Gestão Trump, um ano de “fogo e fúria” na Casa Branca

O balanço do primeiro ano da gestão do presidente estadunidense demonstra um governo com muitas frentes em conflito.

Israel Dutra 30 jan 2018, 21:21

Donald Trump completou um ano de gestão em 20 de janeiro. À frente da posição política mais poderosa do mundo, sua forma grotesca impõe um conteúdo claro: um governo reacionário ao extremo, disposto a ir às últimas consequências contra os pobres e imigrantes para satisfazer as necessidades dos grandes milionários estadunidenses. Como um postal da presente situação política, uma multitudinária marcha de mulheres também marcou o 20 de Janeiro, relembrando um dos maiores movimentos de rua da história do país, a marcha “Mulheres contra Trump” na ocasião de sua posse.

Trump, contudo, tem pouco o que celebrar. Apesar da importante vitória na aprovação da reforma tributária impositiva, atuando como um Robin Hood às avessas em favor dos grandes magnatas dos Estados Unidos, o cenário já não é tão favorável ao presidente. É importante analisar o quadro atual, com desdobramentos importantes para o mundo, especialmente para o continente americano. No Congresso, a aprovação do Orçamento para 2018 foi pírrica e provisória. Joga para uma nova discussão sobre o tema em 08 de fevereiro.

Lançado há quinze dias, o livro “Fogo e Fúria” do jornalista Michael Wolff – que tem previsão de chegada às prateleiras do Brasil na primeira quinzena de março – causou um pequeno terremoto. Falando na mesma linguagem de Trump e utilizando declarações bombásticas de fontes duvidosas, o livro causa furor por revelar a intimidade dos hábitos bizarros do atual titular da Casa Branca. Também é um duro golpe contra Trump a entrevista de Steven Bannon, seu ex-estrategista. Revés ainda maior consistiram as acusações sobre a presença nas negociações secretas com a inteligência russa, fato que poderia levar a um processo mais grave de questionamento do próprio governo.

De fato, primeiro ano de Donald Trump marcou uma nova realidade mundial, com muito mais agressividade e contradições. Dentro dessa dinâmica, bastante imprevisível, se eleva o nível de polarização, numa sociedade até então tida como modelar do ponto de vista político, o principal gendarme mundial, alicerçado num “bipartidarismo sólido”, quase que exclusivo. Esse governo instável que semeia ódio, fúria e fogo contra os debaixo, também gera comoção e um novo tipo de resistência ativa nas ruas dos Estados Unidos e de todo o continente americano.

“Fúria” contra os debaixo: um governo com muitas frentes em conflito

Contrariando a previsão das pesquisas, a eleição de Trump foi uma monstruosa surpresa. Se impôs primeiro dentro do próprio Partido Republicano arrasando onze concorrentes, para depois vencer Hilary (ainda que tenha perdido em número total de votos, obteve vitórias decisivas em estados-chave que lhe concederam a maioria de delegados no Colégio Eleitoral). Seu triunfo foi a expressão de um programa branco e nacionalista. Sintetizou, por um lado, a busca por uma saída conservadora nos marcos da crise do processo de “globalização”. De outra parte, evidenciou a versão estadunidense da crise orgânica dos regimes bipartidários, marcados agora pela polarização nos seus extremos. Sanders foi um fenômeno que apontava uma saída à esquerda do establishment; no outro extremo havia Trump, dando lastro aos setores mais atrasados da “América profunda”.

Como uma metralhadora verbal, Trump age de forma compulsiva no twitter. E, ao contrário de qualquer manual de ciência política, acaba por abrir mais de uma frente de conflito ao mesmo tempo. Aliás, inúmeras frentes. Ataca a imprensa e ex-aliados, escolhendo como alvo preferencial de seus impropérios xenofóbicos e racistas os imigrantes.

O seu programa de governo alimenta uma maior tensão racial, num clima em que – além das ações corriqueiras de uma das polícias mais violentas do mundo contra o negros – ganharam reforço os grupos da extrema-direita, agrupados em espaços como “All Rigth/Direita Alternativa”, e os defensores da supremacia branca. O ponto mais agudo do conflito se verificou em Charlotesville, quando grupos da direita branca protestaram contra a remoção de uma estátua de um líder escravista. Este acontecimento transformou-se em uma batalha de proporções nacionais, com dois mortos entre os manifestantes antifascistas. A polarização segue colocando no centro da cena o movimento negro americano, organizado na bandeira de “Vidas Negras importam/Black Lives Matter”.

Do ponto de vista da eficácia de sua plataforma econômica, Trump ainda patina. Os índices de crescimento dos Estados Unidos se mantêm os mesmos desde a posse de Trump. O desemprego não se afastou dos níveis da era Obama, o que tende a inviabilizar a criação de 25 milhões de empregos em dez anos, uma de suas promessas centrais. Sua fuga pra frente foi a aprovação de uma ousada reforma tributária que amplia os benefícios e isenções dos maiores capitalistas, num afago a Wall Street, por meio do discurso de “aliviando-se para os grandes, se criam empregos”. Na verdade, esta medida é estruturante para perpetuar a desigualdade, como nos explica Francisco Louçã, comentando a reforma de Trump:

“Satisfez os mais poderosos dos seus apoiantes, embolsou um ganho saboroso para a sua própria conta bancária e conseguiu pela primeira vez o apoio da maioria republicana numa matéria de grande impacto. Os efeitos desta reforma serão sentidos nos próximos anos e ainda a conta vai no adro. Mas adivinha-se o que vem: défice monumental, subida de taxa de juros e tensões no “terrorismo financeiro”, como um conselheiro presidencial de Clinton, Larry Summers, chamava ao equilíbrio entre os EUA e a China (que financia o défice norte-americano). Ora, se o que se passa na Casa Branca é ainda o que decide em grande medida a política mundial, esta política é uma das expressões da maldição do século – e vai agravá-la.”

Essa reforma impositiva protagoniza a “contrarrevolução econômica” neoliberal. Soma-se a isso o ataque permanente aos imigrantes, incrementado com a revisão do TPS (Estatuto de Proteção Social) que protege cerca de 300 mil trabalhadores oriundos de países centro-americanos e com a previsão do fim do programa DACA, o qual assegura o direito aos jovens imigrantes de viverem e trabalharem nos Estados Unidos. O caminho explícito que Trump quer construir leva a deportação de centenas de milhares de latinos que constituem hoje uma parcela significativa da classe trabalhadora estadunidense.

Já no flanco do jogo político, Trump vem cada vez mais se debilitando. Boa parte de seu staff inicial foi trocado ou pediu demissão ao longo dos 12 meses inciais. A principal dessas rupturas -que envolve o nebuloso caso do Russiagate investigado pela procuradoria-geral dos EUA – foi a saída de Bannon, agora detalhada em entrevista do próprio no livro de Wolff. Este emaranhado de atritos e confusões contribuiu para que Trump tenha concluído o primeiro quarto de seu mandato como o presidente estadunidense de menor avaliação popular em sua fase inicial: sua taxa de aprovação popular não ultrapassa 39% (pesquisa da NBC), contrastando bastante com os 50% de Barack Obama, 60% de Bill Clinton e 82% de George W. Bush. “Nervoso” e “assustado” são as palavras que os entrevistados desta pesquisa acreditam ser a que melhor definem a gestão trumpista.

“Fogo” nas relações externas

Se para o ambiente doméstico dos Estados Unidos, Trump estimula uma ativação maior da luta social. no terreno internacional, sua postura não deixa também de ser beligerante. Age como a figura do “bombeiro louco”, que busca apagar o fogo com mais gasolina.

Incapaz de esconder seu desprezo racista contra os países de origem de centenas de milhares de imigrantes que vivem nos Estados Unidos, Trump recentemente cometeu o absurdo em uma reunião com senadores de chamar estas nações de “buracos de merda”, se referindo a El Salvador, Haiti e países africanos. Ainda completou o disparate racista, afirmando ter preferência pela chegada de imigrantes oriundos da Noruega. Isso veio logo em seguida à assinatura de uma nova ordem migratória- felizmente revertida pelo poder judicial- desautorizando o ingresso de migrantes e refugiados de seis países de matriz muçulmana.

Outro retrocesso encampado por Trump foi a saída dos Estados Unidos, em Junho passado, do acordo climático de Paris(firmado por 195 países em 2015). O alinhamento da Casa Branca com o negacionismo climático não poderia trazer sentimentos outros que não a insegurança e o mal-estar para todos os que se preocupam minimamente com o futuro do Planeta e da humanidade.

A unilateralidade do Departamento de Estado sob Trump também ameaça recuar no tratado nuclear que a administração Obama fez com o Irã. No Oriente Médio, aliás, Trump tem realizado gestos para agradar os setores mais conservadores do sionismo internacional. A movimentação sobre transladar a embaixada americana para Jerusalém representa mais que uma provocação, uma verdadeira agressão diplomática. Reconhece Jerusalém, cidade histórica do território palestino, como capital do Estado sionista de Israel. É de conhecimento público que um dos operadores centrais de Trump, seu genro Jared Kushner, é vinculado ao lobby sionista, atuando como elo entre Arábia Saudita, o governo de Netanyahu e os Estados Unidos. A fundação Kushner foi uma das principais doadoras da campanha de financiamento dos polêmicos assentamentos de colonos judeus em Ramallah.

A contrapartida da agenda sionista de Trump revela-se no isolamento dentro da comunidade internacional que ficou demonstrado na última sessão da Assembleia Geral da ONU. Na votação da resolução que desautorizava o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, o placar apontou 128 votos contrários a Trump, que contou apenas com a solidariedade diplomática de 7 governos, para além dos EUA e Israel. Não à toa a recente visita de seu vice Mike Pence ao Oriente Médio foi boicotada – corretamente- pela Autoridade Nacional Palestina. A resposta dos EUA foi mais ameaças de maiores cortes na ajuda humanitária, chantageando a Palestina com uma estratégia de estrangulamento.

No que se refere à maquinaria militar do Império, Trump se volta para ganhar posições nos conflitos interestatais. Além da localização agressiva no Oriente Médio, busca competir com China, onde até aqui o principal litígio é a relação com a Coreia do Norte. A disputa de quem tem o “botão maior” no âmbito nuclear, marcou quase que todo o semestre passado numa troca pública de farpas e ameaças entre o presidente dos Estados Unidos e o líder norte-coreano Kim Jong-un.

Mas a expressão maior do que Trump deseja como legado (físico, real e simbólico) é o plano de construção do muro com o México. Um terço da fronteira com México – que ao todo completam 3200 km- já está gradeado ou cercado. Como se isso não bastasse, Trump quer ampliar a extensão, reforçando os muros que separam. É a sua resposta para dividir a classe e separar os imigrantes, alicerçado no programa conservador, dos setores mais atrasados e reacionários que defendem a supremacia branca. Os mexicanos, os portoriquenhos e centro-americanos em geral são tomados como o bode expiatório do discurso “america first”. Tudo leva a crer que não será menor a tormenta que virá com a medição de forças em torno da construção do muro. Para aplastar a resistência dos mexicanos e imigrantes, Trump comprará grandes conflitos. A própria eleição presidencial mexicana também estará condicionada e dominada por essa nova situação. Logo, decisiva também é a capacidade que os internacionalistas terão de ecoar vozes no mundo inteiro contra Trump e seu muro.

Uma outra saída- Os tempos estão mudando

Os elementos brevemente assinalados acima caracterizam o primeiro ano da gestão de Donald Trump: uma guerra permanente contra o povo, mas também com uma resistência crescente. A entrada em cena de setores importantes das massas é a outra cara da moeda do programa plutocrático e racista de Trump. Como já citamos, o movimento de mulheres foi a vanguarda, desde o primeiro minuto de Trump na Casa Branca, desempenhando um contraponto ativo ao sexismo e machismo. Tal movimento ascendente encontrou ecos superiores: foi um ponto de apoio para a greve internacional de mulheres do 8 de Março de 2017 e pautou um conjunto de relações políticas na sociedade estadunidense, conforme tem demonstrado o movimento “#Metoo”, que se expandiu mundialmente contra o assédio sexual e moral através de denúncias que envolvem figuras de peso da política, artes, esportes, etc.

O movimento negro também é vanguarda, com o fortalecimento do “Black Lives Matter”. Manifestações, associações e eventos de luta dos imigrantes também cresceram por todo lado. A marcha dos setores ligados à ciência e os grupos ligados a defesa da causa ambiental tomaram lugar também na oposição aos planos de Trump. Uma miríade importante de movimentos sociais e políticos começa a tomar forma para barrar os retrocessos colocados, a fim de ampliar ampliar o volume da resistência e discutir uma outra saída, um outro caminho.

A busca por novas alternativas – que passam por um acesso amplo, público e gratuito a saúde, como uma das campanhas prioritárias- é o impulso que alimenta o crescimento de posições socialistas e progressistas. A campanha de Bernie Sanders foi um primeiro momento de agrupar tais demandas. O Senador de Vermont seguiu desenvolvendo seus eixos de campanha e organizando o movimento “Our Revolution”. Esta perseverança militante resultou em bons desempenhos nas eleições municipais e estaduais do final de 2017. Nestas eleições, os candidatos apoiados por Trump perderam em estados importantes como Nova Jersey e Virginia, o que guarda coerência com sua baixíssima aceitação social. Simultaneamente, houve o crescimento de posições socialistas, com o movimento LGBT e da negritude emplacando representantes em diferentes distritos.

O DSA (Democratas Socialistas da América) obteve resultados progressivos, alcançado a marca de 25 parlamentares locais, com destaque para a quase eleição de Jabari Brisport, com perto de 30% dos votos num dos principais distritos de Nova York. Outras candidaturas socialistas alcançaram votações surpreendentes, como Ginger Jentzen em Minneapólis. O crescimento do DSA – que “explodiu” seu número de aderentes, passando de 6 mil para mais de 30 mil – é o melhor exemplo da busca por alternativas que rompam com o “centro extremo” do Partido Democrata e da visão direitista de Trump e seus seguidores. O peso inédito das ideias socialistas, ainda difusas, junto sobretudo aos mais jovens, aponta que no coração do capitalismo algo se move e de maneira profunda.

Como o próprio Bernie Sanders diagnosticou recentemente, “Rejeitar a ganância de Wall Street, o poder das gigantescas corporações multinacionais e a influência da classe dos bilionários globais não é apenas a coisa certa a fazer — é um imperativo geopolítico estratégico”. Por isso, a luta encarniçada contra o modelo Trump é uma tarefa para além das fronteiras. Construir uma alternativa, compatível com a ideia de que os tempos estão mudando, exige que se combine a amplitude e unidade na resistência com ações massivas para isolar o “Nero” do século XXI.

Artigo originalmente publicado no site do Partido Socialismo e Liberdade.


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