Ernest Mandel 1923-1995

Historiador britânico relembra a vida e obra de Ernst Mandel, morto em 1995, que completaria 95 anos no dia de hoje.

Robin Blackburn 5 abr 2018, 15:03

Ernest Mandel, que morreu em 20 de julho, aos 72 anos, destacou-se por seu talento como pensador, orador e dirigente político, em uma combinação de qualidades que se tornou cada vez mais difícil de encontrar à medida que foi progredindo este século. Foi um dos principais economistas marxistas e autor de mais de vinte livros publicados em muitos idiomas, ainda que nunca tenha perseguido uma carreira acadêmica. Foi um grande orador em meia dezena de idiomas e um infatigável organizador e militante. Defendeu com paixão as ideias de Leon Trotsky, quando não era só impopular mas também perigoso e foi um destacado dirigente de uma fração da Quarta Internacional durante décadas. Mas, à diferença de muitos dirigentes de grupúsculos, sua pessoa, arroupada em uma imagem saída de um sótão, soube ganhar o carinho, o respeito e a admiração de amplos setores da esquerda. Talvez mais que ninguém, foi o educador da nova geração ganha para o marxismo e para a política revolucionária na revolta estudantil dos anos setenta, especialmente na Europa e nas Américas. Estados Unidos, França, Alemanha Ocidental, Suíça e Austrália proibiram durante anos a entrada, considerando sua mera presença uma ameaça para sua “segurança nacional”. Sua Introdução à Teoria Econômica Marxista (1968) vendeu meio milhão de exemplares em todo o mundo. Durante trinta anos, Ernest Mandel foi um colaborador regular da New Left Review e a Editorial Verso publicou com orgulho muitos de seus livros. Sentiremos falta de suas rinhas carinhosas e seu irrefreável otimismo.

Ernest Mandel nasceu em uma família belga, de origem judia, que havia emigrado da Polônia no começo do século. Na entrevista com Tariq Ali que publicamos, Mandel descreve seus primeiros contatos com um grupo trotskista, antes de irromper a II Guerra Mundial e suas experiências na Resistência e num campo de prisioneiros alemão. Depois do fim da guerra, estudou na Universidade de Bruxelas na Ecole Practique des Hautes Études em Paris. Sua primeira grande obra foi o Tratado de Economia Marxista, em dois tomos, publicado em francês em 1962 e em inglês em 1967. Mas já era conhecido com um notável polemista e tinha contribuído, utilizando o nome de Ernest Germain, em discussões internas no movimento trotskista e o debate iniciado por Jean-Paul Sartre em Les Temps Modernes sobre “Os Comunistas e a Paz”. O marxismo de Mandel foi atrativo para a nova equipe da New Left Review, no começo dos anos setenta porque abordava os problemas políticos do momento e se sustentava em um amplo conhecimento da antropologia, da história e da economia. Pedimos a Mandel que escrevesse um artigo sobre a Bélgica. O resultado, começava no século XVI com a revolução dos Países Baixos, explicava porque a Bélgica do século XIX havia sido o “típico Estado burguês europeu”, analisava a greve geral belga de 1960-61 e terminava con um esquema das “reformas estruturais” imprescindíveis para o futuro1. Este ensaio se converteu em um modelo para os sucessivos estudos de países publicados pela New Left Review, Seu Tratado foi comentado no número 21 pelo eminente economista H.D. Dickenson.

