“Yankees acima de tudo”: Sobre a visita de Bolsonaro a Trump

A ida para os Estados Unidos demonstrou a face mais visível do governo Bolsonaro: despreparo e submissão aos interesses dos grandes e poderosos do mundo.

Israel Dutra 22 mar 2019, 11:52

A visita de Bolsonaro aos Estados Unidos entrou no rol das humilhações nacionais. Conseguiu superar as fatídicas cenas de Celso Lafer, que retirou seus sapatos para ser inspecionado antes de entrar em território estadunidense.

Os três dias que Bolsonaro e sua comitiva passaram nas terras americanas foram suficientes para quebrar acordos históricos, como a questão dos vistos, baseados no princípio da “reciprocidade”.

A comitiva chefiada por Bolsonaro, seu filho, Eduardo, e Paulo Guedes, contou com a presença do ministro Ernesto Araújo, além do General Augusto Heleno, Sergio Moro, o assessor especial Filipe Martins, Tereza Cristina, titular da pasta de Agricultura e o Ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes.

Depois de afirmar a “emoção” de pisar em terras americanas, a comitiva louvou a “coca-cola, Jeans e Disney”, nas palavras de Guedes. A imprensa teve que noticiar, ainda, as manifestações de brasileiros, em várias cidades dos Estados Unidos, contra Bolsonaro e a extrema-direita. Virou notícia a incomoda pergunta na FOX sobre os vínculos de Bolsonaro com as milícias investigadas na morte de Marielle Franco.

Ao contrário do efeito esperado, Bolsonaro não saiu fortalecido de seu giro americano. Em meio a muitas contradições e dificuldades em seu governo, as dúvidas sobre seu desempenho pairam por todo lado, mesmo em analistas que não são de esquerda ou críticos. Para piorar sua situação, a semana terminou com a pesquisa de opinião que lhe aponta uma queda de 15 pontos nos índices positivos de avaliação do governo. A isso se soma a prisão do ex-presidente Temer, o conflito entre poderes e atores como o legislativo e judiciário, a insegurança quanto à aprovação da reforma previdenciária, agregando crises na situação política. A ida para os Estados Unidos demonstrou a face mais visível de seu governo: despreparo e submissão aos interesses dos grandes e poderosos do mundo.

A desconstrução da nação

Bolsonaro afirmou que diante da dificuldade em construir realizações, sua tarefa seria priorizar a “desconstrução”. Sem travas na língua, afirmou que iria modificar o quadro que recebeu dos governos anteriores. Crítico a toda forma de “comunismo”, se alinhou a Trump e seu entorno como um fã encontra seu ídolo maior. Mesmo com as inúmeras contradições, como os desmentidos que a ala militar tratou de fazer quando do retorno da comitiva, por exemplo, no caso da Venezuela, Bolsonaro avançou com seu plano de desconstrução da nação. O desmonte está em curso.

O principal acordo selado diz respeito à entrega da Base Espacial de Alcântara, no Maranhão. Quase vinte anos depois da pressão popular rejeitar a proposta durante os anos FHC, Bolsonaro dá um salto de qualidade na entrega da riqueza e do patrimônio nacional. Polo da tecnologia espacial, o Centro de Lançamento de Foguetes ficaria sob responsabilidade direta da NASA e do governo americano, que controlaria, inclusive, a entrada e saída de materiais.

A destruição da soberania veio a galope na visita à CIA. A primeira visita oficial de um chefe de Estado brasileiro à agência mais importante de espionagem e ingerência política do mundo contraria todos os preceitos da nossa diplomacia. Responsável pela organização de golpes de estado e implantação de ditaduras na América do Sul e Central, a própria CIA levou a uma crise diplomática durante o governo Dilma, quando vieram a público as atividades de espionagem contra empresas brasileiras.

O discurso do presidente Bolsonaro se choca contra qualquer tipo de nacionalismo ou patriotismo de sua base eleitoral e social. O slogan “Brasil acima de tudo” foi deixado de lado, antes de completar cem dias de governo, durante a tour dos Estados Unidos.

Quanto às empresas estatais, estratégicas ou não, o plano do governo, com ministro Guedes na vanguarda, é o desmonte e a liquidação. A venda dos aeroportos foi o passo inicial da verdadeira “feira de privatizações”, voltada para a internacionalização do controle das nossas áreas estratégicas, da entrega da totalidade do patrimônio estatal.

