Itamaraty: entre acertos e um passo a ser dado
Celso Amorim

Itamaraty: entre acertos e um passo a ser dado

Uma breve análise dos efeitos políticos imediatos das importantes decisões tomadas sobre temas internacionais

Israel Dutra 14 ago 2024, 09:29

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

As relações diplomáticas do Brasil estiveram no centro da agenda política. A destacada participação da diplomacia brasileira, com Celso Amorim voltado para encabeçar o diálogo no caso da Venezuela, é vista como fundamental pela comunidade internacional.

Dois acertos marcaram a linha política do Itamaraty nos conflitos recentes. O primeiro diz respeito ao “arriscado protagonismo” diante da crise venezuelana; o segundo foi a postura enérgica, respondendo à altura a chantagem do regime de Ortega. Esses acertos são valiosos.

Na outra ponta, Amorim volta a acertar, quando intervém para romper contratos comerciais com a Elbit System, que implicam na compra de 36 blindados por parte do Brasil.  A postura altiva de Amorim gerou contradições importantes dentro do mesmo governo, o que indica que é necessário dar um passo seguinte nas relações com o Estado de Israel.

Nesse breve artigo, não queremos analisar de forma profunda o conjunto da política externa brasileira, apenas comentar os efeitos políticos imediatos das importantes decisões tomadas sobre os temas citados acima.

A  atuação na Venezuela

A começar pela Venezuela, onde a crise se alastra, combinando uma onda de repressão que deixou 25 mortos, centenas de feridos e quase dois mil presos e uma agitada discussão no âmbito da comunidade internacional. A respeito da repressão, vale ler as seguintes declarações da esquerda venezuelana.

Celso Amorim, após escaramuças verbais entre Maduro e Lula na semana do pleito, se deslocou pessoalmente para Caracas, com fim de atuar como mediador do conflito anunciado. A retórica mesmo antes dos protestos iniciados na segunda após a eleição- escalados com a demora para apresentação das atas eleitorais- já falava em termos como “guerra” e “banho de sangue”. Amorim e a diplomacia brasileira assumiram para si uma responsabilidade arriscada, porém decisiva, diante do impasse. Aqui, nota de Roberto Robaina em seguida à controvérsia do resultado eleitoral, comenta a astúcia da linha de Amorim.

O Brasil lidera, a partir de então, um grupo de três países, com México e Colômbia, para buscar uma “saída democrática e política” para os impasses, visto que Maduro controla o processo eleitoral de conjunto, via CNE, e colocou a polícia e o exército para reprimir qualquer um que questione os resultados promulgados pelo regime, sem qualquer legitimidade ou transparência, ainda na noite de domingo, 28 de julho. Tal mediação envolve desde exigências básicas – como transparência nas atas, auditoria externa, liberdade para os opositores – até a construção de um processo de transição, com fins de evitar um conflito armado. Nesse caminho, o grupo está dialogando com outros atores como o Chile, a União Europeia e até mesmo setores da política estadunidense. É um xadrez arriscado, visto que envolve um regime sem legitimidade e cada vez mais repressivo, uma oposição violenta e alinhada com os setores internacionais da direita e a luta por soberania e democracia.

Amorim acerta ao evitar que a iniciativa política fique apenas com o regime – que não poderá se sustentar sem reprimir ainda mais- e com a oposição direitista, hipócrita e com interesses em restaurar seus próprios privilégios na apropriação da renda petroleira. Se tiver êxito na escarpada trilha para restituir elementos democráticos no país e evitar um golpe reacionário, os próximos dias dirão. Porém, o Brasil está cumprindo um papel correto e merece ter sua diplomacia apoiada no caso. Recentemente, Amorim sugeriu a realização de um novo pleito, como forma de saída do impasse. 

Essa autoridade pode servir para amplificar a denúncia da hipocrisia estadunidense, que com suas sanções comerciais e embargos econômicos asfixiam a economia de países como a Venezuela.

Nicarágua, ditadura escancarada

Outro passo importante foi dado na relação com o regime autoritário de Daniel Ortega. Há alguns anos, estamos denunciando, junto personalidades históricas da Revolução Sandinista como Mónica Baltodano, o caráter autoritário do regime da Nicarágua. Essa denúncia no Brasil vem sendo feita de forma exemplar por nicaraguenses residentes por aqui e apoiadores reunidos para lutar por liberdades democráticas, desde a rebelião de 2018, afogada em sangue e repressão.

