O plano do Google para revolucionar as cidades é uma aquisição em tudo, exceto no nome

O urbanismo do Google e sua pretensão de coletar e usar dados para construir alianças lucrativas com as forças poderosas que estão por trás da financeirização das cidades.

Evgeny Morozov 24 out 2017, 13:47

A edição de junho da Volume, uma das principais revistas de arquitetura e design, publicou um artigo sobre o projeto Google Urbanism. Concebido em um renomado instituto de design em Moscou, o projeto apresenta um futuro urbano plausível baseado em cidades que atuam como sítios importantes para o “extrativismo de dados” — a conversão de dados coletados de indivíduos em tecnologias de inteligência artificial, permitindo que empresas como a Alphabet, empresa-mãe do Google, atuem como fornecedoras de serviços sofisticados e abrangentes. As próprias cidades, o projeto insistiu, receberiam uma parte da receita dos dados.

As cidades certamente não se importariam, mas e a Alphabet? A empresa leva as cidades a sério. Seus executivos propuseram a ideia de pegar uma cidade com dificuldades — Detroit? — e reinventá-la em torno dos serviços da Alphabet, sem regulações irritantes bloqueando essa marcha de progresso.

Tudo isso poderia parecer contra-intuitivo há várias décadas, mas hoje, quando instituições como o Banco Mundial pregam sobre as virtudes das cidades privadas e os mandachuvas do Vale do Silício aspiram construir micronações no mar livres da burocracia convencional, não parece tão exagerado.

A Alphabet já opera muitos serviços urbanos: mapas das cidades, informações de trânsito em tempo real, Wi-Fi gratuito (em New York), carros auto-dirigidos. Em 2015, ela lançou uma unidade dedicada à cidade, Sidewalk Labs, dirigida por Daniel Doctoroff, ex-prefeito de New York e veterano de Wall Street.

Os antecedentes de Doctoroff sugerem o que — em oposição às suas formulações teóricas — presume o urbanismo do Google: usar a proeza dos dados da Alphabet para construir alianças lucrativas com outras forças poderosas que estão por trás das cidades contemporâneas, desde incorporadoras imobiliárias até investidores institucionais.

Deste ponto de vista, o urbanismo do Google não é nada revolucionário. Sim, ele se desenvolve em dados e sensores, mas eles só desempenham um papel secundário na determinação do que é construído, por quê e a que custo. Pode-se bem chamá-lo de urbanismo da Blackstone — em homenagem a um dos maiores jogadores financeiros do mercado imobiliário.

Já que Toronto recentemente escolheu a Alphabet para transformar o Quayside, uma área não desenvolvida de 5 hectares de frente para o mar, em uma maravilha digital, não demoraria muito para se descobrir se o urbanismo do Google irá transcender ou acomodar as forças predominantemente financeiras que moldam nossas cidades.

A Sildewalk Labs colocou US$ 50 milhões no projeto — principalmente para hospedar uma consulta de um ano após a qual qualquer das partes pode sair. Sua oferta vencedora de 220 páginas oferece insights fascinantes sobre seu pensamento e metodologia. “Altos custos de habitação, tempos de deslocamento, desigualdade social, mudanças climáticas e mesmo tempo frio mantendo as pessoas dentro de casa” — tal é o campo de batalha que Doctoroff descreveu numa entrevista recente.

As armas da Alphabet são impressionantes. Edifícios baratos e modulares a serem montados rapidamente; sensores que monitoram a qualidade do ar e condições de construção; semáforos adaptativos priorizando pedestres e ciclistas; sistemas de estacionamento direcionando carros para vagas disponíveis. Para não falar de robôs de entrega, redes avançadas de energia, triagem automática de resíduos e, claro, carros auto-dirigidos em toda parte.

A Alphabet essencialmente quer ser a plataforma padrão para outros serviços municipais. Cidades, ela diz, sempre foram plataformas; agora elas estão simplesmente se tornando digitais. “As maiores cidades do mundo são pólos de crescimento e inovação porque alavancaram plataformas implementadas por líderes visionários”, afirma a proposta. “Roma tinha aquedutos, Londres o metrô, Manhattan a planta ortogonal”.

Toronto, liderada pelos seus próprios líderes visionários, terá a Alphabet. Em meio a toda essa plataformoforia, poderia-se facilmente esquecer que o sistema de ruas não é tipicamente propriedade de uma entidade privada, capaz de excluir alguns e satisfazer outros. Nós gostaríamos que a Trump Inc. fosse sua proprietária? Provavelmente não. Então por que se apressar em dar seu equivalente digital à Alphabet?