Olavo redobrou a aposta

A janta com Olavo de Carvalho teve um sentido mais geral. Se fortaleceram os setores ligados à extrema-direita ideológica, com um maior protagonismo de Eduardo Bolsonaro, o 03 do clã, que assume o controle da comissão de Relações Exteriores na Câmara dos Deputados. Um dos momentos de constrangimento na visita a CIA foi o fato do ministro Ernesto Araujo ter ficado de fora para que apenas Eduardo e seu pai entrassem. Eduardo é o responsável direto por articular com Olavo e Bannon os espaços do fórum do Foz do Iguaçu, a nova internacional que a extrema-direita está gestando em nível mundial.

Sentado à esquerda de Bolsonaro, no jantar oferecido a Olavo, Steve Bannon sorriu e confraternizou na presença de representantes da extrema-direita e grupos conservadores alinhados com Trump.

Mesmo diante das turbulências, o clã Bolsonaro deixou exposta sua predileção, entre as diferentes alas do governo, por Olavo e seus discípulos. E o astrólogo/filósofo não deixou por menos: atacou ao vice, Mourão, chamando de idiota e fez previsões catastróficas, caso Bolsonaro não retifique seu rumo. Chegou a afirmar que o governo não duraria seis meses do “jeito que está”. O presidente retribuiu renovando os votos de apoio ao ministro Velez, atravessado por crescentes rumores de demissão.
Contudo, o núcleo “ideológico” começa ter suas próprias fissuras. Silas Malafaia ficou furioso com a política de liberação dos vistos e declarações contra os brasileiros em situação irregular no estrangeiro. A pugna dentro do ministério da educação obedece à lógica de disputa entre evangélicos e olavistas.

Há uma grande preocupação nos outros setores do governo que as movimentações do núcleo ideológico possam trazer grandes problemas para o comércio exterior. A tensão permanente com as medidas que ameaçam o fluxo comercial tanto com a China, nosso principal comprador, quanto com os países da Liga Árabe, por conta da ventilada mudança da embaixada para Jerusalém, gera instabilidade e divisão nas fileiras do próprio governo.

Grandes entregas, pequenas promessas

Quando se afirma que o Brasil deixou para trás qualquer critério de reciprocidade, não é apenas força de expressão. Um olhar mais detido sobre a relação de troca entre os Estados Unidos e o Brasil, no âmbito dos negócios e acordos firmados, deixa desnudado o tamanho da submissão. Entregamos muito em troca de apenas algumas promessas vagas.

Um dos principais pontos do acordo, anunciado na coletiva entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, foi a liberação da isenção das tarifas de importação do trigo americano. Assim, os Estados Unidos poderiam exportar 750 mil toneladas do cereal ao ano ao Brasil sem pagar a tarifa de 10% estabelecida para compras do produto fora do Mercosul. A contrapartida foi a promessa de reconsideração sobre o consumo de carne brasileira nos Estados Unidos, que despencou após os resultados da Operação Carne Fraca. O problema da isenção das tarifas conflita diretamente com a Argentina, principal parceiro do Brasil na compra e venda do produto. Parte da política de liquidar o Mercosul, Bolsonaro abriu o mercado de trigo, não se preocupando com retaliações ou desencontros com os vizinhos sul-americanos.

A segunda grande entrega foi o abandono da condição alcançada na Organização Mundial de Comércio (OMC), justamente num período de guerras tarifárias e comerciais, por toda parte. Abandonar a condição especial adquirida nos últimos anos sob a promessa vaga de ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) é um negócio, no mínimo, duvidoso. O enfraquecimento do Brasil na queda de braço das exportações e comércio exterior pode gerar a uma exposição ainda maior da indústria nacional aos conflitos entre as grandes potências. Assim como a popularidade do presidente, o comércio exterior pode estar começando a descer ladeira abaixo.

Como já citado, a participação da reunião de portas fechadas com a CIA, sem qualquer protocolo de segurança nacional, gerou insatisfação nos próprios círculos do Itamaraty.

Adepto da política linha dura contra os imigrantes, Bolsonaro elogiou Trump, descartou os tratados de reciprocidade e acabou com qualquer exigência de vistos para norte-americanos entrarem no Brasil. Não bastasse tal medida unilateral, Eduardo Bolsonaro ainda disse que os brasileiros ilegais eram uma “vergonha”. A rebelião que causou na própria base governista pode levar até a derrubada da medida no parlamento, visto que setores como Rodrigo Maia já anunciaram a contrariedade à medida. Bolsonaro aplaudiu e apoiou Trump na sua perseguição contra imigrantes latino-americanos e a construção do muro na fronteira com o México.