As duas contribuições mais características e comentadas de Mandel na New Left Review durante os anos sessenta foram uma defesa de Trotsky em um debate com Nicholas Krasso e o muito reproduzido ensaio “Dónde va América?”. Krasso era um antigo discípulo de Lukács que havia desempenhado um papel importante no advento dos Conselhos Operários em Budapeste em 1956. Seu artigo na New Left Review criticava o que acreditava ser o reducionismo “sociologista” do conceito de “revolução permanente” e a análise da natureza dos Estados operários de Trotsky. As duas longas respostas de Mandel mergulhavam nos acontecimentos do século, defendiam a necessidade de construir uma alternativa marxista ao stalinismo e argumentavam que esta não era somente uma teoria equivocada e perigosa, mas também a expressão de uma “casta social autônoma”, a burocracia. Tanto Krasso como Mandel tendiam exageradamente a medir Trotsky com a vara leninista. Krasso, criticando Trotsky por não haver tido a habilidade política de Lenin em sua batalha contra Stalin; Mandel, ao ser extremadamente cauto na hora de diferenciar a herança de Trotsky da ortodoxia leninista. Quando assinalei este ponto, Mandel me remeteu a seu folheto A Teoria Leninista da Organização (1976), no qual era muito mais explícito: “Lenin, em seu primeiro debate com os Mencheviques, subestimou gravemente o perigo de autonomização do aparato e da burocratização dos partidos operários….Trotsky e Luxemburgo se deram conta deste perigo antes e de una maneira mais acertada que Lenin”2.

Muitos notáveis escritores, influenciados por Trotsky, acabaram dedicando-se à Historia, como o própio Trotsky: Isaac Deutscher, C.R.L. James, Daniel Guerin, Pierre Broué. Mas os escritos de Mandel devem mais em sua inspiração à influência de Rosa Luxemburgo, em sua detalhada análise do capitalismo e seu compromisso apaixonado com o universalismo marxista. Apesar de sua devoção pela memória de Lenin, Mandel estava imbuído de uma visão luxemburguista da criatividade do movimento operário em ação. Também poderia se dizer que sua própria criatividade florescia quando menos se preocupava da reação que pudesse causar em setores do movimento trotskista: em uma debate de alguma conferência ou escrevendo para o Frankfurter Rundschau. Quando se relê “Dónde va América?” (1969) resulta surpreendente a precisão com a qual previu as consequências que teria para os Estados Unidos a intensificação da concorrência e a queda da taxa de lucro. O que o futuro reservava era um estancamento dos salários, quando não seu declive, a crescente miséria pública e a especulação financeira alheia a qualquer investimento produtivo3. Mandel escrevia então a que seria sua obra mais importante, O Capitalismo Tardio, uma análise documentada da dinâmica e dos limites do boom do pós-guerra. Naquela época, os principais economistas ortodoxos e a maioria dos comentaristas escreviam como se o capitalismo tivesse finalmente superado para sempre seus ciclos comerciais e criado as condições para seu crescimento constante e o pleno emprego. Na esquerda, os que defendiam a teoria do capitalismo monopolista de estado afirmavam que se havia estabelecido um sistema capitalista regulado sob a hegemonia dos Estados Unidos, no qual a concorrência inter-imperialista perdia importância. O Capitalismo Tardio, publicado em 1972 na Alemanha e em 1975 na Grã-Bretanha, ofereceu uma análise muito diferente e, como o tempo demonstraria, muito mais afortunada. Através de uma original reelaboração da teoria das ondas largas do desenvolvimento capitalista de Kondratiev, Mandel defendeu que o boom do pós-guerra havia perdido seu impulso e que se haviam criado as condições para uma queda da taxa de lucros, a erosão dos salários reais nos Estados Unidos e a reaparição de um desemprego massivo nos países industrializados. Com toda a justiça, pode-se dizer que O Capitalismo Tardio é ainda a principal obra marxista sobre o tema, combinando uma teoria geral das “leis do movimento” capitalista com a análise específica de seu desenvolvimento no pós-guerra.