Quem determina as regras pelas quais diferentes empresas obtêm acesso a ela? As cidades estariam economizando energia usando os sistemas de inteligência artificial da Alphabet ou a plataforma seria aberta para outros? Os carros auto-dirigidos seriam os da Waymo, unidade da Alphabet, ou aqueles do Uber e de qualquer outra entidade que os construa? A Alphabet apoiaria a “neutralidade da rede urbana” tão ativamente como apoia a neutralidade de rede convencional?

Na verdade, não há uma “grade digital” [digital grid]: há apenas produtos individuais da Alphabet. Sua aposta é fornecer serviços digitais legais para estabelecer monopólio completo sobre o extrativismo de dados dentro de uma cidade. O que passa pelos esforços para construir a “grade digital” pode, na verdade, ser uma tentativa de privatizar serviços municipais — uma característica fundamental do urbanismo da Blackstone, não uma saída radical dele.

O objetivo da Alphabet a longo prazo é remover barreiras para a acumulação e circulação do capital em ambientes urbanos — principalmente substituindo regras e restrições formais por metas flutuantes e baseadas em feedback. Ela afirma que, no passado, “medidas prescritivas eram necessárias para proteger a saúde humana, garantir edifícios seguros e gerenciar externalidades negativas”. Hoje, no entanto, tudo mudou e “cidades podem alcançar esses mesmos objetivos sem a ineficiência que vem com zoneamento inflexível e códigos estáticos de construção”.

Essa é uma declaração notável. Mesmo luminares neoliberais como Friedrich Hayek e Wilhelm Röpke admitiam algumas formas não-comerciais de organização social no domínio urbano. Eles viam planejamento — em oposição aos sinais do mercado — como uma necessidade prática imposta pelas limitações físicas dos espaços urbanos: não havia maneira mais barata de operar infraestrutura, construir ruas, evitar congestionamento.

Para a Alphabet, essas restrições não existem mais: fluxos de dados onipresentes e contínuos podem finalmente substituir as regras do governo com sinais do mercado. Agora tudo é permitido — a menos que alguém reclame. O espírito original por trás do Uber era bem parecido: abandone as regras, os testes e os padrões; deixe o consumidor soberano classificar os motoristas e os que estão com pouca pontuação vão logo desaparecer por conta própria. Por que não fazer isso com os proprietários? Afinal, se você tem sorte para sobreviver a um incêndio na casa que aluga, você pode sempre exercitar sua soberania de consumidor e classificá-la negativamente. Aqui, a lógica operacional é a do urbanismo da Blackstone, mesmo que as técnicas façam parte do urbanismo do Google.

O urbanismo do Google significa o fim da política, já que assume a impossibilidade de transformações sistêmicas mais amplas, como limites à mobilidade do capital e propriedade estrangeira da terra e da habitação. Em vez disso, quer mobilizar o poder da tecnologia para ajudar os residentes a “se ajustarem” a tendências globais aparentemente imutáveis como a desigualdade crescente e o aumento constante do custo da habitação (a Alphabet quer que acreditemos que ele é impulsionado pelos custos de produção, não pelo fornecimento aparentemente infinito de crédito barato).

Normalmente essas tendências significam que, para a maioria de nós, as coisas vão piorar. O lance da Alphabet, entretanto, é que as novas tecnologias podem nos ajudar a sobreviver, se não prosperar, usando o auto-rastreamento para magicamente encontrar tempo nas agendas ocupadas de pais sobrecarregados pelo trabalho; tornando a dívida do carro obsoleta à medida que a propriedade do carro se torna desnecessária; implantando inteligência artificial para reduzir os custos da energia.

O urbanismo do Google compartilha o pressuposto-chave do urbanismo da Blackstone: nossa economia altamente financializada — marcada pela estagnação dos salários reais, mercados de habitação liberalizados que impulsionam preços devido à demanda global persistentemente forte, infra-estrutura construída num modelo opaco mas altamente lucrativo de parceria publico-privada — veio para ficar. A suposta boa notícia é que a Alphabet possui sensores, redes e algoritmos para restaurar e manter nosso nível de vida anterior.

A proposta de Toronto é ainda vaga em quem pagará por essa utopia urbana. Ela reconhece que “alguma das inovações mais importantes [do projeto] são grandes projetos de capital que exigirão grandes volumes de oferta confiável para serem financiáveis”. Apesar disso, pode tornar-se o equivalente urbano da Tesla: um empreendimento impulsionado por subsídios públicos infinitos que derivam da alucinação coletiva.

O apelo da Alphabet para os investidores reside na modularidade e plasticidade dos seus espaços; não há nenhuma função atribuída permanentemente a nenhuma das suas partes. Muito similar às utopias cibernéticas iniciais de arquitetura eternamente flexível e reconfigurável, não há função permanentemente atribuída a nenhuma de suas partes. Tudo pode ser reembaralhado e rearranjado, com boutiques se transformando em galerias e terminando como pubs gastronômicos — desde que tal metamorfose digitalmente permitida produza um retorno maior.

