O grito de Afrin precisa ecoar no mundo

O secretário de Relações Internacionais do PSOL, Israel Dutra, escreve sobre as tarefas da esquerda brasileira em apoio aos curdos que resistem em Afrin à agressão militar turca.

Israel Dutra 15 fev 2018, 12:54

No dia 20 de janeiro, a força aérea turca despejou força total contra a região curda de Afrin, no norte sírio. Com mais de 70 caças, centenas de mísseis disparados, o governo autoritário de Erdogan, através de bombardeios a alvos civis e militares, combinada com movimentação de tropas terrestres, deu inicio a chamada operação “Ramo de Oliveira”.

O governo turco abandonou sua antiga camuflagem, de ataque ao ISIS/Daesh[Estado Islâmico] na região, para iniciar o que chamou de guerra total contra os curdos. Já são cerca de 148 mortos, com muitas crianças e mulheres civis. Os objetivos confessos da operação são desmantelar o enclave curdo do norte da Síria, criando um ‘cordão’ de controle por toda a fronteira com a Turquia. Sem qualquer tipo de dispositivo legal ou diplomático, sendo um Estado membro da OTAN, Erdogan usa de um expediente totalitário, com o argumento que coloca um sinal de igual entre os terroristas do Estado Islâmico e as organizações comunais da FDNS(Forças Democráticas do Norte da Síria, na região conhecida como Rojava). Violando o direito internacional, Erdogan não apresentou uma prova sequer de que Afrin tivesse atacado a Turquia ou qualquer outra medida que pudesse significar uma ameaça a segurança do país. Na verdade, o que o Estado Turco quer promover na região é uma verdadeira limpeza étnica contra os curdos, com um genocídio em Afrin.

Com mais de vinte dias de combates, o grande trunfo das tropas turcas tem sido a colaboração da Rússia. Sua aliança se estende também aos grupos terroristas que se despreenderam das antigas mílicias que combateram na guerra civil síria para se vincular com frações de mercenários, terroristas e fundamentalistas como AlQuaeda/AlNusra e outras. Assim mesmo, não conseguem chegar próximos de Afrin, vide a resistência impressionante do povo da cidade, não apenas de origem curda, mas de diferentes etnias. Ao contrário do que esperavam os comandantes das tropas invasoras, a cidade não apenas não foi evacuada, como o número de civis que participam de protestos e de brigadas voluntárias cresceu bastante. Vindos de Kobane e de outros povoados próximos, são centenas que se organizam a cada dia para uma resistência de longo alcance. É impressionante a capacidade de resistência de massas e a moral das tropas das unidades populares de combatentes curdos. Principalmente das suas unidades femininas, as YPJ.

A guerra civil Síria gerou um cenário de maior instabilidade regional.É impossível entender o atual contexto sem levar em conta que o regime do ditador Bashar Al Assad conseguiu se manter, graças a uma estreita colaboração com o regime russo de Putin. E, de outra parte, os Estados Unidos atuam sem uma perspectiva estratégica clara na região, apenas se diferenciando de Assad, sem intervir no terreno militar direto. São múltiplas forças que atuam com interesses conflitantes, ora com pequenos pontos de covergência, nesse tabuleiro cada vez mais complicado na geopolitica mundial.

Podemos dizer que existem quatro grandes vetores em questão: de uma parte as posições das grandes potências mundiais, especialmente os Estados Unidos e Rússia; de outra parte as potências regionais que querem estabelecer seu maior controle – Turquia e Irã; os grupos fundamentalistas; e a potência revolucionária que vai se forjando com as FNDS

Erdogan recorre a uma fórmula conhecida dos déspotas. Buscar um inimigo externo para disciplinar a ‘frente interna’. Desde o levante da praça Taksin, em junho de 2013, a esquerda radical turca ganhou espaço para conformar uma nova frente política junto aos setores da esquerda curda dentro da Turquia. A construção do projeto do HDP[ partido democrático dos povos] deu um salto, quebrando a polaridade entre turcos e curdos, ampliando o discurso anticapitalista e de classe. Seu êxito eleitoral foi tamanho, chegando a romper a draconiana cláusula de 10% para ingressar no parlamento, nas eleições de 2015, quando chegou a 80 deputados, sendo a terceira maior força do parlamento turco. A retomada das lutas democráticas fez com o regime respondesse com um giro bonapartista, recolocando os curdos como seu inimigo principal.

A estratégia de guerra total de Erdogan é mais um capítulo no seu giro autoritário. Após uma misteriosa tentativa de golpe de Estado, em julho de 2016, o regime ampliou seus poderes, numa perseguição implácavel contra opositores. Num expurgo sem precedentes, milhares de funcionários públicos, juízes, jornalistas, sindicalistas e advogados foram demitidos, presos e perderam seus direitos políticos. Para tentar dar coesão e alguma legitimidade para um regime totalitário, Erdogan impôs um plebiscito, em abril de 2017, marcado por fraudes e contestações, em que estabelecia a possibilidade de manter-se no poder até o ano de 2029. A vitória ajustada por apenas 51% dos votos foi o suficiente para levar a cabo a nova fase de seu plano, de se converter num “sultão contemporâneo”.

