Eleições na Andaluzia: irrompe a extrema-direita, alerta antifascista

Derrota do governo local do PSOE, crescimento do conjunto dos votos da direita e a irrupção de uma bancada de extrema-direita.

Israel Dutra 6 dez 2018, 21:54

No domingo, dia 03 de dezembro, a região de Andaluzia foi às urnas para renovar seu parlamento e sua junta de governo. O resultado foi uma impressionante derrota do governo local do PSOE, o crescimento do conjunto dos votos da direita e o mais grave, a irrupção de uma bancada de extrema-direita, com posições neofranquistas. Os resultados foram os seguintes: o PSOE teve 27,5% (33 deputados, reduzindo em 15 sua bancada); PP com 20,75% (26 deputados, sete a menos do que na última eleição); Ciudadanos obteve 18, 27%(21 deputados, mais que dobrando sua bancada); Adelante Andalucia, frente impulsionada por Podemos e IU fez 16, 18%( 17 deputados, retrocendo em 3 da atual soma das duas formações) e os impressionantes 11% de VOX( que totalizam 12 deputados).

Para nós, brasileiros, o fenômeno que assistimos na eleição andaluz tem gosto à repetição. Tal qual Bolsonaro, orientados por Bannon, os porta-vozes de VOX celebraram eufóricos os resultados. David Duke, líder da Ku Klux Klan americana, mandou saudação, como parte das comemorações mundiais da extrema-direita.

A Andaluzia é a região mais desigual e populosa da Espanha. São mais de 17% da população total. Suas fronteiras com Portugal e Gibaltrar, as raízes tradicionais e a rivalidade alimentada pelas classes dominantes entre os trabalhadores da Andaluzia e os catalães marcam as peculiaridades da região.

O Estado Espanhol funciona com o chamado “estatuto das autonomias”, que mesmo limitado diante das suas propostas iniciais, confere certo funcionamento próprio para as regiões, denominadas “Comunidades autônomas”, como é a Andaluzia. A escolha da junta depende de maioria parlamentar, que deve ser formada a partir de uma coalizão que precisa chegar a 55 deputados, sobre o total de 109, para indicar o novo governo.

A derrota do PSOE, abrindo o caminho para a hipótese de um novo governo do PP, com Cidadãos e VOX, sincroniza o cenário espanhol com a crescente realidade europeia: crise do “extremo-centro” e avanço eleitoral e parlamentar de partidos xenófobos, com motivações neofascistas.

O que é VOX?

VOX foi criado em 2013, por dissidentes das alas direitas do PP, diante das crises de corrupção e do que consideravam “recuos” do governo Rajoy, em temas como o estatuto das autonomias e o cessar-fogo com ETA. Seu líder é o basco Santiago Abascal, sociólogo, conhecido militante de extrema-direita, desde sua filiação ao PP.

O partido defende um programa muito afinado com outras formações da direita dura, também referida como “populismo de direita”. A principal proposta é transformar o estado espanhol num estado único, revendo as autonomias regionais, criando uma “grande nação espanholista”. Junto a isso seu arsenal programático ataca a auto-organização do movimento de mulheres: “acabar com as subvenções estatais para atividades de ONGs feministas”; ataca aos imigrantes, com propostas restritivas que chegam no nível de “Espanha para os espanhóis”.

No âmbito ideológico, o partido é claramente simpático a ideiais neofranquistas. Sonha com um retorno ao passado e quer negar os crimes da ditadura. Parte dos seus símbolos faz referências ao que foram as posturas falangistas. Sua relação internacional se vincula com Steve Bannon, com Salvini na Itália, Le Penn na França, Orban, nas novas articulações de extrema-direita. Bolsonaro no Brasil.

Depois de um começo inexpressivo, VOX cresceu em filiados, depois da onda de lutas soberanistas catalã, apelando para o sentimento xenófobo dentre as próprias nacionalidades do Estado Espanhol. A vitória da Andaluzia, onde nem mesmo os prognósticos mais otimistas previam o tamanho da votação, é um impulso para instalar o partido nacionalmente.

A Espanha se sincroniza com a extrema-direita mundial, avançando casas no tabuleiro do plano de Bannon, da formação da “internacional iliberal”, nome pomposo para o agrupamento de partidos extremistas de direita.

A falência do PSOE

O terremoto político andaluz tem várias determinações. Um dos pontos em comum com outros processos, europeus e mesmo o brasileiro, é a falência do social-liberalismo. No nascedouro da extrema-direita, se encontra a fonte de frustração com um projeto pretensamente alternativo, que deveria ser identificado com a esquerda.

Essa “esquerda entre aspas” é responsável também pelo crescimento da direita e de suas formas mais mórbidas. Diante da crise orgânica, o resultado de uma experiência malsucedida com o governo dito “socialista” levou a perda de apoio e base social.