Afinal, a Alphabet está produzindo uma cidade “onde as construções não tem uso estático”. Por exemplo, a peça central do bairro proposto em Toronto — o Loft — oferecerá uma estrutura de esqueleto que “vai permanecer flexível ao longo do seu ciclo de vida, acomodando uma combinação radical de usos (tais como residencial, varejo, escritório, hospitalidade e estacionamento) que podem responder rapidamente à demanda do mercado”.

Aqui está a promessa populista do urbanismo do Google: a Alphabet pode democratizar o espaço personalizando-o através de fluxos de dados e materiais baratos pré-fabricados. O problema é que a democratização de função da Alphabet não será acompanhada pela democratização do controle e da propriedade dos recursos urbanos. É por isso que a principal “entrada” do algoritmo de democracia da Alphabet é a “demanda do mercado” em vez da tomada de decisão comunal.

Em vez de democratizar a propriedade e o controle, a Alphabet promete participação, consulta e novas formas de rastrear a vox populi — medida automaticamente através da extensa rede sensorial da Alphabet. A empresa ainda saúda Jane Jacobs, urbanista preferida de todos, emprestando alguma credibilidade à tese de que o tipo de urbanismo de pequena escale e altamente flexível pregado por Jacobs é bastante compatível com o interesse crescente de Wall Street em imóveis e infra-estrutura.

Em muitas cidades, a demanda do mercado é precisamente o que leva à privatização do espaço público. As decisões não são mais tomadas no domínio político, mas delegadas a gerentes de ativos, grupos de capital privado e bancos de investimento que afluem em imóveis e infra-estrutura buscando retornos estáveis e decentes. O urbanismo do Google não reverteria essa tendência, mas a aceleraria.

As dimensões utópicas e quase anarquistas do urbanismo do Google seriam algo para se comemorar se a maioria dos moradores ficasse responsável pelos seus próprios espaços, edifícios e infra-estruturas. Já que não é esse o caso e tais espaços são cada vez mais propriedade de investidos privados (e muitas vezes estrangeiros), uma saída radical do sistema altamente burocrático, sufocante e restritivo por capital de zoneamento ou regulações de construções provavelmente nos dará o horror paralisante da Grenfell Tower em vez do triunfo reconfortante da prefeitura de Vermont.

Além dos investidores institucionais que compram quadras inteiras das cidades, a Alphabet entende o público real das suas cidades: os ricos globais. Para eles, a narrativa de sustentabilidade baseada em dados e estilos de vidas artesanais produzidos algoritmicamente — a Sidewalk Labs até promete “um bazar de próxima geração” reabastecido pelas comunidades locais de criadores — são apenas outra forma de justificar o aumento dos valores de suas carteiras de propriedades.

O “urbanismo como serviço” da Alphabet pode não atrair os moradores de Toronto, não importa. Como um projeto imobiliário, seu principal objetivo é impressionar os futuros moradores desaparecidos — sobretudo os milhões de milionários chineses que afluem para os mercados de habitação do Canadá. Doctoroff não se equivocou quando disse ao Globe and Mail que o empreendimento canadense da Alphabet era “primeiramente uma jogada imobiliária”.

O giro urbano da Alphabet também tem um significado político mais amplo. O cortejo da Alphabet pelos políticos do Canadá, juntamente com a guerra de ofertas que entrou em erupção sobre uma segunda sede da Amazon na América do Norte — algumas cidades ofereceram incentivos de até US$ 7 bilhões para que ela se mude para elas — sugere que, apesar da reação crescente contra o Vale do Silício, nossas classes políticas têm poucas outras indústrias positivas (e, importante, positivas em termos de dinheiro) para se basearem.

Esse é claramente o caso do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, que recentemente lançou seu país como “um ‘Vale do Silício’, além de tudo mais que o Canadá é”. Em um aspecto, ele está certamente correto: foram os fundos de pensão do Canadá que tornaram imóveis e infra-estrutura nos ativos lucrativos alternativos que são hoje.

Não tenhamos ilusões sobre o urbanismo do Google. É preciso ser ingênuo para acreditar que uma aliança urbana emergente da tecnologia com as indústrias financeiras produziria resultados prejudiciais para as últimas. O urbanismo da Blackstone vai seguir moldando nossas cidades mesmo que a Alphabet tome seus restos. “Urbanismo do Google” é uma ótima maneira de camuflar essa verdade.

(Artigo publicado em inglês pelo Guardian e traduzido por Tiago Madeira)


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