Ernest Mandel ganhou a vida escrevendo e como ativista político. Assessorou os sindicatos belgas nos temas econômicos e, até o final de sua vida, ministrou algumas aulas na Universidade de Bruxelas. Seus contatos com o mundo acadêmico foram escassos. Mas em 1978 foi convidado pela Universidade de Cambridge para pronunciar as aulas magistrais que levam o nome de Alfred Marshall. O livro que as recompilou, As Ondas Largas no Desenvolvimento Capitalista, foi reeditado recentemente, com dois novos capítulos que analisam o curso da recessão global nas duas últimas décadas e polemizam com outros estudiosos da economia mundial. Mandel analisou as inexoráveis tendências estruturais implícitas no ciclo comercial capitalista, mas ao mesmo tempo sublinhou que as pré-condições para uma nova fase de alta têm todo um caráter político e social. As predições políticas de Mandel foram menos acertadas que seus prognósticos econômicos, e com frequência demasiado otimistas. Como muitos outros, enxergou na greve geral da França de 1968 o arauto de uma nova onda de lutas operárias e estudantis que iriam desafiar a ordem capitalista em toda a Europa Ocidental, confluindo com um renascimento da revolução anti-burocrática no Leste e dos movimentos antiimperialistas no Terceiro Mundo. Tentou explicar a Primavera de Praga, a Ofensiva do Tet e os Acontecimentos de Maio como um todo. Os camaradas franceses de Mandel desempenharam um importante papel na revolta de Maio, em Paris e em outras cidades; com ele se encontrou um jornalista britânico em uma das barricadas, atrás dos restos carbonizados de seu próprio carro, dizendo: “Que maravilha! É a Revolução!”. A grande capacidade de Mandel como orador em francês, alemão, inglês, castelhano e italiano lhe converteu no mensageiro do 68 em toda a Europa e mais além. Recordo o relato de um amigo do incrível espetáculo de como conseguir por de pé, uma estrondosa ovação, a mais de mil fleumáticos finlandês com uma de suas emocionantes tiradas.

Mas Ernest não se limitava a dizer que a gente queria ouvir. Suas intervenções, que duravam uma hora ou mais, eram sempre um convite à reflexão: o cuidado com o qual expunha seus argumentos, a amplitude de seus conhecimentos e sua sabedoria imbuíam de uma grande força moral as conclusões as quais chegava. Sua apertada agenda de conferências em todos os cantos da Europa em que o deixavam chegar, ou aos que ele chegava por outros meios, na América Latina, Japão, Índia, Austrália e América do Norte ganharam novos militantes para a causa e lhe permitiu seguir o desenvolvimento dos acontecimentos em muitas terras, mas seguramente lhe roubou um tempo precioso para escrever, e, finalmente, minou sua saúde. Ainda que Mandel tenha se equivocado quanto ao destino final dos diversos focos de luta que alimentaram 68, incentivou os jovens a comprometer-se com os movimentos emancipatórios. Quer seja na Tchecoslováquia ou na Polônia, no Estado Espanhol ou no México os que seguiram e se inspiraram na visão de Mandel desempenharam um papel modesto, mas não insignificante, na luta contra a ditadura e a opressão. Nestes últimos anos, a turma de Mandel se uniu em sua maioria aos novos partidos da esquerda, como Rifondazione na Itália, Izquierda Unida no Estado espanhol e o Partido dos Trabalhadores no Brasil.

A amplitude da visão de Mandel não era comum em quem se dedica à política. Conheci Mandel em uma conferência organizada pela Organização de Estudantes Trabalhistas, em 1963, em Folkstone. Como secretário do Club Trabalhista de Oxford tive que acompanhar a gente como Harold Wilson e Richard Crossman. O leonino Mandel, com seu desprezo pelos cálculos mesquinhos do dia-a-dia e sua capacidade para pensar em termos históricos, não podia ser mais distinto que aquelas matreiras inteligências. Mandel insistiu que nos escapássemos da conferência para visitar a Catedral de Canterbury; minha reticência, provocada pelo colégio, em entrar em um lugar de culto anglicano se evaporou tão pronto quando Mandel começou a comentar os mais brilhantes aspectos da arquitetura gótica e os detalhes dos artesãos que haviam construído a catedral. Nos detivemos um momento ante a tumba do arcebispo martirizado durante a Revolta Camponesa, ante uma lápide que nos convidava a rezar pela paz social. Mais tarde, tive a sorte e o prazer de acompanha-lo a Tenochtitlan, e aos canais dos arredores da Cidade do México que só recentemente, como nos explicou Mandel, haviam recuperado os níveis de produtividade agrícola alcançados na época dos astecas. No entanto, as diversões de Mandel não eram tão sublimes. Seu vício pelos romances policiais lhe conduziu a escrever um livro sobre a matéria: a única de suas obras traduzidas para o russo antes do colapso da URSS. Não estivemos encantados em publicar na New Left Review suas análises econômicas como também artigos e livros sobre outras matérias. Entre elas, uma elegante resposta à obra de Solzhenitsyn e uma maravilhosa dissertação sobre o papel do indivíduo na história4. Nos anos oitenta, publicou assim mesmo “O significado da II Guerra Mundial”, no qual tentou apreender a complexidade do que interpretou como cinco guerras em uma.

