Movimentos sociais, oportunismo e defesa da classe
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Movimentos sociais, oportunismo e defesa da classe

Perante mais cortes nos gastos sociais, a defesa dos interesses da classe trabalhadora deve ser um princípio inegociável dos movimentos sociais anticapitalistas

Bruno Magalhães 19 set 2024, 17:32

Foto: Rede Emancipa Jundiaí/Reprodução

Nos últimos dias, um triste marco foi atingido na esquerda brasileira com a votação do corte de verbas do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do seguro defeso na Câmara dos Deputados. Pela primeira vez, parlamentares do PSOL votaram diretamente contra interesses econômicos dos trabalhadores – junto com a extrema direita – ao apoiar as metas de austeridade fiscal do governo Lula. Mesmo com a contrariedade de Sâmia Bomfim, Glauber Braga e Fernanda Melchionna, foi aprovado o projeto de lei que permite o corte de 10% de beneficiários dos projetos acima.

A desculpa do governo (e da maioria dos parlamentares do PSOL) foi o combate às fraudes nesses benefícios sociais, mas o verdadeiro interesse por trás dos cortes é a retirada de aproximadamente 600 mil idosos e pessoas com deficiência do BPC (11% dos beneficiários do programa) para incrementar em R$9 bilhões o orçamento e amenizar pela metade o impacto da desoneração fiscal de 17 setores empresariais em suas contribuições para a Previdência. Entre estes setores estão as empresas produtoras de proteína animal e couro, de construção civil, empresas têxteis, fabricantes de veículos e call centers.

Ou seja, um recurso destinado para as parcelas mais vulneráveis da população (como idosos, pessoas com deficiência e pescadores artesanais) será transferido diretamente para grandes empresas através da isenção de seus impostos previdenciários.

Quando na oposição, o próprio PT foi contra uma medida similar de Bolsonaro em 2019, corretamente denunciando o corte de quantia parecida de recursos do BPC justificada pelos mesmos argumentos. A situação é ainda mais grave porque havia um destaque do PSOL sobre o projeto que, caso não fosse retirado, impediria a desoneração fiscal para os empresários. Em outras palavras, a maioria da bancada do PSOL foi responsável direta pela manutenção dos interesses das grandes empresas através do apoio aos cortes nos gastos sociais.

Se isso não bastasse, o silêncio generalizado de grande parte da esquerda sobre este ataque demonstra a crescente pressão oportunista que afeta partidos e movimentos sociais ao mesmo tempo em que a narrativa oficialista continua utilizando jargões como “reconstruir o Brasil” ou “periferia no centro do orçamento” após esta e diversas outras medidas que atacam principalmente as populações das periferias do país.

As tentativas de acabar com pisos constitucionais da saúde e educação, o PL contra motoristas de aplicativos, os projetos de reconstrução da BR 319 e de exploração de petróleo na margem equatorial da Amazônia, os ínfimos recursos destinados à ministérios essenciais (como Povos Indígenas, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos) são apenas alguns exemplos de como as políticas econômicas liberais do governo impactam negativamente a vida de milhões de pessoas pobres.

A unidade de ação contra a extrema direita torna-se a justificativa para este e outros silêncios sobre ações antipopulares perpetradas pelo governo Lula, como se qualquer sinal de independência estivesse automaticamente “fazendo o jogo da direita”. Direita que, por sinal, também compõe o governo. Qualquer crítica que ultrapasse algumas linhas é logo desqualificada através do escudo infalível da existência da extrema direita, como se tais medidas não estivessem diretamente relacionadas à enorme frustração social que a própria extrema direita usa para crescer. Estes setores tratam a questão como se o principal risco de desvio político na esquerda brasileira de hoje fosse o ultraesquerdismo, ao invés do oportunismo coberto de benesses e financiamentos, jogando o “momento correto” das críticas para um futuro distante no qual a extrema direita talvez não exista mais.

A luta contra a extrema direita é urgente e necessária, mas para ser efetiva precisa combinar duas táticas distintas. É preciso uma unidade de ação antifascista total (inclusive com setores da burguesia) contra todas as expressões e iniciativas reacionárias em todos os níveis porque derrotá-las é a premissa para avançar nas conquistas sociais que almejamos. Entretanto, para que tal combate não caia no movimento circular que retroalimenta a extrema direita através da frustração social, é preciso lutar por uma frente única que apresente um programa sólido em defesa dos interesses da classe trabalhadora, à exemplo do que foi feito na Nova Frente Popular francesa.

