A crise do governo Trump

Envolvido em investigações sobre suas relações com Putin, pressionado pela insatisfação crescente do povo com as mudanças na política de saúde e por mobilizações que polarizam o gigante norte-americano, o governo Trump entra em crise.

Ella Mahony 10 jul 2017, 19:20

Já faz cinco meses desde que Donald Trump tronou-se o presidente dos Estados Unidos. Esses cinco meses de sua administração foram marcados principalmente pelo caos generalizado e escândalos sem fim. O primeiro conselheiro de segurança nacional de Trump, Michael T. Flynn, foi forçado a sair após apenas 24 dias em seu cargo. Seu mandato foi o mais curto da história da pasta. Em seguida, Steve Bannon, ex-presidente do jornal da extrema-direita Breitbart News, foi desligado de sua função como chefe do Conselho de Segurança Nacional (NSC), embora permaneça como estrategista-chefe do presidente. E no dia 9 de maio, no que se tornou sua maior controvérsia, Trump demitiu James Comey do cargo de diretor do FBI, dizendo que “enfrentei uma grande pressão por causa da [investigação sobre os laços com a Rússia]”, que teria sido “retirada” com a demissão do Comey. Além disso, por trás do gabinete oficial, está um círculo de conselheiros informais, a maioria da família Trump. Jared Kushner, genro de Trump, passou a atuar com uma espécie de Secretário de Estado às sombras, viajando pelo mundo aparentemente como representante dos EUA, inclusive nas zonas de guerra. A filha Ivanka aparece regularmente em reuniões de políticos de alto nível. No entanto, não há transparência em relação às funções desempenhadas por eles e tampouco compromissos democráticos com os cidadãos americanos. Em suma, a intriga está na ordem do dia no palácio de governo.

O comportamento errático de Trump e sua incapacidade de evitar crises e escândalos é um convite a milhões de avaliações psicológicas e teorias de conspiração cada vez mais absurdas. Mas seu estilo de se relacionar com funcionários de alto nível e a atitude de usualmente misturar negócios pessoais com o trabalho do governo podem ser facilmente explicados pela maneira como se tornou magnata dos imóveis em Nova York. O “império” Trump foi fundado pelo pai, Fred Trump, que fez sua fortuna beneficiando-se dos contratos públicos para habitação a preços acessíveis depois da Segunda Guerra Mundial. Fred foi alvo de uma investigação federal em 1954 sobre suas negociações com a agência da Autoridade Federal de Habitação em Nova York. Esta agência foi encabeçada por um operador de esquemas corruptos, Clyde Powell, que foi descoberto facilitando empréstimos favoráveis em troca de propina. Powell beneficiou Trump com um crédito do governo de 3,7 milhões de dólares, superior ao necessário para a construção das habitações. Neste conjunto habitacional, chamado Beach Haven, Fred Trump defendeu zelosamente a “linha de cor” (color line), lutando para excluir os negros da habitação construída com recursos públicos. Numa curiosa coincidência, o ídolo musical e comunista Woody Guthrie morou em Beach Haven por dois anos, enquanto Fred Trump era seu comandante. Aqueles anos inspiraram uma das letras mais militantes – e proféticas – de Guthrie: “Eu suponho que o velho Trump saiba quanto ódio racial/ ele instigou no pote de sangue dos corações humanos/ quando pintou aquela linha de cor/ aqui em seu projeto familiar de Beach Heaven(“I suppose that Old Man Trump knows just how much racial hate/ He stirred up in that bloodpot of human hearts /When he drawed that color line/ Here at his Beach Haven family project” – “Old Man Trump”, Woody Guthrie.)

Seis décadas se passaram desde que Fred aumentou sua fortuna por meios cada vez mais obscuros e discriminatórios. Donald seguiu os passos do pai, mantendo o “império” pela manipulação da lei de falências e negando-se a pagar empreiteiros e trabalhadores. Tudo que Donald Trump adquiriu foi devido aos contatos privilegiados de sua família e a sua aura de “celebridade”. Esta história explica claramente o estilo da administração Trump. Sua obsessão pela lealdade pessoal, sua postura impiedosamente mercenária quando trata com pessoas que possam apresentar “problemas”, a facilidade com que mistura negócios e interesses públicos e a antipatia com relação a investigações oficiais: tudo que caracteriza o mandato caótico de Trump também caracteriza os métodos do setor imobiliário. A direita adora proclamar a eficiência de se dirigir o governo como um negócio, mas, no caso de Trump, isso tem causado absoluta instabilidade e caos.

