Cerrado: o berço das águas e a luta pela vida

Você conseguiria pensar em algo mais precioso que a água? Foi a água que possibilitou a vida e é ela quem a mantém. Sem ela não plantamos, as árvores morrem, os rios secam. Os animais morrem de sede e, por incrível que pareça, também somos animais. Um bem preciosíssimo. Infelizmente, entre água e capital, os poderosos escolhem o capital.

Eduardo Theodoro 19 mar 2021, 13:18

É preciso lembrar que a água não é uma invenção humana, não a criamos e agora ela faz parte do nosso cotidiano. Ela é o que fundamenta a vida no planeta. É impossível pensar em qualquer forma de sobrevivência que não envolva o uso da água. Dado o tratamento adequado, podemos usufruir de várias fontes como geleiras, rios, mares. Não é só para o uso direto, como tomar um banho ou um copo de água, que precisamos dela. A água é necessária para a pesca, a agricultura que põe a comida na mesa, o lazer, a flor que nasce no jardim, a fruta do café da manhã, o café coado.

É importante pensar no trajeto dos rios, nas suas histórias, nas vidas e sabedorias que os cercam, seus encontros e desencontros. É algo rico e cheio de beleza. Os rios desembocam no mar, nesse caminho criam culturas, modelam paisagens, carregam a vida e interagem com ela. Para cruzar essa longa jornada e encontrar seu fim, precisam nascer em algum lugar.

As nascentes são a nossa principal fonte natural de água potável. Água cristalina, cheia de vida para oferecer. É no Cerrado que encontramos grande parte das nascentes que alimentam nosso território. Ele é o segundo maior bioma do país, ocupa 24% do nosso território e oito das doze principais regiões hidrográficas do país dependem do bioma.

‘ a bacia Amazônica (rios Xingu, Madeira e Trombetas); a do Rio Tocantins-Araguaia (rios Araguaia e Tocantins); a Atlântico Nordeste Oriental (Rio Itapecuru); na Bacia do Parnaíba (rios Parnaíba, Poti e Longá); na do São Francisco (rios São Francisco, Pará, Paraopeba, das Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente e Grande); na do Atlântico Leste (rios Pardo e Jequitinhonha); na Bacia do Paraná (rios Paranaíba, Grande, Sucuriú, Verde e Pardo); na do Paraguai (rios Cuiabá, São Lourenço, Taquari e Aquidauana)’ [1].

Não podemos nos esquecer da região das Águas Emendadas no DF, importante para o abastecimento dos rios Tocantins e Paraná , fundamentais para a manutenção da nossa matriz energética. Outro rio que depende do Cerrado e é importantíssimo para nosso abastecimento de energia é o São Francisco.

Sua importância vai além das águas superficiais, três dos mais importantes aquíferos do país se encontram total ou parcialmente no bioma: Bambuí, Urucuia e Guarani. Sendo este último o segundo maior aquífero conhecido do mundo[1] e o maior transfronteiriço; cruzando Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina[2]. Além disso, o pantanal, maior planície de inundação do mundo, é extremamente dependente dos ciclos hidrológicos do Cerado.

A dinâmica de funcionamento das águas é complexa e a manutenção do ciclo hidrológico depende de inúmeros fatores ambientais. As águas são vivas, ao mesmo tempo que possibilitam nossa vida, precisam da vida para sobreviver. As matas ciliares, a dinâmica relacional entre a fauna e flora, tudo influencia sua preservação. As comunidades indígenas buscam demarcar os territórios envolvendo as nascentes pois compreendem a sua importância e a de sua manutenção.

Entretanto, a lógica, antropocêntrica e capitalista, dominante em nossa sociedade não opera para a manutenção da vida e sim para a manutenção do lucro. O Cerrado, segunda maior região biogeográfica da América do Sul e formação savânica mais biodiversa do planeta [3], já teve cerca de 50% do seu território desmatado e vem sofrendo cada vez mais com a expansão das fronteiras do agronegócio, em especial a agropecuária. Cerca de 60% da produção agrícola brasileira vem do Cerrado[1] e de acordo com o MapBiomas 43,7% do bioma é utilizado para atividades relacionadas à agropecuária, como pastagens e plantação de soja[4].

Ter metade do segundo maior bioma do país sendo utilizado para a manutenção do agronegócio é absurdo. Espero que isso seja um consenso entre os ambientalistas, assim como deveria ser entre os socialistas. Essa dinâmica de funcionamento é insustentável seja do ponto de vista ambiental, econômico ou social – até porque todos estão intrinsecamente relacionados.

Os órgãos de monitoramento medem a porcentagem de expansão do agronegócio, que cresceu 12,3% entre 2019 e 2020 no Cerrado[4]. Não existe retração. Enquanto ele se expande, o bioma é destruído. A região de Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é a que mais vem sofrendo com a expansão das fronteiras agrícolas. Ela abriga 46 unidades de conservação, 35 Territórios Indígenas, 781 assentamentos de reforma agrária[5] e correspondeu a 62% da área afetada pela expansão agrícola em 2019[6].

O agronegócio mata os povos tradicionais e suas culturas, os animais, as plantas, as águas. A monocultura em larga escala é regada de veneno, tivemos 493 agrotóxicos liberados só em 2020[7], é a principal responsável pelo desmatamento do Bioma e pela alta concentração de terras nas mãos da burguesia.

