A revolução alemã e a morte da esquerda 
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A revolução alemã e a morte da esquerda 

A provocação feita por Vladimir Safatle e o recente livro de Luciana Genro indicam perspectivas importantes para a ação revolucionária atual

Bruno Magalhães 15 mar 2024, 11:45

As recentes declarações de Vladimir Safatle sobre a morte da esquerda, explicada pelo abandono da radicalidade e pela aceitação no papel de gestão do capital, geraram respostas entre os defensores da tal vitalidade da esquerda que quase sempre destacam os resultados eleitorais como medida, em exemplos como a vitória de Lula em 2022 ou a força de Boulos nas próximas eleições paulistanas. Ignorando o eixo da provocação de Safatle, demonstraram os limites do próprio horizonte de expectativas enquadrado na lógica institucional.

Em artigo recente sobre a obra de Lênin, o filósofo tcheco Michael Hauser utiliza da formulação de Alain Badiou para definir o dirigente russo como o “político do infinito”, ressaltando a diferença irreconciliável entre a ação revolucionária de Lênin e a “política da finitude” governada pelas regras limitadas do Estado burguês. Enquanto a primeira aposta na ruptura com o Estado de classe, portanto numa ação política permeada de riscos e incertezas, a segunda se restringe aos procedimentos estatais e suas previsibilidades.

Por mais contraditório que pareça, é justamente perante uma crise profunda que esta política das rupturas e incertezas apresenta mais possibilidades concretas frente aos fracassos consecutivos da repetição institucional. A morte da esquerda, declarada por Safatle, trata do abandono dessa postura disruptiva em troca de medidas de manutenção do Estado, independente de quais sejam as justificativas para isso.

É nesse debate que o novo livro de Luciana Genro, A Alemanha da Revolução ao Nazismo: reflexões para a atualidade, tem tanta importância. E, não por acaso, o prefácio da obra é assinado por Safatle. Luciana e Safatle são parte daqueles que recusam a política da finitude que hoje encerra grande parte das esquerdas nas mesmas amarras da institucionalidade que levaram à terrível derrota da classe trabalhadora alemã no início do século XX.

A derrubada revolucionária do Segundo Reich, a ascensão da República de Weimar, o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, o crescimento vertiginoso tanto dos comunistas como dos nazistas, a derrota do Outubro alemão e a chegada de Hitler ao poder foram capítulos de uma história pouco conhecida que Luciana retoma de forma bastante didática. Ao contrário das leituras mecânicas sobre a ascensão do nazismo na década de 1930, o livro vai além e encontra suas raízes na derrota dos processos revolucionários alemães mais de 10 anos antes, demonstrando como tudo estava em jogo e a Revolução Alemã – a ruptura com as certezas estatais do momento – foi uma possibilidade concreta quase alcançada.

E, se esta possibilidade não se realizou, Luciana não deixa dúvidas sobre o papel nefasto da social-democracia que repetidas vezes capitulou à burguesia imperialista, servindo de gestora do capital enquanto os horizontes radicais de transformação eram deixados cada vez mais nas mãos dos fascistas. Enquanto os governos do SPD (o partido social-democrata alemão) prendiam e assassinavam  comunistas para defender a república de Weimar, o “nacional-socialismo” surgia como alternativa de ruptura contra um regime político falido.

Tal como hoje, tratava-se de uma falsa ruptura porque o objetivo final do fascismo sempre é a garantia dos interesses da alta burguesia através da violência. E logo após a vitória nazista em 1933, uma das primeiras iniciativas de Hitler foi expurgar do partido nazista sua ala dita “anticapitalista”, representada pelos irmãos Strasser, no episódio conhecido com a Noite dos Longos Punhais. É impossível entender o caminho da combativa classe trabalhadora alemã rumo ao nazismo e ao abismo da Segunda Guerra Mundial sem percorrer novamente todo esse processo de traições e ilusões.

Por outro lado, o livro de Luciana também detalha grandes erros dos próprios revolucionários, como o abstencionismo eleitoral da fração de Otto Rüle no KPD (o Partido Comunista Alemão) em 1919, a vacilação do partido na defesa da república de Weimar frente ao putsch de Kapp em 1920 ou a recusa da tática da frente única pelo grupo de Ruth Fischer em 1921, entre outros exemplos de esquerdismo que tiveram como fruto teórico a histórica resposta de Lênin, que consagrou o termo em polêmica contra este “comunismo de esquerda” alemão.