O PSOE governou Andaluzia desde a primeira eleição após a democratização, que ocorreu no ano de 1982. Ali o PSOE conseguiu quase 53% dos votos. Apenas em 2012, o PSOE não foi o partido mais votado nas eleições regionais, quando assim mesmo conformou governo a partir de um pacto com Esquerda Unida. Como sintoma da sua crise, Susana Diaz, líder do PSOE, rompeu com o pacto anterior, para conformar um governo em coalizão com a direita(!) com Cidadãos, nas eleições de 2015. Esse foi o ato final do ciclo que se concluiu no último domingo.
O rechaço ao PSOE e sua colaboração com o regime monárquico foi a base das contestações institucionais nos últimos anos em todo Estado Espanhol. No caso andaluz, o elemento adicional é que o PSOE tem ali sua representação mais à direita, com Susana Diaz. O enfretamento aberto à direção ‘renovadora’ de Sanchez no Estado Espanhol caracterizou Susana como a legítima representante do mundo empresarial, midiático e financeiro nas filas da social-democracia espanhola.

A queda global do PSOE é grande. Envolto em escândalos de corrupção, problemas de austeridade, e crises internas levaram a um descrédito dentro da sua base eleitoral. Tal descrédito alimentou a organização da derrota, perdendo parte do seu eleitorado para o C’s, abrindo a outra porta para que VOX entrasse no parlamento andaluz.

Para ver melhor o que está acontecendo é preciso levar em conta que o principal partido da direita espanhola, o PP, também perdeu votos e deputados. O bipartidarismo foi um dos pilares de sustentação do regime monárquico-parlamentar surgido da transição de 1978, com o famoso pacto de Moncloa. Tal modelo foi questionado pela entrada em cena dos indignados, que como cunhou Podemos, tratavam ambos partidos como parte da mesma casta política. Chegaram a definir como “PPOE”, numa ironia alusiva a alternância de poder, dentro de um mesmo projeto capitalista para o Estado Espanhol. O retrato na Andaluzia é fiel. Somando as duas maiores expressões da casta, PSOE e PP, chegamos ao seguinte quadro: 2012 tiveram 80% dos votos. 2015, pouco menos de dois terços, chegando agora a cerca de 48% dos votos válidos.

Muitos eleitores de esquerda e de centro-esquerda não foram votar. A abstenção recorde, mais de 41% do padrão eleitoral, foi um castigo para o PSOE.

A questão que fica é porque Podemos não conseguiu capitalizar à esquerda o voto castigo ou da indignação? Dentro das múltiplas explicações, se pode afirmar que o impulso inicial de novidade, movido pelo espetacular ascenso das juventude urbana indignada, não conseguiu romper os caminhos do atual regime. A linha que Podemos teve no caso da Catalunha levou a ruptura de quase toda a sua seção regional. A aproximação com PSOE em muitos âmbitos, frustra aqueles que apostavam na denúncia da casta. No caso de Andaluzia, não foram poucos os dirigentes do Podemos que atacaram ou atuaram para desmobilizar a organização local do Partido, onde as posições anticapitalistas são hegemônicas. Pesou ainda o pêndulo à direita no conjunto da sociedade.

Contudo, a votação de Teresa Rodriguez, a cabeça da chapa de Adelante Andaluzia, como expressão de um linha anticapitalista, não pode ser menosprezada em um contexto que pese o revés eleitoral que o conjunto das esquerdas obteve. Disputar 20% dos votos, num cenário de fragmentação, manter uma bancada de 17 deputados e a prefeitura de Cadiz, não é pouco.

A apresentação de um “Podemos desbotado”, sem o fulcro e a radicalidade fundantes, como querem alguns setores que combatem à ala esquerda do partido, apenas joga mais confusão diante de um movimento de massas volátil, que vai fazendo suas experiências de forma intensa e por vezes, errática.

Adeus 15-M?

Como parte do mapa dos regimes que expressam crises orgânicas como fruto da crise econômica de 2008, o Estado Espanhol conheceu uma importante mobilização, vocacionada à ruptura que foi a mobilização dos indignados em 2011. A ação independente de setores de massas, com protagonismo da juventude, produziu um acontecimento conhecido como 15M, data da entrada em cena na Praça do Sol em Madrid. A mobilização colocou em xeque o regime.

Como expressão política dessa luta, nasceu uma experiência completamente nova, negando os velhos esquemas da esquerda ligada ao PC ou ao PSOE. O surgimento de Podemos foi um dos pontos mais avançados da reorganização de uma esquerda nas últimas décadas.

Com idas e vindas, a Espanha viveu um novo ciclo de lutas e experiências. Se abriram processos múltiplos, como expressão da crise de um regime, que “balançou” mas não caiu. O processo de retomada da luta soberanista na Catalunha, a organização setorial de lutas por pautas como habitação e saúde (as marés), a eleição de prefeituras alternativas das principais cidades, a entrada com muita força de movimento de mulheres como nos últimos atos de 08 de março, são marcas indeléveis do novo tempo histórico.

Contudo, como qualquer fenômeno, a articulação de um sujeito reativo não tardaria. Como resposta aos impulsos por mais democracia, pela soberania para os povos catalão, basco e galego, de direitos sociais e da luta das mulheres, a luta por dignidade para imigrantes a direita e a extrema-direita reposicionaram suas fichas.

Para uma parte da direita, tendo como base social a pequena burguesia, era preciso criar o “simulacro” do 15M, ao menos na sua via política. Apelando para traços do que se chamou tecnopolítica, o projeto de Cidadãos nasceu com o objetivo de obstruir o espaço de Podemos, que capitaliza pela esquerda o descontentamento com a casta, as instituições do regime, ou seja, a velha política. Nasceu como reação para impedir um ascenso de massas, na esfera eleitoral, de um Podemos capaz de construir uma “nova maioria” na sociedade. E ganhou peso com as hesitações da esquerda sobre o processo catalão, já que se firmou como uma direita moderna e liberal, contrária ao que chamou de secessão da Espanha.

Se C’s ocupa o espaço no terreno político-eleitoral, como forma mais radicalizada de dar uma saída reacionária para a crise do regime, VOX se alça contra os imigrantes, as lutas das nacionalidades e os direitos das mulheres. É um grito do passado para impor pela força sua visão atrasada, recuperando um ideário passadista e autoritário.

A questão é que o Podemos, como expressão maior do movimento do 15M, apesar do êxito enorme de ter se instalado no cenário político nacional, não reuniu forças nem teve uma estratégia consequente de romper à esquerda o regime de 1978. Como um impasse permanente, segue o interregno entre a caducidade do Pacto de Moncloa e um novo regime, mais democrático, que ainda não nasceu. A Espanha de 2018 sequer é republicana. Aparecem aí fenômenos como VOX, que utilizam os antigos fantasmas do franquismo, que não foram liquidados pelo regime de 1978, ao manter-se a instituição fundamental da Coroa, para assombrar as conquistas democráticas contemporâneas.

Sem superar o pacto de Moncloa, que completa 40 anos nessa semana, não se pode superar o impasse que está polarizando a nova realidade política. A forma como Podemos vai responder a nova crise também diz sobre quais serão as perspectivas de superação da ‘velha política’. Apelar a novos pactos, com um PSOE que governou e é rejeitado pela opinião pública, é repetir os velhos erros. A saída para a crise política está numa outra dimensão da luta política.

Há a irrupção do neofranquismo com peso de massas para dar cabo de uma solução reacionária. No outro polo, há que se apoiar nas lutas que crescem em todo Estado Espanhol, como assistimos as greves da Amazon em Madrid, a greve dos correios e a nova onda de lutas contra a austeridade na Catalunha e no País Basco.

A prova francesa ou como combater a extrema-direita

O projeto da direita e dos neofascistas é utilizar na forma e conteúdo de uma guerra social contra os trabalhadores, suas ferramentas, organizações e conquistas. Essa é, grosso modo, a sua única estratégia de longo prazo. Para seguir ajustando, num mundo contraditório e em ebulição, vão precisar atacar mais e mais direitos.

A experiência pode ser feita, com contradições dentro do seio da própria direita. Valls, candidato de C’s por Barcelona já disse que não admite coalizão com setores fascistas, refletindo parte da base liberal que gira à direita, mas não dá suporte a discursos tão reacionários. Do lado do movimento de massas, a juventude já respondeu de forma espontânea. Protestos com dezenas de milhares em Sevillha, Granada e Cadiz, repudiando o neofranquismo com o slogan de “não passarão”.

O alerta é real, o perigo existe e combatê-lo é uma necessidade. São três grandes tarefas que o movimento tem pela frente: organizar a luta antifascista, apresentar uma alternativa radicalmente nova e disputar os rumos das ações, desorganizadas e confusas, do movimento de massas.

Para organizar a luta antifascista, a frente única é uma tática correta, sem perder de vista o diálogo com setores da classe que votam na direita por confusão ideológica. Defender as liberdades democráticas, bem como não entregar pautas caras como a defesa dos direitos de imigrantes e refugiados. E unir setores sociais diversos, como estudantes, os coletivos feministas, os batalhões mais pesados da classe trabalhadora e as camadas médias.

Para lograr uma unidade ampla entre setores diversos, é preciso manter e aprofundar a identidade anticapitalista e antissistema, rompendo com as travas para acabar com o regime monárquico. Isso quer dizer levantar um programa de caráter transicional, democrático e radical, com a defesa de temas como o direito à autodeterminação no caso catalão, galego e basco; a defesa de um novo modelo democrático de organização que saia dos limites da democracia forma; de direitos sociais para a maioria da população, enfrentando os bancos e os grandes conglomerados.

E como medida da luta política, encarar os novos e sinuosos movimentos sociais para disputá-los. A “prova francesa”, onde um setor sem tradição de organização sindical ou de esquerda como os Coletes Amarelos protagonizou uma luta de barricadas de caráter histórico, é um dos caminhos para evitar a apropriação do descontamento popular pela direita populista. Ainda que Le Penn esteja disputando os rumos do movimento, o papel da esquerda radical não pode ser a omissão, senão atuar nas contradições da consciência, para unir as diferentes tradições de luta dos setores explorados.

A condição primeira da esquerda radical para disputar uma maioria social, diante das ameaças fascistas, é colocar-se ao lado do direito elementar de revolta contra o status quo. Lições da França, mas que seguramente servem à Espanha e também ao Brasil de Bolsonaro.


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Pedro Micussi