O que a privatização do Correo Argentino ensina o Brasil a não fazer com o Correios

O Brasil tem a chance de aprender com o exemplo da Argentina e se mobilizar contra a venda do nosso patrimônio.

Isabelle Ottoni 14 jul 2021, 18:22

O serviço postal toma as manchetes em dois países da América Latina nessa primeira semana de julho: na Argentina, a Correo Argentina tem falência decretada pela justiça. No Brasil, o Correios tem quase data marcada para a votação de privatização. E a história de uma pode ajudar a impedir o futuro trágico de outra.

Não é novidade a propaganda da suposta eficiência de empresas privadas pelos neoliberais. Baseada em ideias de diminuição do Estado, a privatização passa a ser o caminho para transformar presidentes da república em gestores de empresas. A eficácia do mercado privado é provado como falacioso em exemplos simples do cotidiano do brasileiro: o sistema de telefonia e o acesso à internet, por exemplo, são um dos piores1 do mundo. Mas é na tentativa de “enxugar o Estado” que, em 1997, o privatista Carlos Menem, à época presidente da Argentina, entrega a empresa Correo Argentino, serviço postal da Argentina, na época estatal, a iniciativa privada, as mãos da empresa SOCMA (abreviação de “Sociedad Macri”), da família Macri, do ex-presidente argentino Mauricio Macri (2016-2020).

Quatro anos depois a crise econômica Argentina apertava, o “corralito” era implementado, e um novo escândalo surgia: a pendência de pagamentos da empresa da família Macri aos cofres públicos, referente a compra do Correo Argentina. A dívida, de quase 300 milhões de pesos, era referente a quatro anos não pagos de dívida com a União. A crise econômica Argentina era tão grave que o presidente Carlos Menem renunciou.

Novas eleições aconteceram e Néstor Kirchner foi eleito. Seu governo foi marcado por um fôlego de estatizações, com a criação de empresas como a Enarsa (Energia Argentina Sociedade Anônima) e a Lafsa (Linhas Aéreas Federais S.A). E a reestatização do Correo Argentino, também marcado pela judicialização do não pagamento da dívida da família Macri aos cofres públicos. O processo judicial foi lento, marcado pela batalha entre o macrismo e o kishnerismo. Com a eventual eleição de Maurício Macri à presidência da república Argentina, casos de corrupção vieram à tona, como o do ex-ministro Oscar Aguad, que teria organizado uma proposta de pagamento de dívidas previamente combinada com a família Macri.

Essa proposta, que previa o pagamento de apenas 300 milhões de pesos, quando a dívida chegava a quase 70 bilhões de pesos, acabou por ser rejeitada na justiça. O imbróglio judicial de quase vinte anos acabou na última segunda-feira, 05, com a falência da empresa decretada na justiça. A ação judicial pode, eventualmente, congelar os bens da SOCMA, até que se pague a dívida. Os diretores/administradores podem ser responsabilizados.

A história que fica é que a privatização do Correo Argentino foi responsável por um dos maiores casos de corrupção da Argentina, tendo ocorrido na administração do setor privado. A gestão da família Macri na empresa levou a uma demissão em massa dos funcionários, queda de qualidade de serviço e sua eventual falência decretada pela justiça.

Agora, o Brasil se vê nos primeiros passos do que pode ser uma tragédia similar a dos hermanos. Três empresas já oficializaram sua intenção em comprar o Correios, entre ela o Mercado Livre e a Amazon.

Novata na área, o Mercado Livre recentemente comprou uma frota de aviões, que operam a serviço das entregas de sua plataforma de varejo. Quando entrevistado2, o presidente Stelleo Tolda conta que 20% das entregas são feitas via Correios. Dado interessante para pensar as intenções da empresa com a estatal brasileira. O serviço continuará atendendo aos interesses do povo brasileiro ou passará a ser um braço do seu serviço de entregas?

O caso da Amazon também é interessante para pensar se é possível combinar os interesses de uma gigante capitalista com uma estatal que existe para atender e servir necessidades da população. Seu fundador é Jeff Bezos, segundo homem mais rico do mundo, com uma fortuna de 186 bilhões de dólares. Sua fortuna é maior que toda a arrecadação da maioria dos países do mundo, como por exemplo Ucrânia, Marrocos, Equador, Porto Rico, Angola, etc. Muitas são as razões da sua fama, mas uma vale mencionar: as condições precárias e violadoras de direitos humanos que sua empresa trata os funcionários.