A lógica da produção latifundiária é insustentável, a terra é usada de maneira completamente inconsequente até seu esgotamento. À medida que os níveis de produção vão baixando é preciso expandir para áreas onde o solo ainda possui nutrientes. Muitas vezes aproveitam o período de queimadas naturais do bioma para ‘mascarar’ incêndios criminosos. Esse oportunismo individualista faz parte da formação do pensamento burguês.

Em 2020, tivemos o maior número de áreas queimadas no Distrito Federal desde 2012, com 18,6 mil hectares até o mês de setembro[8]. No bioma inteiro foram mais de 21 mil focos de queimadas[9]. De acordo com o sistema ALARMES, do LASA-UFRJ, tivemos mais de 3 milhões de hectares -maior que o estado de Alagoas- queimados dentro de regiões de preservação. Os Territórios Indígenas são os que mais sofrem com esses ataques, das 10 áreas que mais queimaram 7 são TIs[10].

Os povos têm seus territórios e modos de vida ameaçados e a perda de nossa fauna e flora ocorre a olhos vistos. A TI parque do Araguaia teve 483 mil hectares (36% do território) afetados por incêndios e, ao lado, o Parque do Araguaia teve 171 mil (31%). Os Xavantes do TI Parabubure viram 72% do seu território queimar em 2020, cerca de 163 mil hectares atingidos[10].

Não existe nenhum interesse por parte dos latifundiários de aliar seu crescimento econômico com modos de vida sustentáveis. A bancada ruralista do congresso nacional e o governo federal são exemplos bem claros do projeto de destruição ambiental capitalista. O interesse é a expansão e geração de lucro, dinâmica que prejudica a qualidade de vida da população local e ainda agrava as já precárias condições ambientais.

No ano passado, quando as queimadas no Pantanal e Amazônia chocaram o país, o ministro do Meio Ambiente chegou a mandar interromper o serviço dos brigadistas alegando ‘falta de recursos’[11]. Em 2019 ele deixou de executar 28% do total disponibilizado para a pasta[12]. Em pleno processo de desmonte, o ICMBio teve suas 11 coordenações regionais fechadas e o que resta do instituto fica nas mãos de militares. Por sua vez, o IBAMA teve 21 dos 27 superintendes exonerados já no começo da gestão Salles e terá um déficit de 2.821 funcionários em 2021, possuindo mais cargos vagos que ocupados.[13].

Enquanto isso, os povos originários e tradicionais, que compreendem as dinâmicas de funcionamento do ambiente e buscam interagir com o meio de forma harmônica, seguem na luta pela sobrevivência. A diversidade de povos que vivem no Cerrado é algo maravilhoso, são eles que buscam manter a vida no bioma. Seus territórios ajudam a formar corredores -indispensáveis- entre áreas de preservação. Temos agricultores familiares e comunidades tradicionais, como quebradeiras de coco babaçu, quilombolas -44 territórios-, geraizeiros,  comunidades vazanteiras, indígenas -83 etnias e 216 TIs- [14].

A guerra injusta e desleal entre o agronegócio e esses povos não é nenhuma novidade no cenário nacional e tampouco deixou de fazer parte dele nos governos progressistas. Entretanto, o que antes era necessário ser feito debaixo dos panos agora é explicitamente encorajado pelo governo federal. O mundo pode ter aberto os olhos para a Amazônia e agora luta pela sua preservação, mas a atenção para o Cerrado ainda é extremamente precária, não só internacional como nacionalmente.

Essa invisibilidade é uma das grandes ameaças para o bioma. O Estado e a burguesia atiram para todos os lados, mas a resistência geral está muito mais presente na defesa de outros espaços. As fronteiras agrícolas e a monocultura se aproveitam ao máximo da situação para passarem a boiada por aqui. Não sobreviveremos com a preservação ilhada de matas, o funcionamento do ecossistema precisa de integração.

Não podemos nos esquecer de algo tão essencial como o Cerrado. Seu papel é indispensável na manutenção da nossa matriz energética, abriga diversas culturas riquíssimas, possui uma fauna e flora extremamente diversificadas e com espécies endêmicas da região, cachoeiras maravilhosas e é o grande responsável pelo abastecimento de água e manutenção da vida no país. A defesa do Cerrado é fundamental para a defesa da vida.

Referências:

[1] Berço das Águas – ISPN

[2] Hidrografia

[3] Projeto Monitoramento do Cerrado – FIP FM Cerrado

[4] Desmatamento no Cerrado volta a crescer em 2020

[5] Ameaças ao Cerrado – ISPN

[6] Desmatamento no Cerrado se concentrou no Matopiba

[7] Número de agrotóxicos registrados em 2020 é o mais alto da série histórica

[8] DF tem terceiro recorde de queimadas em uma década

[9] Avanço do desmatamento: Cerrado tem mais de 21 mil focos de queimadas

[10] Mais de 3 milhões de hectares já queimaram em áreas protegidas no Cerrado em 2020

[11] Brigadistas estão desde setembro sem receber diárias para pagar alimentação e estadia

[12] MP pede ao TCU que analise impacto de ‘baixa’ execução orçamentária na área ambiental

[13] Como o desmonte de órgãos ambientais tem relação direta com o fogo nas florestas

[14] Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado – ISPN


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 19 nov 2024

Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas

As recentes revelações e prisões de bolsonaristas exigem uma reação unificada imediata contra o golpismo
Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi