O futuro é das mulheres — o do Doctor Who também

A série britânica terá pela primeira vez uma personagem mulher como protagonista. Uma série sobre tempo e espaço não pode ficar parada no tempo

Adria Meira 26 jul 2017, 11:55

Doctor Who é uma série britânica produzida pela emissora BBC desde 1963, dona de um legado histórico e de alcance mundial. Desde seu lançamento, foram 12 doutores interpretados por 12 atores diferentes. O enredo é simples: Um viajante no tempo e no espaço luta contra o mal e a injustiça em todo o Universo. Ele é um “Senhor do Tempo” cujo nome e sobrenome são desconhecidos, dono de uma nave espacial que é uma icônica cabine policial azul e que tem a habilidade de se regenerar e assim transformar sua aparência física e sua personalidade, conservando sua história e suas lembranças. Em meio a tantas mudanças sofridas pelo protagonista, uma pareceu nunca ser alvo de profunda consideração: o seu gênero.

Até agora. No domingo passado (15), enquanto muitos ainda estavam eufóricos com a vitória de Roger Federer sobre Marin Cilic na final masculina do Wimbledon 2017, a qual rendeu ao suíço o título de maior campeão homem do Grand Slam britânico, a BBC decidiu que era tempo de anunciar mais uma notícia bombástica.

O trailer de um minuto exibido dizia pouco sobre a próxima temporada da série, com exceção de um não-tão-pequeno detalhe. Aos 40s confirmou-se um boato que tomava a internet há dias: a 13º personalidade do doutor seria, na verdade, uma doutora. Parece que após 54 anos, a BBC decidiu pensar fora da Tardis e criar, enfim, a primeira doutora da série.

O Doctor sempre foi tido como sinônimo de um homem, branco e, na maior parte dos casos, velho. Às mulheres da série cabia sempre um papel secundário, com uma identidade rasa e muito distante da complexidade dos demais personagens, cuja função poderia se resumir a auxiliar o protagonista a aprender alguma lição valiosa. Reforçando um estereótipo machista relativo ao comportamento feminino, foram personagens adoráveis e divertidas, mas que apareciam mais como submissas ao personagem masculino do que como uma parte realmente complexa e fundamental para o desenrolar da trama — salvo raras exceções, para não ser completamente injusta com Sarah Jane, Leela, Romana e Martha Jones.

Mas isso não deve ser visto como uma exclusividade da série britânica, mas quase como uma regra na indústria do Audiovisual e, mais ainda, como um reflexo da nossa própria sociedade, todas dominada justamente por homens. Vivemos sob a estrutura do patriarcalismo, que tem como base a dominação masculina sobre a feminina, no qual cabe ao homem ocupar as posições de autoridade e poder e às mulheres o de submissão. Enquanto o primeiro é sinônimo de superioridade, o segundo é de inferioridade. Esta é base de sustentação das desigualdade de gênero, que beneficia sistematicamente os homens em detrimento das mulheres.

Façamos um recorte a partir do setor Audiovisual. De acordo com o dados de 2015 do Sindicato de Diretores dos Estados Unidos, as mulheres ocupam apenas 16% dos postos de direção de séries de TV — aberta e fechada, com grade de programação e on demand. Esse é grandes problemas, pois sem mulheres em postos de direção, diminuem também o número de mulheres protagonistas. Vejamos por outro ângulo: em casos de homens na direção, o protagonismo é um personagem masculino, ao passo que quando há uma mulher na direção, o protagonismo feminino emerge, além de as diretoras trazerem outras mulheres para as funções principais. Prova disso é que quando há uma diretora e/ou uma roteirista em uma produção, o protagonismo é das mulheres em 50% dos casos. No caso de um diretor/ roteirista, o índice é de somente 13%.

A ausência de mulheres é um problema com raízes tão profundas que até mesmo foi criado um método rápido e simples para avaliar o machismo e analisar a representação de gênero em uma produção. Para passar no Teste de Bechdel, é preciso que haja duas personagens femininas com nome, que conversem entre si por, no mínimo, 60 segundos e que o tópico da conversa não seja um homem. Os parâmetros podem soar triviais, porém — surpreendentemente, ou não — muitos filmes não conseguem passar no teste.

A recente publicação “Preconceito de Gênero sem Fronteiras: Uma Pesquisa sobre Personagens Femininos em Filmes Populares em 11 Países” mostrou que apenas 30,9% dos personagens que têm fala ou ao mesmo que têm nome são mulheres, em um universo em que apenas 23,3% das tramas têm mulheres no papel principal. Para além disso, é importante ressaltar também que essa baixíssima representação em grande parte dos casos é feita de forma pejorativa, hipersexualizada e de acordo com padrões estéticos (ou seja, são mulheres branca e magra), reproduzindo clichês de gênero.