Proibidos de se sindicalizar e com reclamações derivando em demissões, os funcionários da Amazon sempre tiveram dificuldades de relatar ao público suas condições de trabalho. O intenso debate sobre a “uberização do trabalho” traz luz às suas denúncias, mas também o universo das artes. No começo de 2020 o diretor inglês Ken Loach lançou Sorry We Missed You (Você Não Estava Aqui, no Brasil), contando a história de uma família proletária do Reino Unido, onde o marido começa a trabalhar como entregador de uma empresa similar a Amazon. A crítica foi certeira. Mesmo sem se pronunciar, a Amazon foi obrigada a negar as denúncias de que seus funcionários são obrigados a urinar em garrafas, pois o aplicativo da empresa proíbe paradas, além das diversas denúncias de desconto de salários, cargas horárias extenuantes, nenhum tipo de segurança ou estabilidade empregatícia e salários baixíssimos.

Jorge Carrión, escritor espanhol, é autor de “Contra Amazon”, e propõe sete razões para boicotar a empresa. Entre elas estão o empenho da empresa em falir pequenas livrarias, para assim controlar o comércio de livros e o tratamento de “robô” que seus funcionários são obrigados a empenhar. Fica o questionamento: como uma empresa que está determinada a degradar seus funcionários pode ser uma boa alternativa aos mais de cem mil funcionários do Correios, todos sindicalizados?

Mas as razões para ser contra a privatização do Correios não é apenas uma simples objeção aos seus possíveis compradores ou potenciais casos de corrupção, especialidade do setor privado, podem gerar. O Correios não pode ser privatizado porque não pode ser transformado num braço capitalista de atendimento às necessidades da burguesia.

Hoje, ninguém é obrigado a entregar suas encomendas pelos serviços do Correios. Existem diversas opções. Mas, mesmo com todas as críticas, o Correios ainda é o único serviço que entrega em todos os municípios do Brasil. Enquanto empresas privadas cobram taxas exorbitantes para a entrega de simples correspondências no Norte do país, a taxa do Correios segue sendo a mais baixa. A prova do ENEM não aconteceria sem os esforços do Correios de entregar suas provas a toda parte do Brasil, há mais de 12 anos. Também são os responsáveis pela entrega de livros e materiais didáticos da maioria das escolas públicas do país, principalmente as do interior dos Estados.

Muitos economistas liberais repetem com insistência que “O Correios não gera lucro”. O Dieese discorda. Um de seus economistas, Clovis Scherer, aponta que o relatório de 2019 mostra lucro líquido de R$ 102,121 milhões. Bolsonaro afirma que é um monopólio que causa prejuízos, mas os números provam o contrário. Em muitos municípios onde a União não se faz presente, é o Correios que fornece à população serviços básicos, como à emissão e regularização de CPF, serviço de conta bancária e consulta ao SERASA. O setor privado não tem interesse em incorporar as áreas mais afastadas do Brasil. Como ficará sua população?

A necessidade de atendimento de toda à população não é um mero capricho, é parte daquilo que serve uma cidadania completa ao brasileiro. O atendimento em todo território nacional não acompanha apenas uma existência por si só, mas cumpre papel social. É isso que a existência de agência em todos os municípios do Brasil entrega: dignidade e cidadania. O Correios fornece integração territorial. Sua existência como empresa estatal não atende só a fortificação do projeto nacional, mas a garantia que, ao não estar nas mãos do setor privado, não terá interesses do capital se sobrepondo à necessidade de cumprir papel social.

As críticas ao serviço do Correios é justa, mas o caminho para a resolução dos problemas não é sua privatização, mas o fortalecimento da empresa, que vem há anos sendo precarizada pela União. É urgente que abram novos editais de concurso e que o reajuste salarial seja feito de acordo com a inflação. O que acontece é o oposto: não se abrem novos editais desde 2011, e um Programa de Demissão Voluntária está em vigor. O Brasil tem a chance de aprender com o exemplo da Argentina e se mobilizar contra a venda do nosso patrimônio. Não à privatização do Correios.

1 https://veja.abril.com.br/blog/impavido-colosso/brasil-e-o-9-pais-com-a-pior-velocidade-de-internet-banda-larga/

2 https://www.istoedinheiro.com.br/a-maior-entrega-do-mercado-livre/

Publicado originalmente pelo Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 19 nov 2024

Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas

As recentes revelações e prisões de bolsonaristas exigem uma reação unificada imediata contra o golpismo
Prisão para Braga Netto e Bolsonaro! É urgente responder às provocações golpistas
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi