A apropriação de conhecimentos e os lucros da Big Pharma na era do coronavírus

A apropriação de conhecimentos e os lucros da Big Pharma na era do coronavírus

Parte 2 de A destruição e o açambarcamento dos bens comuns.

Éric Toussaint 30 nov 2021, 15:54

Publicado originalmente em: https://www.cadtm.org/A-apropriacao-de-conhecimentos-e-os-lucros-da-Big-Pharma-na-era-do-coronavirus

O conhecimento, as descobertas científicas e os processos técnicos devem constituir um bem comum da humanidade. No entanto, quanto mais o capitalismo se expandiu, mais favoreceu a apropriação privada de conhecimentos e técnicas, nomeadamente através do sistema de patentes. Não só o grande capital não partilha o conhecimento, como se apropria dele e depois cobra ao público por ele. Monopoliza os resultados da pesquisa realizada por universidades ou centros públicos de investigação. Também patenteia sementes que são o resultado de múltiplas seleções feitas ao longo dos séculos pelos agricultores. Por exemplo, a empresa agroindustrial Del Monte patenteou tomates produzidos pelas populações andinas e depois pretende cobrar-lhes as sementes.

Quando a Organização Mundial do Comércio foi criada em 1995, o Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) (em inglês, TRIP’s, Trade Related Intellectual Property Rights) permitiu às grandes empresas capitalistas reforçar o seu poder. Abrange áreas tão diversas como programação informática e concepção de placas de circuitos eletrônicos, produtos farmacêuticos e culturas transgênicas. Estabelece normas mínimas para patentes, direitos de autor, marcas registadas e segredos comerciais. Estas normas derivam da legislação dos países industrializados e, portanto, impõem o tipo e o nível de proteção destes países a todos os membros da OMC.

São muito mais rigorosos do que a legislação em vigor na maioria dos países em desenvolvimento antes da sua adesão à OMC e entram frequentemente em conflito com os seus próprios interesses e necessidades. É possível forçar um país a implementar o Acordo ADPIC da OMC através do sistema integrado de resolução de litígios. Na prática, isto significa que se um país não cumprir as suas obrigações relativas aos direitos de propriedade intelectual, podem ser impostas sanções comerciais, o que constitui uma séria ameaça.

O FMI, o Banco Mundial e as principais potências utilizaram todo o seu peso, inclusive através da sua posição de credores, para pressionar os países em desenvolvimento recalcitrantes a cumprir o ADPIC. Além disso, a UE, os EUA e outros países ricos asseguraram acordos bilaterais que oferecem uma proteção de patentes ainda mais rigorosa do que as «normas mínimas» estabelecidas no ADPIC: são os «ADPIC Mais». No Comité ADPIC da OMC, desde 2020, várias grandes potências, incluindo a UE, a Grã-Bretanha e o Japão, têm-se oposto à liberação temporária das patentes de várias vacinas contra o coronavírus (ver abaixo). No que tange à administração Biden, que anunciou em maio de 2021 que era a favor da liberação temporária das patentes, não fez até agora nada de tangível para fazer avançar a questão. A principal razão é que estas patentes são a fonte de lucros gordos para as grandes empresas farmacêuticas privadas. São protegidos e favorecidos por governos que lhes permitem abusar da sua posição (ver secção 3).

Como Peter Rossman escreveu: «As empresas farmacêuticas financiadas devem ser entendidas como organizações que gerenciam as suas operações em termos de um conjunto de ativos financeiros e não físicos. O seu principal ativo financeiro são as patentes, que geram 80 % dos seus lucros».