Entretanto, as características pessoais de Trump representam apenas uma das várias causas para as constantes crises do mandato.

Do ponto de vista partidário, o Partido Republicano não precisa que Trump seja estável para atingir seu programa. Nem mesmo o quer. As tentativas republicanas de “revogar e substituir” o Obamacare (programa de seguro de saúde que representa o feito mais popular do mandato de Obama) mostram o porquê.

No começo do junho, o escândalo da demissão de Comey atingiu seu clímax. Comey testemunhou perante o comitê de inteligência do senado sobre suas comunicações com Trump, num show que atraiu uma audiência televisiva comparável à do Superbowl. Seu testemunho de que Trump pediu a ele que “esquecesse” as investigações sobre os laços entre Rússia e o antigo conselheiro nacional de segurança, Michael Flynn, deu margem a especulações sobre a possibilidade de se realizar o impeachment do presidente.

Naquela mesma semana, o Partido Republicano começou a unir-se em torno de um projeto de lei secreto que pretendia destruir o sistema Obamacare. A confidencialidade pode ser explicada pelo fato de que os republicanos fracassaram ao tentar fazer a mesma coisa em março, quando o partido tentou aprovar um projeto de lei público chamado American Health Care Act (AHCA). O AHCA revogaria o Obamacare, cortaria fundos para a saúde das mulheres, cancelaria o seguro de saúde de 24 milhões de pessoas na próxima década, e priorizaria pacientes saudáveis sobre os doentes e idosos. A completa crueldade da lei catalisou uma reação popular sem precedentes, com republicanos enfrentando massas furiosas e clamorosas, inclusive nos distritos tradicionalmente conservadores. Tornaram-se virais vídeos de pessoas iradas nos estados de Texas e Iowa – supostos bastiões de Trump – defendendo o Obamacare e até mesmo exigindo um programa de saúde nacional. Graças a essa resposta popular, a lei AHCA, um pilar da campanha de Trump, foi derrotada de forma humilhante.

Mas os republicanos não perderam tempo para tentar de novo. Desta vez, quando interrogado sobre por que o rascunho da lei era secreto, um funcionário do partido respondeu: “Porque não somos estúpidos.” Os líderes republicanos também pretendem, quando a lei se tornar pública, manipular as regras do Senado para diminuir a duração do debate público. Dessa forma, o partido pretende fazer uma manobra legislativa por métodos de sigilo, manipulação e aceleração. Muito importante é o fato de que os republicanos estão contando com o enfoque que os democratas têm dado ao escândalo de Comey, Trump e Rússia. De acordo com Jeff Stein, da Vox, os altos funcionários do Partido Democrata não desejam travar uma “guerra nuclear” contra a AHCA porque querem mais um acordo bipartidário de sanções para Rússia. Nesse caso, o Partido Republicano estaria se beneficiando do caos que emana da personalidade de Trump. Por enquanto, possuem motivos para não buscar a estabilidade do presidente.

A luta em torno da saúde revela outra fonte de instabilidade para Trump: seu programa é extremamente impopular e sua base social está débil demais para defendê-lo. Vale a pena repetir que o Trump não ganhou o voto popular: recebeu 2,9 milhões de votos menos que Hillary Clinton e foi ajudado por níveis históricos de abstenção, com quase 50% do país ficando em casa em vez de votar. Aqueles que votaram sim para Trump são parte de um bloco contraditório e dividido, que conta com poucos seguidores ideológicos. Vejamos quem são os seus eleitores: trabalhadores rurais brancos sem emprego estável, dentre os quais muitos confessam que preferiam Bernie Sanders; brancos de classe média-alta e alta dos subúrbios que formam a base tradicional do Partido Republicano; evangélicos desconfiados de Trump, mas atraídos pelo vice presidente Pence; jovens socialmente isolados que se radicalizam pelas discussões na internet. Esses setores da base de Trump não têm interesses em comum nem intercâmbio social. Os evangélicos, por exemplo, não querem ser associados a figuras provocativas e pós-modernas da direita alternativa como Milo Yiannopolous. Por causa dessa fragmentação, a base social de Trump mal consegue se mobilizar pela defesa de seu programa. Fazem pequenas manifestações, um tanto patéticas, mas que não podem ser comparadas às enormes mobilizações da esquerda contra a posse de Trump, os atos de mulheres por todo o país no dia 8 de março, ou aos protestos nos aeroportos defendendo os refugiados.

