A jornada de mobilização dos entregadores foi um triunfo para a classe trabalhadora

O dia 1º de julho foi histórico. Uma ação independente dos trabalhadores precarizados, em pleno Brasil do século XXI.

Giulia Tadini e Israel Dutra 6 jul 2020, 15:15

O dia 1º de julho entrou para história. Convocada de forma auto-organizada, a manifestação dos entregadores de aplicativo teve lugar nas maiores cidades do Brasil, tendo eco inclusive em outros países da América Latina como Argentina, Costa Rica e Chile. Foi inspirador ver nas principais ruas do país a tomada por parte de um importante setor da classe trabalhadora.

Antes da pandemia, mais de 40 milhões de brasileiros viviam na informalidade. Segundo dados do IBGE, esse número diminuiu durante a pandemia, significando que parcela desses trabalhadores foi jogada no desemprego total. Além disso, a pandemia aniquilou 7,8 milhões de postos de trabalho no Brasil. São muitas pessoas que, perdendo sua fonte de renda e sem outras possibilidades, recorrem aos aplicativos. Soma-se a isso uma política ultraliberal do governo Bolsonaro, simbolizada na gestão de Paulo Guedes na Economia, que não oferece nenhum tipo de proteção social aos trabalhadores.

Essa é a melhor situação para o avanço da uberização, que consiste, como bem afirma o professor Ricardo Antunes, no uso da tecnologia de uma forma destrutiva, beneficiando unicamente o capital, atrelado com uma superexploração do trabalho. São poucas e milionárias empresas que concentram o mercado de plataformas digitais, e que não possuem nenhuma responsabilidade em relação aos trabalhadores cadastrados. Assim como o fordismo ou o toyotismo foram novas formas de organização das forças produtivas, acompanhadas de mais exploração do trabalho, assim é com a uberização.

A Uber Eats teve lucro de mais de U$S 1 bilhão de dólares em 2019. Em 2018, o Brasil gerou US$ 959 milhões de receita à Uber, ou 8,5% da receita global da empresa. A IFood recebeu aporte de U$S 500 milhões de dólares em 2018; a Rappi recebeu aporte de U$S 1,2 milhões de dólares em 2019, a Loggi recebeu aporte de R$ 400 milhões de reais em 2018. A IFood e outras empresas do gênero são chamadas de unicórnios, apelido para startups avaliadas acima de US$ 1 bilhão, que são verdadeiras caixa-pretas, que pouco se sabe quanto de dinheiro circula.

Os aplicativos venderam uma ideia de que os entregadores seriam autônomos, com flexibilidade, fazendo seu próprio horário de trabalho. O que fica cada vez mais evidente é que há uma pressão por horas de trabalho, ou seja, realização de jornada. Hoje os entregadores trabalham de 10 a 14 horas diariamente. Há disciplinarização da força de trabalho pela via dos bloqueios injustos. Também cabe ao entregador comprar a sua própria Bag (mochila térmica), vendida na loja do Ifood por uma bagatela de R$ 100,00. Ou seja, o trabalhador paga pelos seus instrumentos de trabalho e paga para fazer propaganda da empresa. Por outro lado, as empresas não garantem nenhum direito.

Em abril de 2019, foram registrados 5,5 milhões de trabalhadores de aplicativo. Ou seja, as empresas de aplicativo hoje são os maiores empregadores do país. Um número que já estava em crescimento, e com a combinação da crise econômica com a pandemia, deve crescer em escala geométrica.

De invisíveis ao centro do debate

Uma pesquisa de 2019 da Associação Aliança Bike traçou o perfil destes trabalhadores com base em centenas de entrevistas: 99% são do sexo masculino, 71% se declararam negros, mais de 50% têm entre 18 e 22 anos de idade. As condições de trabalho antes da pandemia já eram de super exploração, mas não recebiam atenção da sociedade.

O que era ruim, piorou. Com a diminuição da taxa de entrega por várias empresas e o aumento de trabalhadores cadastrados, individualmente os entregadores viram sua renda diminuir, mesmo trabalhando mais horas.

Contraditoriamente, com a pandemia, de trabalhadores invisíveis, os entregadores ganharam mais visibilidade, exatamente porque se tornaram essenciais. Foram os entregadores que garantiram que muitas pessoas pudessem ficar em casa e que os estabelecimentos pudessem se adaptar para não fecharem as portas.

O que também é o meio da superexploração, a tecnologia, também é o meio da conectividade entre eles através do whatsapp. São nos pontos informais de concentração a espera dos pedidos que se fortalece a solidariedade e a identificação entre eles como parte de uma coletividade, de uma classe.

Na pista

O dia 1º de julho foi histórico. Uma ação independente dos trabalhadores precarizados, em pleno Brasil do século XXI. Foi uma paralisação de extensão nacional, e que ganhou maioria social. Os entregadores denunciaram as situações degradantes de trabalho, desmascarando a imagem de modernidade das empresas de aplicativo. Houve enorme apoio nas redes sociais. E, não à toa, no dia, os aplicativos receberam mais de 50 mil avaliações negativas.

As reivindicações unificadas são a fixação de tabela de preço do frete de entregas; o aumento da taxa mínima das entregas; o fim dos bloqueios e desligamentos de forma injusta e sem justificativas; uma legislação específica para a categoria; e o auxílio-pandemia, com fornecimento dos EPIs e licença remunerada caso o entregador seja afastado por coronavírus. Com a mobilização dos entregadores, ficamos sabendo que a regra das empresas é a falta de transparência no tabelamento dos preços.

O protesto de São Paulo parou a Avenida Paulista, após uma manhã de piquetes e concentrações regionais. Ao final do dia, numa das mais belas imagens, tomaram a ponte Estaiada, com faixas e centenas de motos, celebrando coletivamente o triunfo da jornada. Tiveram manifestações fortes em Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Rio de Janeiro, além de atos menores em quases todas as capitais e cidades médias, totalizando mais de 70 cidades com alguma concentração de entregadores.

Abre-se uma perspectiva

Sem dúvida, a paralisação do dia 1º de julho significou uma vitória política para os entregadores. Além disso, mostrou que a luta de classes não acabou, como muitos apostaram. Há uma ideologia neoliberal que transforma trabalhadores em empreendedores ou prestadores de serviço. Pouco a pouco, a partir da experiência concreta, esse discurso vai desmoronando. Cresce a resistência.

Uma nova paralisação está marcada para o dia 25 de julho, os entregadores estão avançando na sua própria auto-organização, construindo novas formas de luta, por fora do sindicalismo já adaptado. O lugar que figuras como Galo, dos entregadores antifascistas e os líderes da AMAE, no Distrito Federal, são fundamentais, bem como a organização da rede de apoio através da página Treta no Trampo, ligado ao movimento social combativo e independente, grande responsável pela nacionalização do movimento.Apenas se começa um novo tempo, onde os de baixo, com a criatividade e combatividade do povo brasileiro, ensaiam novas formas e potências de luta. E com elas que poderemos construir um novo futuro.


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