Ele acrescenta: «Em 1980, os EUA aprovaram uma lei que permitia às pequenas empresas e universidades patentear invenções desenvolvidas com fundos públicos. Anteriormente, estas invenções revertiam automaticamente para o governo, que as licenciava a fabricantes genéricos, ou passavam diretamente para o domínio público. As universidades e startups passaram a ser integradas num complexo de conhecimento liderado por empresas. A ’transferência de tecnologia’ transformou a pesquisa pública em patentes privadas» [1]. Rossman continua: «as empresas têm-se tornado cada vez mais financeirizadas, reduzindo as despesas ligadas à capacidade de produção, os empregados e mesmo a P&D, a fim de libertar dinheiro para distribuir aos acionistas sob a forma de dividendos e através de recompra de ações [2]. Para duas das maiores empresas farmacêuticas, Pfizer e Johnson and Johnson, os gastos ligados à recompra de ações e dividendos entre 2006 e 2015 excederam o seu rendimento líquido total».

«Voltaram-se para o mercado de empréstimos para financiar os crescentes rendimentos dos investidores e executivos, utilizando os seus ativos de propriedade intelectual como garantia». Durante este período 2006-2015, a Pfizer devolveu 131 mil milhões de dólares aos seus acionistas enquanto gastava 82 mil milhões de dólares em P&D [3].

 À luz da pandemia do coronavírus

Desde a propagação global da pandemia, o debate sobre patentes tornou-se central. Na OMC, 62 países, liderados pela Índia e África do Sul, propuseram que fossem dispensadas as obrigações dos estados membros ligadas ao acordo ADPIC, que se aplica a todos os produtos necessários para a prevenção, contenção e tratamento da covid-19. A proposta continua bloqueada na OMC, em parte devido à recusa da Comissão Europeia em seguir o parecer do Parlamento Europeu, que votou duas vezes a favor da liberação das patentes de vacinas [4].

Uma dose dupla de desigualdade

Trate-se de uma questão vital, literalmente, porque se as patentes forem mantidas, uma proporção muito grande da população do Sul global que queria ser vacinada não terá acesso às vacinas em tempo útil. Em agosto de 2021, menos de 2 % dos 1,3 mil milhões de pessoas de África estavam totalmente vacinadas, em comparação com mais de 60 % das populações da Europa Ocidental e da América do Norte. Desde junho de 2021, um quarto das 2,295 mil milhões de doses aplicadas a nível mundial foram aplicadas nos países do G7, onde residem apenas 10 % da população mundial. De acordo com dados recolhidos por um grupo de pesquisadores da Universidade de Oxford, em setembro de 2021, apenas 2,1 % da população dos 27 países de baixa renda receberam uma dose de uma vacina anti-covid [5]. Cerca de 700 milhões de pessoas vivem em países de baixa renda.

De acordo com a Amnistia Internacional, menos de 1 % da população recebeu duas injeções de vacina nestes mesmos países. Ainda segundo a Amnistia Internacional, que publicou um relatório em 22 de setembro de 2021, das 5,76 mil milhões de doses injetadas a nível mundial, 0,3 % foram para países de baixa renda [6]. Neste relatório sugestivamente intitulado «Uma Dose Dupla de Desigualdade»), a Amnistia Internacional denuncia o comportamento das 6 grandes empresas privadas que produzem a maioria das vacinas nos países ricos (AstraZeneca, BioNTech, Johnson & Johnson, Moderna, Novavax e Pfizer). Segundo a Amnistia: «Seis empresas controlando a distribuição da vacina covid-19 alimentam uma crise dos direitos humanos sem precedentes, ao se recusar a renunciar aos seus direitos de propriedade intelectual e a partilhar a sua tecnologia, e a maioria delas também se abstendo de fornecer vacinas aos países pobres» [7].

O consórcio COVAX não é a resposta

Os governos do Sul que pretendam permitir que as suas populações sejam vacinadas terão de se endividar, porque as iniciativas do tipo COVAX são totalmente inadequadas e consolidam a influência do sector privado. A COVAX é coliderada por três entidades: 1. a Aliança GAVI (Aliança Mundial para Vacinas e Imunização), que é uma estrutura privada com participação de empresas e estados; 2. Coligação para Promoção de Inovações em Prol da Preparação para Epidemias (CEPI), que é outra estrutura privada com participação de empresas capitalistas e estados; e 3. a OMS, que é uma agência especializada da ONU.

