O partido e o período

Bensaïd esboça suas visões acerca do papel de uma organização revolucionária e rememora seus primeiros encontros com Ernest Mandel.

Daniel Bensaïd 21 ago 2018, 13:39

A entrevista a seguir com Daniel Bensaïd foi conduzida durante o “Simpósio Ernest Mandel” realizado em Bruxelas em 19 de Novembro de 2005 (veja IVP[International Viewpoint], Nº 372, Novembro 2005). Bensaïd esboça suas visões acerca do papel de uma organização revolucionária no atual período e rememora seus primeiros encontros com Ernest Mandel. Essa entrevista apareceu na edição de Janeiro de 2006 do “A esquerda” [La Gauche], que é publicado pelo POS (seção belga da IV Internacional).

La gauche – Algumas pessoas estão falando sobre um novo tipo de organização, um novo tipo de partido. O que você acha a respeito disso?

Daniel Bensaïd – Hoje, um partido, em sua organização e em sua vida interna, tem de levar em consideração a diversidade dos movimentos sociais. Pode se beneficiar de avanços tecnológicos: uma conferência telefônica, trocas na internet, que podem facilitar trocas horizontais… Isso já é muito importante porque um dos poderes das burocracias era o monopólio de informação e de transmissão de informação. Nós estamos longe de uma concepção vertical e militar de partido.

Delimitação em relação aos movimentos sociais é uma condição para respeitar esses movimentos e sua autonomia. É menos manipulativo do que se esconder dentro deles e também respeita a vida democrática dentro das organizações políticas e dos próprios partidos. Se nós temos debates, congressos, se nós fazemos esforços para produzir boletins, para trocar posições contraditórias, tem de haver algo em questão, de outro modo seria uma democracia sem um objetivo.

O objetivo está relacionado a questões principais. Nós não iremos lutar até a morte por questões de táticas locais. Nós podemos ter vários tipos de acordos sobre táticas eleitorais, quando uma ramificação local quiser tentar algo que não está dentro do quadro da orientação geral a nível nacional.

O famoso centralismo democrático é frequentemente criticado, porque nós temos uma imagem da forma como era praticado por organizações burocráticas. Porém abordando a questão por esse caminho nós nos esquecemos que centralismo e democracia não são antinomias, mas que um é a condição do outro. Nós conduzimos debates democráticos com o objetivo de tomar decisões com as quais estejamos todos comprometidos.

Eu penso – eu não sei se nós iremos sempre evitar isso – que o que particularmente permitiu que a LCR [Liga Comunista Revolucionária] evitasse até então as crises que destruíram outras organizações, é que nós não tivemos a pretensão de fundar uma ortodoxia teórica. Desde o começo, ao final dos anos 1960, tinham entre nós seguidores de Althusser e de Sartre, tinham os mandelistas, e obviamente a lei do valor ou o inconsciente freudiano não eram questões para se votar em congressos. Nós concordamos em tarefas, em interpretações de eventos e tarefas políticas comuns. Há um grande espaço para debate.

Um partido revolucionário pode ser o portador de memória histórica, mas isso não o previne de deixar coisas passarem, como por exemplo ecologia. Como nós podemos agir hoje para não perder algo dos movimentos de minorias étnicas ou das revoltas nos subúrbios?

Toda continuidade pode levar a um certo tipo de conservadorismo. Pode também haver uma religião da memória. Para mim, memória política é necessário, e é ainda mais importante para os oprimidos, que não tem as mesmas instituições para perpetuar sua memória como as classes dominantes têm. Para as classes dominantes, a memória é passada adiante por toda uma série de instituições estatais, e tem-se uma memória das lutas, dos oprimidos, dos derrotados, que é levada para frente por organizações revolucionárias.

Nós temos de lidar com o que é novo, mas nós não lidamos com isso começando do nada. O problema real é saber se nós somos capazes de dar boas vindas ao novo sem fazer ele se encaixar na repetição do que nós já sabíamos. Esse é o desafio. Quando dizemos “nós atrasamos, perdemos o momento”, sim de novo. Mas precisar o momento, mesmo no amor, é um tanto raro.

Eu faço menos uso do termo vanguarda, porque a noção tem uma conotação militar que pode gerar confusão. É na verdade uma questão de metabolismo, de uma troca entre os movimentos sociais e as lutas políticas. Seria paradoxal ter uma certa ideia da vanguarda como sendo mais “avançada” do que as massas, e então repreender [a vanguarda] por não ter inventado o feminismo ou a ecologia. No fim das contas, é muito normal que isso venha em primeiro lugar de processos sociais em escala de massa, que aí então são expressas no nível político.

Do outro lado, hoje na França nós podemos ver muito bem a função específica do partido. É por isso que para mim existe um “retorno” (da política). Nós tivemos anos de resistências sociais desde o final dos anos 1980. Nós quase tivemos, devido à bancarrota das políticas de reforma e de revolução do século XX, ilusões na auto-suficiência dos movimentos sociais.

