Greve dos caminhoneiros e a esquerda: impasses e desencontros

A maior parte do movimento sindical brasileiro e sua militância se mostrou desconfiada e hostil ao movimento.

Maycon Bezerra 5 jun 2018, 13:27

Cinco anos depois das jornadas de luta de 2013 e um ano depois da ocupação sindical e popular de Brasília que se seguiu à greve geral, os caminhoneiros se colocaram no centro do palco histórico do país dando um murro na mesa e demonstrando que o mal estar social que se acumula no país anseia por um canal para se expressar como ira e indignação popular. As duas últimas semanas foram marcadas por uma poderosa greve nacional de caminhoneiros que contou com uma adesão praticamente absoluta da categoria e ainda arrastou atrás de si a mobilização de diversas outras categorias de trabalhadores (ligadas diretamente ao transporte rodoviário, ou não) e o apoio da maioria da população brasileira.

Voltada contra a absurda e criminosa política de preços dos combustíveis e do gás de cozinha imposta por Pedro Parente à Petrobrás, que apenas no mês de maio fez os preços subirem mais de 10 vezes com uma elevação média total dos preços de cerca de 15%, a greve dos caminhoneiros estancou o transporte de cargas no Brasil, impondo um duro golpe à produção capitalista e levando ao desabastecimento das cidades de norte a sul do país. Agrupou em torno de si a revolta da imensa maioria do povo brasileiro que não suporta mais esse governo que ataca de modo implacável os direitos e os interesses dos trabalhadores. As seguidas altas no preço dos combustíveis e do gás de cozinha foram a gota d’água que fez transbordar o pote cheio pelo desmantelamento dos serviços públicos, pela recessão profunda, pelo desemprego em massa e pelo novo ressoar da miséria extrema e da fome.

A força imensa da greve revelou uma composição policlassista do movimento que reunia desde caminhoneiros assalariados até grandes empresas do setor de transporte, passando por uma massa de caminhoneiros autônomos e/ou proprietários de pequenas frotas (que formam a grande maioria entre os proprietários de caminhões de até 29 toneladas). Impulsionada por associações burocráticas, que logo perderam o controle do processo, a greve se alastrou como rastilho de pólvora articulada pelas redes sociais, revelando novamente a potência desses novos veículos de comunicação para a mobilização e organização das lutas populares. Foi também por esses meios que se veiculou a propaganda do movimento que rapidamente atraiu o apoio e a adesão de taxistas, mototaxista, motoristas de aplicativos, estivadores, pescadores e do povo trabalhador em geral, por todo o território nacional. As tentativas de desmonte da greve pelo conluio entre o governo Temer e as cúpulas burocráticas e patronais das associações fracassaram e o movimento apenas começou a se desagregar após o atendimento de toda a pauta de reivindicações dos caminhoneiros pelo governo e a repressão militarizada contra os setores mais dispostos a levar a luta ainda além.

Certamente, é possível afirmar que os caminhoneiros obtiveram uma vitória contra Temer que é também uma vitória do povo trabalhador. O governo ilegítimo e ultra corrupto a serviço do parasitismo financeiro e das corporações transnacionais, não apenas teve que ceder à pressão exercida de baixo para cima pela greve como perdeu Pedro Parente, um de seus mais importantes quadros e representante direto da elite rentista: derrubado pela vitória da greve. Mais longe do que foram, os caminhoneiros não poderiam ter ido sozinhos. Sem a solidariedade ativa do movimento sindical, com uma greve geral que afirmasse a classe trabalhadora como senhora do momento político do país, não foi possível ao movimento dos caminhoneiros isoladamente reduzir e congelar os preços da gasolina e do gás de cozinha, derrotar por completo a política privatista para a Petrobrás e derrubar o governo Temer, ou ao menos, impedir que fizesse a manobra de asfixiar ainda mais o orçamento dos serviços públicos para salvar os lucros dos acionistas/especuladores da Petrobrás.

Lamentavelmente, a maior parte do movimento sindical brasileiro e sua militância, ainda sob a direção política do lulismo, não apenas hesitou em manifestar apoio à greve dos caminhoneiros como, em grande medida, se mostrou desconfiada ou mesmo hostil ao movimento. Atrelada a uma narrativa e a um esquema interpretativo que combina uma “intransigência classista” de ocasião; uma nítida aversão a lutas populares não enquadradas sob sua direção; com um horizonte político de adesão incondicional às regras políticas desse regime burguês desregrado, mafioso e apodrecido, a maioria da militância sindical lulista e do chamado “campo político progressista” aguardou as ordens de militarização da greve por parte de Temer para desmobilizar a contrapropaganda que caracterizava a greve como um lockout reacionário (contrapropaganda que foi apropriada pelo governo e pela mídia patronal para legitimar a repressão) e ensaiar um posicionamento tímido de apoio à greve.

Assim como em junho de 2013, esse setor do movimento sindical e da “política progressista” nacional opôs à torrente de indignação população expressa em movimento de massa radicalizado, as objeções de um bom mocismo estéril que, em seus apelos por respeito à institucionalidade de um tal “estado democrático de direito” (um estranho entre nós, sobretudo entre a maioria dos mais pobres entre nós), serve apenas ao casamento entre as maquinações e interesses políticos de camarilha da direção lulista do PT, por um lado, e, por outro lado, a benevolente desconfiança dos setores médios “progressistas” e dos setores mais integrados da classe trabalhadora em relação às massas populares e sua formas de luta mais combativas.