As empresas que financiam e influenciam a GAVI incluem a Fundação Bill & Melinda Gates, a Fundação Rockefeller, Blackberry, Coca Cola, Google, a Federação Internacional de comercialização de produtos farmacêuticos (International Federation of PharmaceuticalWholesalers), o banco espanhol Caixa, o banco UBS (o maior banco privado da Suíça e o maior banco de gestão de riqueza do mundo), as empresas financeiras Mastercard e Visa, o fabricante de motores de aviões Pratt e Whitney, a multinacional americana de bens de consumo Proctor & Gamble (higiene e beleza), a multinacional holandesa-britânica de alimentos Unilever, a empresa petrolífera Shell International, a empresa sueca de streaming de música Spotify, a empresa chinesa TikTok, a empresa de automóveis Toyota, etc. [8]

A segunda estrutura que colidera a COVAX é a Coligação para Promoção de Inovações em Prol da Preparação para Epidemias (CEPI) que foi fundada em 2017 em Davos, numa reunião do Fórum Econômico Mundial. Entre as empresas privadas que financiam e influenciam fortemente a CEPI encontra-se ainda a Fundação Melinda e Bill Gates, que investiu 460 milhões de dólares.

A composição da iniciativa COVAX fala muito sobre a abdicação dos Estados e da OMS a assumir suas responsabilidades na luta contra a pandemia em particular e na saúde pública em geral. Isto faz parte da onda neoliberal que tem varrido o mundo desde os anos 80. O secretariado-geral da ONU, como também as diretorias das agências especializadas do sistema da ONU (por exemplo, a OMS para a saúde e a FAO para a agricultura e alimentação), avançaram fortemente na direção errada durante os últimos 30-40 anos, confiando cada vez mais na iniciativa privada liderada por um pequeno número de grandes empresas com alcance global. Os chefes de Estado e de governo seguiram o mesmo caminho. Na verdade, pode se dizer que tomaram a dianteira. Ao fazê-lo, aceitaram que as grandes empresas privadas sejam associadas às decisões e favorecidas nas escolhas que são feitas [9].

embramos que há mais de 20 anos que os pesquisadores da saúde e os movimentos sociais propõem que as autoridades públicas invistam somas suficientes para produzir medicamentos e vacinas eficazes contra os vários vírus de «nova geração» ligados ao aumento das zoonoses. A esmagadora maioria dos Estados preferiu contar com o sector privado e permitiu-lhe ter acesso aos resultados da investigação realizada por organismos públicos, enquanto teria sido necessário investir diretamente na produção de vacinas e tratamentos como parte de um serviço público de saúde.

Como já vimos, a iniciativa COVAX não é em nada uma solução. A COVAX prometeu fornecer, até o final de 2021, 2 mil milhões de doses aos países do Sul que as solicitaram e que estão associados à iniciativa. Na realidade, no início de setembro de 2021, apenas 243 milhões de doses tinham sido enviadas [10]. Como resultado, a meta de 2 mil milhões de doses é adiada para a primeira metade de 2022.

Por exemplo, a União Europeia, que se tinha comprometido a entregar 200 milhões de doses aos países mais pobres até ao final de 2021, apenas enviou«cerca de vinte milhões», como reconheceu Clément Beaune, secretário de Estado dos Assuntos Europeus do Governo francês, na terça-feira 7 de setembro [11].

O C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool, em português Plataforma de Aceso às Tecnologias deCombate ao Covid-19) é outra iniciativa decepcionante da OMS. O C-TAP associa os mesmos atores que o COVAX.

No entanto, até à data, nenhum fabricante de vacinas partilhou patentes ou know-how através da C-TAP [12].

