O som do silêncio: as mulheres ausentes da música clássica

Felix Mendelssohn e Robert Schumann são nomes familiares; e quanto a Fanny e Clara? Anna Beer sobre porque devemos ouvir Caccini e Strozzi, tanto quanto Mozart e Beethoven.

Anna Beer 15 set 2017, 15:03

Escrever sobre a vidas e obra de oito mulheres compositoras em quatro séculos de História da Europa Ocidental me mostrou forçosamente o que tiveram de enfrentar. Cada uma criou sua música em sociedades que impunham limites de acesso a certos lugares, das casas de ópera às universidades, do estrado do regente à editora de música, além de garantir que certos postos, seja em catedrais, cortes ou conservatórios, fossem aqueles para os quais sequer poderiam se inscrever. Em cada século, determinadas crenças tornaram a tarefa dessas compositoras muito mais difícil, pois, da Florença do século XVII a Londres do XX, sua arte provocou obscuras fantasias sexualizadas sobre a criatividade da mulher. Assombrou-me a variedade de maneiras com que as compositoras se aliavam àqueles temores: por meio de uma vida de castidade (conheça a sempre direita Marianna von Martines, de Viena), ou pela procriação incansável (reverencie Clara Schumann, mãe de oito); pela performance da domesticidade perfeita (a fragrante Senhora Hensel de Berlim, mais conhecida como Fanny Mendelssohn, irmã mais velha de Felix), ou pela adoção da persona de mulher-criança (como fez a formidavelmente ambiciosa Lili Boulanger, que assinava Bébé).

Criatividade contra as probabilidades, eis a que tudo se resumia – e agarrar a oportinidade. Francesca Caccini, por exemplo, aproveitou uma breve brecha na história da política. Na Toscana dos anos de 1620, lideranças femininas precisavam de compositores para criar a trilha sonora que justificaria seu poder excepcional e ameaçador. Como Caccini escreveu a seu amigo íntimo e colaborador de trabalho, Michelangelo Buonarroti (sobrinho-neto de Michelangelo), se os Medici “me dessem bola, eu não as soltaria”. E foi justamente essa determinação que nos proporcionou a primeira “ópera” escrita por uma mulher (mais precisamente um balletto in musica, com cavalos dançantes e tudo, cuja estreia se deu em Florença, 1625), apresentada em Brighton, no penúltimo mês do ano. Apenas uma de sua vasta obra, essa produção de 2015 mostra do que ela era capaz, e o que nós perdemos.

Uma geração mais tarde veio a veneziana Barbara Strozzi, cujo acesso fora negado tanto ao admirável mundo novo da ópera pública em sua cidade, quanto ao velho mundo da Igreja e sua música. Strozzi optou por uma via alternativa ao sucesso profissional: a mídia emergente. Ela teve mais obras impressas que qualquer outro compositor no século XVII. Strozzi alcançou tal proeza às custas de seu status de cortesã, ou concubina, papel escolhido por sua família quando ainda era adolescente. Ironicamente, o ofício do sexo serviu às ambições musicais neste caso. No XVII mulheres não podiam ter sua obra editada. Na verdade, a publicação era vista como uma forma de prostituição também no século XIX. Essa é uma das razões pelas quais a Marcha Nupcial de Felix Mendelssohn é tão bem conhecida, enquanto o talento equivalente de sua irmã passa despercebido – sua família, incluindo Felix, não tolerariam o escândalo da publicação. No entanto, Strozzi sabia que essa respeitabilidade jamais se aplicaria a ela. Já estava condenada, não faria diferença arcar com a publicação das obras.

Fanny Hensel (a irmã mais velha de Felix) elaborou sua própria estratégia na Prússia do XIX. Quando tinha 14 anos, seu pai banqueiro retornou de uma viagem de negócios trazendo um presente especial para sua filha e seu filho, ambos prodígios: para ela, um colar de joalheria escocesa; para ele, instrumentos de escrita para compor a primeira ópera. Fanny todavia não parou de compor e, pouco a pouco, forçou os limites de sua arena privada, criando um dos mais importantes programas musicais da época, o magnífico Sonntagsmusik, “Domingo musical”. Ajudou, para tanto, o fato de viver em uma mansão em Berlim, onde podia contar com seu próprio Gartensaal [salão-jardim] para concertos. Assim, aos 40 anos, Hensel – gloriosa e corajosamente – se libertou da gaiola dourada, permitindo a publicação de um punhado de peças autorais. O que se provou tardio: ela faleceu logo no ano seguinte.