Os riscos maiores, contudo, dizem respeito às relações comerciais com a China e a adesão ao discurso belicista contra a Venezuela. Apesar de não ter aparecido como um entrave ao comércio com os chineses, a linha dos bastidores foi a preocupação com implantação no Brasil da tecnologia de celulares do sistema 5G, tendo à frente a temida transnacional chinesa Huawey. A aparente calma no assunto das relações comerciais pode mudar a qualquer momento, diante da luta, ora aberta ora velada, de interesses entre Trump e a China. O indicativo de que lado Bolsonaro ficará não pode ser mais evidente.

E no tema Venezuela, a declaração brasileira foi de apoio ao cerco dos Estados Unidos, onde Trump chegou a dizer que não descartava nenhuma opção. Bolsonaro sabe que qualquer ação abrupta na fronteira colocaria o país numa verdadeira aventura militar. O fracasso da primeira investida da oposição encabeçada por Guaidó, envolvendo as regiões de fronteira foi um revés para o chamado “Grupo de Lima”. As seguintes declarações do porta-voz, de Mourão e do comando das forças militares primaram pela cautela, antes que qualquer outra coisa.

Regressão neocolonial ou segunda independência

O nível de submissão na relação com os americanos é muito superior ao dos acordos anteriores como o do MEC/USAID ou outras experiências. Coloca um problema muito perigoso: Bolsonaro anuncia que há um novo lugar para o Brasil no sistema internacional de países.

O desmonte do Mercosul está em rápido desenvolvimento. A visita ao Chile vai dar asas ao novo projeto, conhecido como “Prosur” para contemplar a direita regional, em parceria com Piñera.

O pacote de medidas inclui ataques ao corpo técnico do Itamaraty como já ocorre nos primeiros meses de governo, com perseguição e demissão de embaixadores e especialistas. A hegemonia das relações internacionais, dentro do governo, precisa ser mantida com os setores olavistas. Esse é o plano para regressão colonial acelerada, tanto no âmbito político quanto no estratégico e econômico. Ao gosto da banca, a desnacionalização dos setores estratégicos para a logística, a produção e o controle dos principais serviços, é feita de forma veloz e agressiva.

A gravidade do alinhamento a um modelo de governo despótico como Trump e seus aliados Orban, Salvini, entre vários, impõe mais violência nas relações diplomáticas. Trump assiste a um crescente questionamento nos Estados Unidos, enfrentando o vigor de setores organizados da sociedade que não aceitam seu programa. A extrema-direita pode e deve ser isolada e derrotada. Trump precisa atacar o “fantasma do socialismo” para polarizar e coesionar forças em busca da reeleição em 2020. No Brasil, a onda da extrema-direita tem características próprias. O começo do governo, com sua popularidade em queda antes de completar cem dias, indica os limites da aceitação popular da tentativa de um modelo de “trumpismo dos trópicos”.

O problema da soberania nacional está recolocado para toda uma geração. Os anos de governo Lula e Dilma retiraram da agenda a luta por soberania nacional, uma pauta cara para a esquerda socialista. Retomar com força essa bandeira, começando por organizar a luta com o tema de Alcântara, envolvendo comunidades quilombolas locais, representações institucionais do estado do Maranhão e setores de ponta da ciência e tecnologia para levar a luta para o seio do povo. Discutir o problema da soberania nacional no terreno econômico, contrapondo o ultraliberalismo do modelo de Guedes, forjado pela Escola de Chicago e inspirado no Chile de Pinochet. As tarefas nacionais só podem ser agarradas de forma consequentes pelos socialistas. As tarefas de independência nunca foram plenamente realizadas pelos representantes da burguesia e os setores médios. O endividamento externo, com o saque que o FMI historicamente faz com os países atrasados, volta a ser um tema central na Argentina. Associar a luta por uma verdadeira segunda independência nacional com a luta por direitos é o papel da esquerda e do PSOL. No terreno da luta de classes e no parlamento, onde temos uma posição privilegiada como bancada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

Por agora, ganhar a consciência popular para as tarefas de independência e defesa da soberania, passa por desmascarar o falso nacionalismo da direita brasileira. E evidenciar uma atitude ativa nas questões como a da defesa do espaço territorial de Alcântara, um rechaço a ingerência dos Estados Unidos e da CIA na vida política nacional, a defesa intransigente do princípio da não intervenção no caso da vizinha Venezuela. Tais temas devem se transformar em campanhas massivas para organizar a luta do povo, não apenas contra Bolsonaro, mas a defesa dos interesses da ampla maioria de trabalhadores do Brasil.

Novas contradições no terreno da geopolítica mundial se avizinham. Defender as tarefas democráticas e de soberania nacional são chave para os socialistas ganharem a maioria do povo para uma consciência anti-imperialista.


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