Face ao fracasso da COVAX e da C-TAP, os signatários do Manifesto «Acabemos com oSistemaPrivado dePatentes!», lançado pelo CADTM, em maio de 2021, têm razão em afirmar que: «Iniciativas como COVAX ou C-TAP fracassaram miseravelmente não só por sua insuficiência, mas, acima de tudo, porque respondem ao atual sistema fracassado de governança global com propostas em que países ricos e as multinacionais, muitas vezes na forma de fundações, procuram reconfigurar a ordem mundial a partir de seus caprichos. A filantropia e as crescentes iniciativas público-privadas não são a solução. Muito menos diante dos atuais desafios globais e em um mundo dominado por Estados e indústrias pautadas pela lei única do mercado e do lucro máximo» [13].

Voltaremos às alternativas na terceira parte desta série.

As enormes receitas da Big Pharma

As receitas brutas e os lucros líquidos que as grandes empresas farmacêuticas estão realizando com as patentes são colossais. De acordo com o relatório da Amnistia acima citado, três das seis maiores empresas de vacinas contra a Covid, BioNTech, Moderna e Pfizer, irão acumular 130 mil milhões de dólares US em receitas até ao final de 2022. Isto é duas vezes e meia o produto interno bruto anual da República Democrática do Congo, que tem uma população de quase 100 milhões de habitantes. Outra comparação: 130 mil milhões de dólares é 20 vezes o orçamento da RDC para o ano 2021. Esta quantia de 130 mil milhões de dólares equivale a 2/3 do orçamento total da União Europeia para o ano 2021. 130 mil milhões é 10 vezes o orçamento de saúde da Índia para o ano fiscal de 2020-2021 [14].

Grosso modo, o custo de produção de uma dose de vacina Covid varia entre 1 e 2 euros, enquanto é comprada pelas autoridades públicas do Norte a um preço que representa entre 10 e 20 vezes este montante [15]. A Pfizer cobra ao Estado de Israel 23 euros por uma única dose e à União Europeia 19,50 euros.

De notar que o preço pago pela Comissão Europeia por uma dose de vacina Pfizer aumentou de 15,5 para 19,5 euros entre o final de 2020 e o verão de 2021. O preço do Moderna passou de 19 euros para 21,5 euros [16]. Tudo isto enquanto os custos de produção estão diminuindo. De facto, à medida que as quantidades produzidas aumentam, o custo unitário de produção diminui.

A indústria farmacêutica quer-nos fazer acreditar que as suas patentes e lucros são essenciais para a pesquisa e a saúde humana. Mas o julgamento de Pretória em 2001 mostra o oposto! A indústria farmacêutica está preparada para assistir a centenas de milhares de mortes para defender os seus lucros e patentes. A África do Sul aprovou uma lei em 1997 que permitia importações paralelas, licenças obrigatórias ou substituição genérica em resposta à emergência da SIDA. As 39 maiores empresas farmacêuticas do mundo atacaram esta lei em 1998. Argumentaram que violava os direitos exclusivos conferidos pelas patentes. Uma mobilização intensa de organizações sul-africanas, incluindo a TAC, Treatment Action Campaign, veiculada em todo o mundo através de campanhas de petição e denúncia, em particular por Médicos sem Fronteiras, Aides e Act-Up, mostrou que 400.000 sul-africanos tinham morrido de VIH desde que a lei tinha sido bloqueada. Perante o escândalo mundial, os laboratórios foram obrigados a retirar a sua queixa no decorrer do processo. Nesta ocasião, o direito à saúde prevaleceu sobre o direito de patentes [17]. Um exemplo a seguir nestes tempos de covid.

Em breve: Parte 3 Coronavírus: Bens comuns mundiais contra Big Pharma

A parte 3 tratará dos seguintes pontos:

- A maior parte da pesquisa foi financiada e realizada pelo poder publico

- O exemplo de Moderna, campeã da evasão fiscal

- Governos poderiam facilmente produzir bilhões de doses de vacinas

- Lutar por quais reivindicações

Tradução de Alain Geffrouais


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