscando fazer uma nova análise do cenário internacional e da política da região.

O problema de uma caracterização errada do processo que percorre o mundo faz com que haja uma política errada para atuação nesse momento histórico. Nesse sentido, neste texto busco reafirmar que a derrota do candidato peronista reforça a caracterização do longo interregno que vivemos, assim como a necessidade urgente da construção de uma esquerda independente que consiga dialogar com os anseios populares e o avanço do debate ideológico no coração da classe sobre os limites desse sistema posto.

Interregno como crise sistêmica de longo prazo

A primeira característica persistente é a crise imperialista, com a incapacidade dos EUA de impor uma nova dinâmica de acumulação no sistema capitalista em meio à ascensão da China e ao fortalecimento de atores regionais. Essa situação gera uma crise sistêmica, levando o capitalismo a recorrer a processos de acumulação primitiva, espoliação e guerras para manter seus ganhos, agravando a decadência ambiental e as questões sociais. Eventos como a guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza, a anexação de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão e a tensão no Mar do Sul da China evidenciam essa definição.

O interregno também se manifesta na política, com a instabilidade nos regimes sendo uma constante. A incapacidade dos governantes em resolver os problemas concretos da população contribui para a oscilação constante do cenário político, tornando discursos mais radicais, tanto à direita quanto à esquerda, mais atraentes. A mesma crise econômica que derrubou Macri há quatro anos, é aprofundada pelo peronismo, e derruba Fernandez/Massa nesta eleição. No Sahel africano, uma série de levantes e golpes militares contraditórios tem como eixo de agitação a luta contra o imperialismo francês. Enquanto o governo inglês tem que ceder a pressões populares para ter outra política para Gaza, a França proíbe os protestos em favor dos palestinos. O fortalecimento de governos autoritários na América Central destoa do fortalecimento de López-Obrador no México para encaminhar a eleição do seu partido no início do próximo ano.

A crise de hegemonia, onde as classes dominantes não conseguiram impor um novo projeto nem os subalternos tão pouco se estabelecer, como característica desse momento de interregno faz com que a luta de classes seja mais intensa e explícita. Por um lado, as classes dominantes tentam garantir processos de acumulação, mesmo que sem legitimidade (como extrativismo ambiental, a espoliação ou a guerra); por outro, a classe trabalhadora, a partir de levantes e enfrentamentos nas ruas e locais de trabalho, buscam condições mínimas para sobreviver. É emblemático que as ruas passaram a ser o local de manifestação no momento em que os setores dominantes da burguesia passam por um momento de crise de autoridade.1 É claro que essa crise se reflete de forma distinta em cada país ou região, a partir de diferentes setores econômicos e agentes estatais. Porém, o discurso antirregime e antissistema passa a ser uma variável permanente, tendo força pela extrema direita, como pela esquerda em outros casos (Colômbia e Guatemala são bons exemplos vistos recentemente à esquerda).

Decifra-me ou te devoro: a esquerda brasileira tem muito que aprender com a Argentina

Muitos de nós temos ressaltado que a Argentina deveria aprender com o processo brasileiro, tentando apresentar o Milei como “o Bolsonaro argentino”. Aqui quero propor uma outra perspectiva: entender a crise da Argentina a partir da eleição do Macri como a crise do Kirchnerismo, e o Milei como uma radicalização do projeto liberal visto no governo anterior.

Os limites da política de mediação da Cristina K. começaram a aparecer após 2011, quando o avanço dos ganhos para os setores populares, principalmente a partir do processo de financeirização da economia e avanços do agronegócio, fez recuar avanços obtidos nos 10 anos anteriores. A insatisfação popular viabilizou Macri a partir do discurso de liberalização da economia e combate a corrupção do sistema político. Porém, o aprofundamento dos ganhos dos setores ligados ao ramo financeiro, ao agro, à comunicação, e o combate a direitos históricos da classe trabalhadora aprofundou a crise existente anteriormente.

Nessa brecha, a volta de Alberto Fernandez e Cristina, surge como uma solução para os setores populares, que viram a sua condição de vida se deteriorar de forma acelerada no último período. Porém, o que se observa nos quatro anos de volta do kirchnerismo é o aprofundamento de uma crise a partir da tentativa de mediação com o extrativismo, agronegócio e o setor financeiro – exatamente os mesmos grupos que ganham com a inflação, pois trabalham com a exportação e divisas em dólar. A inflação batendo os 140% ao ano e 40% da população para baixo da linha da pobreza fez com que, mesmo repaginada, a solução fosse um candidato que radicalizasse o discurso de Macri. Surge Javier Milei como alternativa.