Mas as coisas estão mudando. O levantamento do Center for the Study of Women in Television and Film, da Universidade de San Diego, mostra que a representatividade de mulheres aumentou em 2016, sendo este o ano com maior número de protagonistas mulheres nos filmes de maior bilheteria, contabilizando um aumento de 7% em relação a 2015.

Isso é muito importante, levando em consideração que o cinema e a televisão exercem um papel fundamental na formação de opiniões e de identidades. São ferramentas capazes de formar e influenciar padrões cotidianos, criando e espalhando imagens a partir das quais o espectador consiga se enxergar em algum personagem. O impacto é gigantesco, para o público de todas as idades. É fundamental ressaltar que representatividade não é meramente inserir um personagem que atenda a uma determinada característica, mas sim fazê-lo de forma eficaz, real e com qualidade. Não basta “estar lá”, é preciso estar da forma certa, sem estereótipos e de forma a potencializar sua identidade e suas ideias. E o que acontece se não nos enxergamos em nenhum personagem? Isso vale somente para reforçar a ideia de que certas funções são necessariamente delegadas a certos personagens — ou pessoas –, ou, pior ainda, que não somos capazes de cumprir tais funções.

Esse é um ponto crucial, em especial para as minorias. A nossa sociedade moldada como é hoje induz ao pensamento de que homens são sinônimos de seres humanos em geral. Mais que isso — o homem branco, heterossexual e cis é tido como sinônimo da humanidade, e — infelizmente — esse valor ainda é considerado universal.

O que não equivale a dizer que seja eterno — pelo contrário, tem sido cada vez mais pautado e questionado. Se é verdade que tudo o que é sólido se desmancha no ar, vemos que os discursos defensores e sustentadores da desigualdade de gênero estão paulatinamente perdendo sua legitimidade. Do espaço privado ao público — incluindo aqui as grandes arenas de disputa coletiva, como a mídia — o último período tem sido marcado por um ascenso global da luta das mulheres por igualdade de direitos.

O feminismo tem ganhado cada vez mais espaço e visibilidade, sendo disseminado de forma massiva. Exemplo disso é a histórica greve internacional de mulheres que ocorreu no último 8 de março sob o mote “se nossas vidas não importam, que produzam sem nós”, unindo de forma fundamental – como não poderia deixar de ser – as questões de gênero e classe. Ainda, no Brasil, a mobilização das mulheres foi determinante para a prisão do ex-presidente da Câmara e deputado Eduardo Cunha, assim como na Argentina as mulheres fizeram manifestações gigantescas para protestar contra a violência machista e feminicídios, ao passo que nos Estados Unidos as mulheres constituem um dos maiores pólos de resistência contra o misógino presidente Donald Trump.

Estamos em movimento. Cada vez mais mulheres têm ocupado todo tipo de espaço. Os espaços de tomada de decisão, de ação, de questionamento. Da política à arte, passando pelo audiovisual. Valente, Mad Max: Imperatriz Furiosa, Mulher Maravilha, Star Wars: O Despertar da Força, Orange is the New Black, The Fall, Sense8, Grey’s Anatomy e Jessica Jones são, cada uma com suas devidas proporções, exemplos de produções recentes que não só integram mulheres, como as colocaram no centro da questão. Mulheres que também são negras, lésbicas e transsexuais. Mulheres donas de suas próprias narrativas. O nosso futuro em nossas mãos.

É isso o que esperamos da próxima temporada de Doctor Who. Foi emblemático o anúncio de Jodie Whittaker como a nova intérprete do Doctor após a final masculina de Wimbledon. De inúmeras formas, o recado era evidente: acabou o tempo em que os homens dominam a tela. Eles saem, elas entram. E para os fãs da série que ainda estão perplexos com a novidade, uma reflexão gramatical proposta pela editora Merriam Webster: o termo doctor, em inglês, não tem gênero. Mas, na verdade, isso é quase irrelevante. Uma série sobre tempo e espaço não pode ficar parada no tempo. Afinal, o Doctor sempre se moldou por ideias de justiça, igualdade e resistência contra aqueles que tentam dominar e destruir. A série sempre foi sobre mudanças. E, convenhamos — se já aceitamos que o doctor é um alienígena, já passou da hora de aceitar que é uma mulher.


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