Eles são necessários, tudo começa ali, mas tudo não termina ali. Nós podemos ver as repetidas ondas de lutas na Argentina, na Bolívia. Se aquilo não levar a uma transformação em todos os níveis, incluindo o nível das estruturas de poder, isso se torna uma eterna, infernal, repetição. Você derruba três governos na Bolívia, dois na Argentina e no final das contas você ainda está onde você estava antes.

Então nós temos de colocar o problema nestes termos. Durante a campanha presidencial na França, nós iremos pedir aos movimentos sociais por uma posição sobre o feminismo, iremos pedir ao movimento ecologista por uma posição sobre energias alternativas. Durante um encontro em Brest, nosso candidato, Olivier Besancenot, é perguntado sobre sua posição sobre o tamanho das redes de pescar. Ele pode dizer: “Eu não sei tudo, eu não tenho opinião sobre isso”. Nós somos uma organização política que busca oferecer uma orientação ao país como um todo, mas as organizações políticas e os diferentes movimentos sociais são obrigados a sintetizar ao menos as respostas às grandes questões. Hoje, essa é a dificuldade que uma organização como ATTAC [Associação pela taxação de transações financeiras e por uma ação cidadã] está enfrentando. É muito bom que a ATTAC é uma organização unitária, uma organização para a educação popular, mas nós vimos claramente, quando chegamos ao referendo Europeu, que as forças mobilizadoras eram as organizações políticas.

Eu acredito que nós estamos em um ponto de virada, o momento de transição de um ciclo para outro. Nós vimos isso com as eleições alemãs. Veremos de novo com as eleições italianas, veremos o que acontece politicamente depois. Porque a resistência é uma pré-condição necessária mas não suficiente. Se nós queremos respeitar a autonomia dos movimentos de massa, então paradoxalmente organizações políticas são necessárias. Obviamente, nós precisamos criar uma cultura de pluralismo, de respeito, mas ao mesmo tempo nós temos de defender firmemente posições políticas.

Nós também estamos emergindo de um período onde a palavra chave é consenso. Defender suas convicções não é necessariamente autoritário. Se você fizer isso corretamente, é na verdade uma expressão de respeito pelos outros. Se você está convencido do que você pensa, você tenta convencer outros disso, porque eles não são mais estúpidos que você, eles podem chegar às mesmas conclusões.

Discutindo seriamente com outros, nós também corremos o risco de sermos convencidos por eles. Essa é de fato a lógica de um debate real. Neste ponto, Ernest Mandel não era nem um pouco sectário, mas ele era muito convencido e muito firme sobre suas próprias posições. Isso é melhor do que defender ideias pouco consistentes.

Meu primeiro encontro com Ernest Mandel foi aqui em Bruxelas: em uma reunião durante o maio de 68. A reunião foi proibida, mas eu não fui parado na fronteira, porque eu cheguei de Ardennes. [Daniel] Cohn-Bendit havia sido levado de volta. Já se tratava de um encontro plural, porque Cohn-Bendit era um anarquista; quanto a mim, eu não posso dizer que era um trotskista, eu era mais um guevarista.

O encontro foi cercado pela polícia, que foi bem sucedida em me pegar e me levar de volta à fronteira. Era meu primeiro contato com Ernest, mas foi efêmero, porque eu fui imediatamente expulso da Bélgica. Depois nós de fato nos encontramos em muitas ocasiões. Eu gostaria de dizer que o contato era bastante afetuoso e respeitoso. Nós nunca tivemos o culto à personalidade.

Talvez nós fôssemos arrogantes e insuportáveis, porque éramos jovens prepotentes. Aos 20 anos de idade, nós achávamos que havíamos iniciado uma revolução. Nós discutimos realmente bastante em pé de igualdade. Ernest não nos persuadiu inteiramente quando ele tentou nos convencer a nos juntar à IV Internacional sobre a base de uma apresentação bastante favorável de quais forças ela tinha. Bem, aquilo não era muito convincente, porque não havia muitas forças.

Nós fomos mais convencidos pelo raciocínio lógico: o mundo era – menos do que hoje – globalizado, uma Internacional era necessária, havia uma, não era o que queríamos, mas era bastante respeitável, não havia traído, lutou contra o stalinismo, então vamos lá – e ela irá se transformar conosco. Nós contribuiremos para sua transformação.

No fim das contas, Ernest subestimou a força dos argumentos lógicos. Isso era incomum para ele. Ele tinha grande confiança no poder das ideias, mas ele tentou me convencer na base da força material da IV Internacional, que era relativamente modesta. Mas mesmo assim funcionou.

Publicado na revista “International Viewpoint Online”, IV, No.376, Março 2006. Tradução de Pedro Barbosa. Revisão de Mariana Luppi.


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