Na França, a mobilização social e sua posterior vitória eleitoral só aconteceu porque a unidade da esquerda se deu sob medidas concretas baseadas na defesa dos direitos sociais. E este conjunto de medidas partiu das bases, dos movimentos sociais e sindicatos que exigiram uma unidade contra a extrema direita baseada num programa de defesa de direitos. No Brasil, infelizmente, boa parte da esquerda mistura propositalmente as duas tarefas acima e nomeia como “frente única” uma unidade de ação permanente com o governo, na qual não existem elementos programáticos mínimos e nem mesmo a independência para crítica em situações drásticas como nesse caso do BPC. O resultado são mais retrocessos econômicos, operados com oposição muito menor na esquerda, enquanto a extrema direita se utiliza dessas contradições para desmoralizar as posições de esquerda na sociedade.

Um setor importante dos movimentos sociais não incorpora diretamente a narrativa oficialista, mas desvia destes temas espinhosos declarando obviedades. A principal delas seria a necessidade da construção de maioria social para enfrentar a extrema direita, num processo de longo prazo de retorno às bases para promover uma disputa contra a extrema direita nos territórios onde ela mais cresce – através da ideologia neoliberal e do fundamentalismo religioso.

Tal afirmação é totalmente correta e define uma tarefa para nossa geração, não há dúvidas sobre isso. Entretanto, esta maioria social não é abstrata e sua construção só faz sentido através de seu desenvolvimento enquanto classe para si. A formação de uma maioria social baseada em uma política oportunista – que troca a radicalidade de suas reivindicações por vantagens momentâneas atreladas ao governo de plantão e à própria dinâmica da reprodução capitalista – já deu inúmeros exemplos históricos de fracasso. No Brasil, foi tal política que levou ao levante de 2013 (quando se sentiram os reflexos da crise capitalista) e depois atuou para esvaziar este ímpeto de lutas, abrindo espaço para o surgimento da nova extrema direita que lucra se promovendo falaciosamente como “antissistema”.

Esta postura coloca os movimentos sociais numa situação complexa. Se, por um lado, o autofinanciamento popular tem uma perspectiva difícil, por outro, o financiamento imediato do governo e de seus aliados muitas vezes ajuda na construção destes movimentos, mas também os amarra em sua lógica oficialista. E isto explica porque, para muitos, é tão difícil questionar as políticas de austeridade fiscal de forma contundente. Surge então uma dinâmica dupla na qual para dentro da vanguarda se fazem as críticas de forma tímida enquanto para fora se agita a “unidade” ao redor do “time do Lula” e outras demagogias similares. Ainda que o perigo da extrema direita figure como sua justificativa política, esta é a base concreta de diversos (e impressionantes) giros oportunistas atuais.

As pequenas vitórias e avanços conquistados pelos movimentos sociais em suas diversas táticas e lutas são essenciais para moralizar a classe trabalhadora, desenvolvendo uma pedagogia política que demonstra que as lutas podem trazer vitórias. Mas todas estas vitórias particulares só adquirem sentido universal se estiverem articuladas a um projeto social de ruptura, sob risco de se transformarem em partes da própria gestão do capital, como demonstram as experiências de diversas organizações não governamentais fundadas com os mais nobres objetivos.

Construir este sentido universal através das lutas particulares absolutamente não é uma tarefa simples e este texto não pretende dar nenhuma lição sobre isso. Mas esta construção só pode se desenvolver se não houver nenhum tipo de vacilação na hora de defender os interesses da classe trabalhadora em alto e bom som em todas as situações, mesmo que isto signifique ir contra interesses próprios. Por isso é tão importante que, simultaneamente à unidade com Lula contra os reacionários, os movimentos sociais denunciem o absurdo corte de verbas do BPC e todos os outros atentados promovidos contra os trabalhadores e trabalhadoras das periferias brasileiras. Nenhum financiamento público ou emenda parlamentar vale esse silêncio.


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