É importante registrar que a direção lulista da CUT, no auge da tensão entre grevistas e governo, se propôs como mediadora do conflito entre as partes: uma posição ambígua e contraditória, quando o que o momento exigia era a tomada de posição clara em favor do movimento grevista e contra o governo ilegítimo. Sua movimentação mais efetiva foi a deflagração da greve dos petroleiros para o último dia 30, incorporando as exigências de fim da política rentista de preços da Petrobrás e pela demissão de Pedro Parente. No entanto, a greve petroleira não apenas chegou tarde para empalmar com a greve caminhoneira, como foi convocada já como uma greve por tempo determinado, “de alerta”, que foi derrotada em apenas um dia pela pressão da Justiça do Trabalho e pela falta de ânimo e disposição combativa da direção da FUP/CUT. A chamada “entrada em cena da classe trabalhadora”, (como alardearam os dirigentes cutistas e seus seguidores), anunciada como forma de dotar a mobilização popular de rechaço à alta dos combustíveis de uma direção autêntica, se esfacelou no ar, deixando a própria categoria petroleira, que aderiu nacionalmente à greve, no meio de uma debandada desorganizada da direção da FUP. As pequenas dimensões do setor classista da CSP Conlutas no interior da categoria petroleira o impediu de ser capaz de sustentar o esforço grevista.

Algumas lições do processo

Em primeiro lugar, é preciso tirar conclusões políticas sérias a respeito das hesitações e equívocos da maior parte da esquerda em todo esse processo. A substituição da “análise concreta da situação concreta” pela adoção de teorias conspiratórias sobre um iminente golpe de Estado envolvendo CIA, militares e caminhoneiros, baseadas em analogias descabidas e levianas com a derrubada de Allende no Chile em 1973 deve ser um exemplo do que não se pode aceitar numa conjuntura tão grave como a atual. Do mesmo modo, a postura pedante de exigir credenciais ideológicas límpidas e bem definidas de um movimento de massa combativo e nacionalizado, que arrasta atrás de si a maioria do povo trabalhador contra um governo odioso e reacionário em torno de exigências corretas e democráticas, é mais um absurdo inaceitável para qualquer esquerda que tenha a mínima pretensão de vencer com o povo e transformar o país.

Atribuir um sentido político reacionário à greve dos caminhoneiros por seu caráter policlassista, como fez uma boa parte da esquerda com base em argumentos supostamente marxistas, expressa outro grave erro político que deixaria o revolucionário alemão envergonhado. A tirania dos interesses rentistas dos especuladores imposta à Petrobrás e, de resto, ao conjunto do país, pelo governo Temer é tão exclusivista e articulada a uma oligarquização tão radical do regime político que não pode senão atrair a hostilidade e a oposição da classe trabalhadora e também de setores do empresariado que precisam abrir mão de parcelas crescentes de mais-valia para a aceleração da acumulação financeira no topo. Dessa forma, o caráter policlassista do movimento dos caminhoneiros expressa dois níveis diferentes de contradição a ser compreendidos: 1) a contradição entre os interesses rentistas no comando da Petrobrás, de um lado, e os interesses ligados ao negócio do transporte de carga, de outro lado (essa contradição principal permitia a construção de uma pauta mínima de reivindicações unificando diferentes setores da burguesia e pequena burguesia dos transportes e mesmo os trabalhadores assalariados do setor); e 2) a contradição entre a grande burguesia dos transportes, de um lado, e os caminhoneiros autônomos e assalariados, de outro (contradição que se manifestou como secundária mas efetiva na determinação dos rumos do movimento e na construção dos pontos de negociação com o governo).

Esses dois níveis de contradição postos no cenário da greve dos caminhoneiros exigia a caracterização do movimento como sendo progressivo, de caráter anti rentista e antioligárquico. Não por acaso atraiu a simpatia da imensa maioria do povo. Ainda assim, a forte presença de um setor empresarial organizado no interior do movimento grevista e a ausência de um polo mais consequentemente popular e classista em sua direção ou no suporte prático, explica muitos dos limites políticos do movimento. Por aí entraram as palavras de ordem de apoio à “intervenção militar”: insufladas por uma extrema direita que se lançou à disputa do sentido político da greve (enquanto a maior parte da esquerda virava-lhe as costas) e incorporada pela base dos caminhoneiros como sendo uma saída radical contra o governo Temer e as instituições falidas do regime estabelecido. Mais do que uma ditadura reacionária, as bases caminhoneiras que incorporaram tal palavra de ordem buscavam com ela uma saída de ruptura com o poder dos de cima (que apenas ganha espaço pelo vazio completo de saídas radicais postas pela esquerda na conjuntura). A presença das tropas do Exército na desmobilização da greve, no entanto, demonstrou para os caminhoneiros o sentido prático que as intervenções militares possuem para as lutas do povo trabalhador.

Diante de tudo isso, fica claro que a tarefa do sindicalismo classista e da esquerda anticapitalista nessa conjuntura complexa e crítica que atravessamos é participar dos movimentos de massa e das lutas de trabalhadores que se desenvolvem intensamente, mas de modo fragmentado, país afora. Não falta estado de ânimo combativo por parte da classe, mas há um vazio de direção política muito sério. Articular as lutas que se encontram dispersas, apresentando uma alternativa de direção é nosso dever. Ser peixe dentro d’água das movimentações e iniciativas de resistência de nosso povo é o mínimo que se exige de nosso campo político. Que estejamos mais firmes e mais lúcidos nas próximas oportunidades que a luta de classes colocar diante de nós.


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