No âmbito diplomático, contudo, as relações entre Brasil e Nicarágua pioraram muito depois que o Papa Francisco intercedeu junto a Lula para negociar a libertação do bispo católico Rolando Alvarez. Lula informou para a imprensa que Ortega evitou marcar uma conversa sobre o tema.

Corretamente, o governo brasileiro não enviou representantes para a celebração – apologética ao regime atual – dos 45 anos da revolução sandinista, realizada no último dia 19 de julho. A virulenta resposta do orteguismo foi expulsar o embaixador brasileiro em Manágua, Breno Dias da Costa.

A pronta resposta brasileira, baseada em um critério de reciprocidade, veio com o Itamaraty expulsando formalmente a embaixadora nicaraguense, Fulvia Patrícia Castro Matus. Um gesto que fala por si. Outro acerto político da nossa diplomacia, sem tergiversações.

O isolamento de Ortega, outrora aliado da política externa brasileira, é um passo à frente para demonstrar o tamanho do autoritarismo presente no regime. Escancara mais, para quem ainda não quer ver, que se trata de uma ditadura, pura e dura.

Um passo a ser dado

O “hat-trick”*  de Celso Amorim veio com a decisão sobre a Elbit. Para quem não sabe, a Elbit é uma das principais fabricantes de armas do Estado de Israel, que tinha firmado um contrato de 1 bilhão com o Estado Brasileiro, numa licitação que superou países como China e França, estando em processo de finalização. Seriam vendidos 36 blindados de combate obuseiros. São armamentos pesados, de alto poder destrutivo, que seriam entregues para as Forças Armadas Brasileiras até 2034.

Amorim declarou à CNN: “Primeiro que a decisão da corte internacional recomenda não colaborar com Israel nesse aspecto militar. (…) O governo atual do país tem tido comportamento altamente condenável do ponto de vista militar. Então é delicado ficar dependendo militarmente de Israel”.

O gesto correto de Amorim foi respondido pelo ministro da defesa, José Múcio Monteiro, com a abertura de negociações para driblar a decisão diplomática. Mucio quer manter os acordos com Israel e abriu uma frente de negociações com o estado do Rio Grande do Sul, para pressionar que a fábrica gaúcha da Elbit produza os blindados.

Nessa intricada seara, o Brasil deve dar um passo adiante: romper de fato e direito as relações diplomáticas e comerciais com Israel, seguindo o caminho da Colômbia e da África do Sul.

Uma visão à esquerda

Nesses três casos, o lugar da esquerda socialista e do PSOL é de apoiar os passos dados por Amorim e o conjunto da diplomacia. Isso não significa empreender um apoio automático às posições majoritárias na política internacional do governo Lula. Contudo, há que se reconhecer e disputar algumas premissas.

Em primeiro lugar, que o peso diplomático do Brasil segue sendo relevante, num mundo de caos geopolítico. Temos na tradição da política externa- sejam “políticos” ou diplomatas de carreira- figuras que cumpriram papel de grande relevo, como Sérgio Vieira Mello ou Marco Aurélio Garcia. Amorim, nesta semana, fez jus a esse legado.

Em segundo lugar, há uma disputa intensa, da opinião pública na sociedade. O sionismo usa de todos os expedientes, financiamentos e manobras para manter suas posições, relativizando o genocídio em curso. Essa é a luta política mais importante no terreno internacional, pois une o ponto alto da resistência anticolonial com o projeto mais bem acabado da extrema-direita internacional, alinhando Trump, Netanyahu, Milei e os Bolsonaros. Com o apoio e a cumplicidade dos Democratas nos Estados Unidos e de muitos governos ditos “liberais”, podemos citar Macron e Starmer.  Outra disputa, inclusive nos círculos de esquerda, é contra a visão campista que absolve e justifica as medidas autoritárias de Ortega e Maduro.

É preciso aproveitar o volume de notícias que gera uma ampla discussão acerca de questões internacionais, para desmentir as falácias da mídia liberal (sem falar das fake news da extrema-direita turbinadas por Elon Musk), combatendo as visões campistas no seio da esquerda. Temos que ressoar nossas posições, de uma esquerda internacionalista e democrática, que não teme em dizer seu nome, nem ajustar seu programa por interesses e razões de Estado.

*“Hat-Trick” é uma expressão esportiva utilizada para denominar uma jogada, lance ou pontuação feita com maestria por três vezes em sequência. Exemplo no futebol: um jogador marca três gols na mesma partida.


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