Mas estes erros não vieram somente da traição social-democrata ou do desvio esquerdista. A política cada vez mais desastrosa do partido comunista alemão ao longo das décadas de 1920 e 1930 não se explica somente pela falta de seus melhores dirigentes (Rosa e Karl assassinados, Paul Levi expulso), mas pelas pressões contrarrevolucionárias oriundas diretamente da própria União Soviética. A ascensão da burocracia stalinista e a transformação do internacionalismo revolucionário em subordinação exclusiva da 3ª Internacional aos interesses diplomáticos russos afetou diretamente os processos revolucionários em todo mundo, primeiro recusando a unidade antifascista e logo depois se entregando completamente aos interesses das burguesias nacionais através das frentes populares.

Qualquer semelhança com nossos dias não é mera coincidência. Na história do nosso partido, o PSOL,  aqueles que antes se escandalizavam com certas táticas para a ampliação da esquerda radical no país, hoje se rendem totalmente às benesses imediatas dos ministérios e outros organismos estatais. A suposta radicalidade em um momento de marginalidade política rapidamente deu lugar à adaptação quando se demonstraram as possibilidades (e recursos) abertas por um novo governo de conciliação de classes. 

Recentemente, nosso candidato a prefeito em São Paulo utilizou-se do aumento do PIB puxado pelo agronegócio para declarar que Lula está “entregando tudo que prometeu”. Ao mesmo tempo, os mesmos grandes latifundiários avançam sobre biomas e povos tradicionais enquanto o ministério dos Povos Indígenas, controlado pelo PSOL, não tem condições mínimas nem ao menos de enfrentar o genocídio do povo Yanomami em curso na Amazônia. A nova secretaria nacional de Periferias, também ocupada por um membro do PSOL, tem como atribuição a urbanização de favelas e a prevenção de desastres em áreas de risco, mas não possui recursos para realizar nem mesmo uma pequena fração de tal tarefa. Fora do partido, mas próximo, o atual ministro dos Direitos Humanos – importante intelectual antirracista – declara que não existe política antirracista possível em regimes de austeridade fiscal, mas compõe sem problemas o governo que aplica a austeridade.

Da mesma forma, boa parte da esquerda silencia sobre o novo ataque aos trabalhadores através da regulamentação dos motoristas de aplicativos, assim como sobre a nova isenção fiscal para grandes igrejas ou sobre o projeto absurdo do novo ensino médio, entre tantos outros exemplos. E a resposta é sempre uma variação do mesmo tom: já que não existem condições institucionais para mudanças radicais, nos resta somente defender o governo neoliberal contra a ameaça fascista para que a situação não piore ainda mais. Escondem a adaptação ao Estado distorcendo a bandeira da unidade de ação antifascista, apostando todas as fichas em momentos específicos do crescimento econômico capitalista e tornando ainda mais fácil o caminho da extrema direita durante as crises.

O livro de Luciana ajuda muito porque retoma um rico exemplo histórico sobre as consequências da crise do projeto revolucionário perante à ascensão do fascismo. E indica que, nesse tipo de impasse, é essencial combinar dois níveis de atuação: a mais ampla unidade antifascista e a mais rigorosa defesa dos interesses da classe trabalhadora. Mas a lógica institucional nos empurra para o contrário, trocando a unidade antifascista por interesses imediatos e vacilando na defesa da classe pelo mesmo motivo. Está aí a receita de derrota que a experiência da revolução alemã nos ensina tão bem.

Não há saída para derrotar a extrema direita fora da política infinita, revolucionária. A ampliação dos horizontes políticos, colocando em questão o Estado e tudo que dele deriva, não é uma abstração teórica, mas a única possibilidade concreta de solução para o problema que enfrentamos hoje. E, não importa o que digam os oportunistas, não faremos isso sem refletir sobre a história do movimento operário e a teoria que dela se desenvolveu. Como escreve Safatle, é necessário salvar o passado para abrir o futuro.


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