E o que podemos aprender sobre os nossos hermanos? Primeiro, que é claro que os processos de frente ampla são fundamentais para conter o avanço da extrema direita, mas também são condições insuficientes para mantê-la afastada do poder. O fracasso de setores de centro ou centro-esquerda em garantir condições mínimas para o povo é a chave de entrada de setores da extrema direita com discursos mais radicais no período seguinte. Nesse sentido, num governo de frente ampla, como o governo Lula, a esquerda não pode se submeter a política do fato consumado – até porque ela favorece aos lobbies e grupos de pressão da burguesia e da direita, que só buscam avançar nos seus ganhos sem se comprometer com a melhora da condição da vida do povo.

Um bom exemplo de atuação foi durante a proposta do novo teto de gastos do novo governo: o arcabouço fiscal, que prevê um déficit fiscal zero no curto prazo. Tendo em vista essa política fiscal, no ano que vem a pressão por cortes sociais no governo vai ser grande, especialmente pelo fim da PEC da Transição e com a crise econômica internacional. Enquanto uma parte da esquerda alegou que era um avanço, iludindo com debate de tributação dos mais ricos que nem tinha regulamentado, outros setores capitaneados por Fernanda Melchionna, Sâmia Bomfim e Glauber Braga criticaram a proposta que havia sido imposta pelo mercado financeiro e setores do centrão. O governo Lula dar minimamente certo é fundamental para conter o avanço da extrema direita, porém, uma postura passiva da esquerda simplesmente aceitando as propostas vindas do Planalto apenas trará mais espaço para os setores conservadores e dificultará qualquer avanço para os setores populares.

Ideologia e uma disputa de longo prazo

Desde a queda da União Soviética, temos assistido a um retrocesso sistemático na disputa ideológica e na construção de uma alternativa além do sistema capitalista. Cabe à esquerda socialista atuar na luta defensiva contra a extrema direita de forma ativa, juntamente com o debate sobre um projeto de sociedade. Essa disputa de programa se faz trazendo novamente à tona o marxismo como método de análise, abordando temas que disputem o modelo de sociedade. Poderíamos elencar uma série de temas, mas pretendo elencar três neste texto: luta anticolonial e anti-imperialista, política do cuidado e o ecossocialismo.

A luta anti-imperialista e anticolonial se manifesta de diversas formas no cotidiano dos trabalhadores, seja contra a superexploração das multinacionais nos países do sul global ou por meio do protagonismo da luta antirracista que tem ganhado destaque global nos últimos anos. Inclui também o questionamento da economia gig, representada por empresas como Uber e Amazon. Nossa tarefa diária é transformar essas lutas locais em debates mais amplos, questionando o sistema como um todo. No último mês, essea discussão teve seu foco central na luta da Palestina, englobando demandas pelo cessar-fogo, resistência contra o colonialismo, o apartheid e a denúncia ao racismo na região.

O segundo tema que tem grande potencial é o debate sobre o cuidado. Além de evidenciar a maneira como o sistema superexplora as mulheres, tornando invisível o trabalho por elas realizado, colocar o ato de cuidar de pessoas e do planeta como o ponto central de uma nova sociedade. Essa questão também se apresenta como uma oportunidade ideal para questionar projetos de privatização de serviços públicos, como ficou evidente no caso argentino durante a eleição presidencial, especialmente nas áreas de educação e saúde. A priorização do cuidado representa o questionamento central em uma sociedade que tradicionalmente coloca a acumulação do capital como centro.

O ecossocialismo surge como uma resposta fundamental aos desastres ambientais sistêmicos, como secas, enchentes, ondas de calor, desertificação e o derretimento dos polos. A crise gerada pelo aquecimento global, combinada com o extrativismo predatório e um padrão de consumo insustentável, exige um debate mais profundo sobre a sociedade e a necessidade de questionar o sistema. Nesse sentido, é responsabilidade da esquerda politizar e avançar nesse debate.

Conhecendo o histórico de luta dos argentinos, não há dúvida de que enfrentarão a política da extrema direita e avançarão a partir da experiência com Javier Milei. Além da solidariedade com nossos camaradas vizinhos, é essencial adotar uma política independente do governo Lula, apoiando iniciativas que melhorem as condições do povo e questionem políticas que ataquem direitos ou favoreçam setores privilegiados. Junto com isso, é crucial garantir o avanço ideológico entre a classe, utilizando elementos do cotidiano para questionar o capitalismo e apontar para a construção de uma nova sociedade.

1 Para entender mais ver o texto: https://movimentorevista.com.br/2020/02/interregno-como-chave-para-compreender-a-crise/


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