É preciso situar em uma categoria especial “Em defesa da Planificação Socialista”, um artigo escrito para a New Left Review em resposta à Economia do Socialismo Possível de Alee Nove. Mandel havia já abordado estes temas nos sessenta, quando Che Guevara solicitou seu conselho; naquela época havia feito uma assinalada contribuição em apoio da posição de Che: que não podia ser ignorado o mercado mundial nem deixar que impusesse suas prioridades. Como seu mentor, Trotsky, Mandel não acreditava convenientes as tentativas antecipadas de suprimir por completo o mercado, mas menos ainda nas virtudes do “socialismo de mercado”. Seus poderosos argumentos a favor do papel essencial de uma ampla planificação democrática da vida econômica, se se quisesse de verdade superar a desigualdade e o desperdício capitalistas, provocaram muitas discussões, tanto na New Left Review como em outros círculos5 . Ao mesmo tempo que previu os perigos de apoiar-se no mercado, Mandel segui sendo implacável em sua condenação da ditadura burocrática. Depois do colapso da URSS, manteve a esperança de que ressurgisse um novo movimento operário no Leste e predisse que a restauração do capitalismo não seria nem fácil e nem rápida6.

Vi Mandel falar em público pela última vez em dezembro de 1991, em Madri, em um debate com Felipe González sobre o futuro do socialismo. O primeiro-ministro espanhol, pouco inteligente, se permitiu a dar lições para Mandel sobre as virtudes do constitucionalismo e o respeito pelos direitos humanos. Mandel fez uma tétrica descrição da sorte dos trinta milhões de desempregados na Europa e atacou a social-democracia por capitular ante os ditados deflacionistas do Bundesbank. Também ressaltou a contradição que existia entre o discurso de González e o fato de que vários milhares de jovens pacifistas e insubmissos estivessem apodrecendo nos cárceres enquanto eles debatiam. Estou seguro que foram muito poucos os que na sala, ou vendo os encontros pela televisão, não viram no frágil e septuagenário Ernest Mandel o vigoroso e principista defensor do socialismo e em González o miserável e comprometido prisioneiro dos poderosos.

Artigo originalmente publicado em New Left Review, n. 213, setembro-outubro de 1995, Londres. 


Notas

1 Ernest Mandel: “The Dialectic of Class and Región ¡n Belgium”, New Left Review n Q 20, Verano de 1963, pp. 5-31.

Ernest Mandel: TheLeninist Theory of Organization, en Robín Blackburn, ed., Revolution and Class Struggle: A reader in Marxist Politics, Londres 1977, p. 100. Traducción al español: La Teoría Leninista de la Organización, Ed. Era, México.

3 Ernest Mandel: “Where is America Going?, New Left Review nQ 54, marzo-abril de 1969, pp. 3-17. Traducción al español: ¿Dónde va América?, Ed. Anagrama, Barcelona.

4 Ernest Mandel: “Solzhenitsyn, Stalinism and the October Revolución”, New Left Review ns 86, Verano de 1974; “The Role of the Individual in History, The Case of the Second World War”, New Left Review n° 157, mayo-junio 1986.

5 Ernest Mandel: “In Defense of Socialist Planning”, New Left Review n° 159, setembro-outubro 1986. Nove respondeu a Mandel no número 161, e Mandel voltou a responder com “O Mito do Socialismo de Mercado” no nº 169. Outros participantes no debate foram Auerbach, Desai e Shamsavari, no nº 170, e Diane Elson no nº 179. Os textos de Mandel, Nove e Elson foram publicados em castelhano na Inprecor.

6Ernest Mandel: Power and Money, Ed. Verso, Londres 1992.


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