A luta de Hensel foi tão emocionalmente carregada quanto a determinação da parisiense Lili Boulanger em continuar compondo durante a doença terminal que a acometeu (sabemos hoje que se tratava da doença de Crohn) em meio aos horrores da Primeira Guerra Mundial. Em junho de 1917, com apenas 23 anos, a compositora resistiu a uma cirurgia somente com anestesia local, láudano e oxigênio. Em outubro, estava de volta ao trabalho, copiando um fragmento de sua ópera em um de seus cadernos. Conforme escreveu sua irmã, Nádia: Lili “quer viver, seu organismo está lutando, mas a doença é mais forte”. Lili mesma escreveu desesperadamente no manuscrito da ópera: “Copiado em dezembro de 1917. Tudo precisa estar pronto antes de 1º de janeiro. PRECISA!!! Conseguirei fazê-lo?” O novo ano começa e ela, ainda compondo, dita a Nádia seu Pie Jesu, peça que vai de uma intensidade angustiante à calma aceitação do destino, do “Amen” no desenlace, da “essência da afirmação”, um triunfo nas palavras dos musicólogos, posteriormente. Boulanger faleceu aos 24 anos, no dia 15 de março de 1918.

Seja nas cortes de Florença ou Versalhes, seja nas grandes casas de Berlim ou Viena, nas ruas abarrotadas de Paris ou Leipzig, ou mesmo nos silenciosos vilarejos ingleses, em todas as gerações mulheres evitaram, confrontaram e ignoraram as crenças e práticas que as excluíam do mundo da composição. Hoje ando por Veneza e vejo Strozzi (não Vivaldi); Visito a Schumannhaus em Leipzig e vejo Clara, não Robert; Vou ao Proms e escuto os ecos de Elizabeth Maconchy, não de Britten. E ouço um monte de músicas novas, pelo menos para mim. Entretanto, escuto igualmente o som do silêncio – onde deveria haver as músicas das mulheres.

Minha visita a Berlim em 2014 a procura de Fanny Hensel, trouxe de volta para mim o apagamento dos Mendelssohns (judeus) da história da cidade, iniciada pelos nazistas e concluída pelo regime comunista. Mesmo atualmente em Berlim há, surpreendentemente, um reconhecimento exíguo de Felix (em parte por Leipzig o ter tomado), preterindo Fanny. Foi difícil encontrar o túmulo de Fanny, mesmo tendo sido enterrada ao lado de Felix e Wilhelm Hensel, seu marido – embora o prefeito tenha declarado que o lugar seria mantido no futuro. A família se convertera ao luteranismo e foi enterrada num cemitério cristão. É notável, ao que parece, que as lápides ainda existam, porquanto foram pesadamente bombardeadas durante a Segunda Guerra e, depois, divididas pelo Muro. A lápide de Fanny é a maior, a segunda da direita, onde estão gravadas duas frases musicais de sua última composição, Bergeslust. Achei tocante que, seja lá quem tenha comissionado seu memorial – talvez seu marido? – o tenha feito do modo a honrá-la acima de tudo como compositora.

Mais cedo naquele mesmo dia, visitei o Mendelssohn-Remise na Rua Jager, localizado no prédio que outrora sediara o negócio bancário da família. Havia de um lado, duas cadeiras antigas dispostas uma em frente a outra – o início de uma tentativa de recriar os estudos musicais de Fanny, mesma sala retratada com todos os detalhes em aquarela e lápis logo após sua morte.

Pois bem, por que ainda não escuto sua música? Por que ainda somos tão relutantes com programas musicais de mulheres? Será que é aquele velho e cansativo argumento antifeminista de que, por alguma razão, ao celebrar as obras das mulheres estamos minorando o fato de que as obras dos homens ainda estão nas paradas? Quero um mundo de Caccini e Mozart, Hensel e Beethoven, Maconchy e Shostakovich. Seguramente seria um mundo mais rico para todos nós, não?

(Sounds and Sweet Airs: The Forgotten Women of Classical Music por Anna Beer, publicado pela Oneworld Publications. Tradução de Flavia Brancalion.)


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