Seu nacionalismo reacionário combina elementos de repressão abertos com uma feroz luta ideológica contra as outras nacionalidades. Há um grande descontentamento na classe trabalhadora, que Erdogan acaba enfrentando com repressão aos sindicatos e com a linha de que qualquer protesto em período de guerra é um crime de alta traição nacional. Assim conseguiu evitar – por enquanto – a greve nacional do setor metalúrgico que estava marcada para o começo de fevereiro. No plano ideológico, além de ceder mais espaço ao partido da extrema-direita, MHP, Erdogan aumenta a campanha internacional a favor do negacionismo do genocídio armênio – um holocausto promovido pelo império otomano no ano de 1915 contra a etnia armênia – para fortalecer seu discurso nacionalista pró turco. Na investida contra Afrin conseguiu ganhar os setores mais atrasados da social-democracia, como o partido de caráter “nacional-popular”, CHP, de inspiração kemalista.

Erdogan, contudo, tem outro grande motivo para esmagar Afrin e a experiência curda no norte da síria. Afrin, com 380 aldeias e povados, distante 40 quilometros de Aleppo, é uma experiência de admistração que vem sido êxitosa.

Diante do agravamento da crise social e de representação no Oriente Médio, a experiência de Rojava/FNDS é muito perigosa para os déspotas como Erdogan. A tragédia derivada da guerra civil Síria, combinada com o ascenso do movimento democrático curdo na própria Turquia, gerou tensões e enfrentamentos no norte sírio. Parte do abandono dos setores da oposição democrática na guerra civil fez com que importantes cidades ficassem descobertas, especialmente Kobane, alvo prioritário do ISIS/DAESH. A batalha pela defesa de Kobane, mundialmente conhecida, deu uma nova projeção para a capacidade de luta militar e política do povo curdo, destacando alguns aspectos fundamentais como o protagonismo e o respeito às mulheres e a proposta de um novo modelo de gestão democrática. A constituição de uma experiência de participação popular, pluralista, com uma visão de mundo anticapitalista e de defesa dos direitos das mulheres se espalhou como um modelo em meio à crise geral de modelos alternativos no mundo e no Oriente Médio em particular. No caso do Oriente Médio, onde as tensões sectárias são insufladas pelos líderes dos setores fundamentalista, o modelo pluralista e comunitário que está se gestando é uma ameaça para as castas dominantes. Replicar esse modelo – chamado “confederalismo democrático”, com pontos avançados no que diz respeito às mulheres, ecologia, convívio entre diferentes visões religiosas e de mundo – poderia desencadear uma nova situação política na região.

Há uma disputa em curso na diplomacia e na opinião pública mundial. A Rússia está sendo a operadora da coalizão entre a Turquia e as forças fundamentalistas e mercenárias que cercam Afrin. Uma dos grandes acordos de cooperação econômica entre Turquia e Rússia é a construção de um gasoduto, o Turk Stream. A conferência de Sochi, convocada com a finalidade de debater uma saída negociada para o conjunto do conflito sírio, não foi capaz de se posicionar sobre a invasão turca no norte da Síria, pela postura que a Rússia tem de sustentar a operação “Ramo de Oliveira”. O resto das potências ainda pouco fez para evitar a tentativa de genocídio.

Resta à esquerda quebrar o silêncio. No Brasil o comitê paulista em defesa do Curdistão realizou um ato de protesto em frente ao consulado da Turquia. O PSOL se fez presente. Em Buenos Aires, a marcha contou com 800 pessoas. No parlamento europeu, a deputada do Bloco de Esquerda português fez um belo discurso denunciando a ofensiva contra Afrin. E o Die Linke alemão emitiu uma nota em relação à ofensiva. São iniciativas exemplares, mas ainda insuficientes. É preciso colocar na ordem do dia a solidariedade imediata ao povo curdo no norte da Síria e o repúdio à ação militar do Estado Turco. Devemos exigir que os governos e representações diplomáticas rompam relações durante o periodo que perdurar essa ofensiva. Devemos também ajudar na batalha da informação, postando fotos e comunicados nas redes sociais. Todo apoio e auxílio é justo e necessário.

A esquerda brasileira deve assumir essa bandeira. A vitória do povo de Afrin, das unidades militares do FDNS, é uma vitória de toda a humanidade contra o terrorismo e o neofascismo de Erdogan. Afrin não está sozinha: luta, resiste e vencerá!


Originalmente publicado no site do PSOL.


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