A violência esporádica dos lobos solitários representa melhor o que conseguem fazer os fiéis de Trump. Enquanto escrevo, pode-se ouvir sobre o assassinato de uma menina muçulmana de 19 anos, sequestrada enquanto andava para uma mesquita na Virginia e espancada até a morte com um bastão de metal. A polícia afirma que “não foi crime de ódio, mas de ‘raiva da rua’”. No mês passado, no metrô de Portland, dois homens foram mortos a facadas por outro homem enquanto tentavam proteger duas meninas muçulmanas de seu assédio racista. Um homem tentou defender duas meninas muçulmanas do assédio racista matando dois outros homens que queriam assassiná-las. Entre os dias 7 de janeiro e 24 de fevereiro, quatro mesquitas foram incendiados. Em três estados, cemitérios judeus foram vandalizados e várias ameaças de bomba foram mandados para escolas judaicas. Estes ataques são difíceis de parar porque geralmente são realizados por indivíduos radicalizados pela internet, que não conseguiram manter relações saudáveis com amigos, família, ou colegas de trabalho. A imprevisibilidade desses indivíduos assusta bastante, mas também significa que não têm apoio de nenhuma força mais organizada e coerente.

Mas isso pode mudar graças à ajuda dos setores do Estado mais amigáveis às políticas de Trump: as Forças Armadas e a polícia. Nessas agências, há infiltração de movimentos e milícias de supremacia branca que pretendem usar o acesso a armas e o treinamento militar para aumentar sua capacidade. Quanto mais Trump fortalecer esses setores do Estado e aproximar os objetivos racistas do governo ao das milícias, mais estas podem crescer.

Diferentemente do que acontece com sua política de saúde, Trump não depende do consentimento popular para realizar seus objetivos nas agências militares. Como presidente, ele tem fortes poderes legais nesses setores do Estado que, de fato, foram estendidos sob o mandato de Obama. Na polícia e nas Forças Armadas, Obama frequentemente enviou “prioridades” supostamente progressistas, enquanto aprofundou os poderes oficias dessas agências e as isolou da democracia popular. Trump meramente abandonou a aparência de prioridades “progressistas” enquanto retomou o uso dos poderes repressivos que permaneciam escondidos debaixo delas. Isso se aplica às aventuras militares de Trump na Síria e Iêmen. Enquanto Obama expandiu o uso de drones, também transformou o vocabulário para descrever a guerra. Com a ajuda da mídia burguesa, os ataques de drones começaram a ser descritos como “cirúrgicos” e “precisos.” Essa mudança facilitou evitar a definição dos ataques como “atos de guerra”, para os quais o presidente precisa de aprovação do Congresso. Assim, conseguiu remover os atos de guerra dos processos democráticos destinados a supervisioná-los. Com este modelo, até 2015, Obama havia realizado mais de 2800 ataques contra Síria e Iraque sem um único voto no Congresso. Esse precedente permite que Trump possa perseguir as aventuras militares agressivas sem consultar o Congresso ou, ainda menos, o povo americano.

A esquerda americana não pode subestimar a força que Trump tem nesses setores do Estado. O nosso poder vem da mobilização popular, da qual esses setores estão profundamente protegidos. Isso significa que os movimentos que mais enfrentam o Estado repressivo – como o Black Lives Metter (“Vidas Negras Importam”), o movimento de imigrantes e o movimento contra a guerra – são extremamente importantes. Devemos investir vigorosamente nossos esforços neles. Mas isso também significa que seus objetivos são mais difíceis de realizar.

Apesar desses graves desafios, não podemos exagerar o poder da personalidade de Trump como faz o Partido Democrata. A fragmentação da base social da direita apresenta mais oportunidades para a esquerda que as crises confusas e conspiratórias que rodeiam Trump. As amplas lutas por serviços sociais, como saúde universal, mobilizam muito mais pessoas e aparecem como uma ameaça maior para o Partido Republicano. O Partido Democrata atua como freio para a formação dessas lutas. Mas a esquerda socialista não vai parar de construí-las.


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Pedro Micussi