Sobre o discurso de Guilherme Boulos na Conferência Cidadã

O dirigente do MES analisa o discurso do pré-candidato que deixou inúmeras questões políticas e programáticas sem resposta.

Pedro Serrano 5 mar 2018, 15:28

O discurso de Guilherme Boulos na Conferência Cidadã do último sábado — evento organizado pela Frente Povo Sem Medo em parceria com Mídia Ninja e Paula Lavigne com o intuito de lançar Boulos como pré-candidato à presidência pelo PSOL — deixou inúmeras questões políticas e programáticas sem resposta. Do ponto de vista de quem se preocupa com a construção de uma alternativa de poder no Brasil assentada na ruptura com o regime político e econômico vigente, é indispensável debater esses temas.

Não se trata de exigir que num discurso de 26 minutos todas as soluções sejam abordadas, ou que o eixo de intervenção seja propagandista em torno de um programa máximo. Ocorre que a “moderação” de candidaturas radicais é uma característica do sistema político brasileiro, em que predomina, como em outras partes do mundo, a tendência para o centro. Buscando viabilidade eleitoral, substitui-se contundência por abstração, enfrentamento por “consenso”.

Por esse caminho, o lulismo construiu sua viabilidade eleitoral, traiu as pautas históricas da classe trabalhadora e responsabilizou-se pela gestão do Estado capitalista sem atacar nenhum dos interesses centrais da elite nacional e internacional. Está fora de questão a definição de que Boulos localiza-se à esquerda deste processo, o que já em si é importante. Mas não é descartado que sua moderação, ou seja, sua “ida ao centro” se dê até o justo limite do PT, na esperança de que tudo e todos que se encontram um milímetro à esquerda do lulismo sejam imantados, automaticamente, para a nova “esquerda radical viável”, desde que esta não se apresente como “inconsequente”.

Se eleitoralmente tal estratégia já é questionável — afinal a “viabilidade eleitoral” do PSOL dentro das regras vigentes está a anos-luz de distância da “viabilidade do PT”, o que leva ao risco do “voto útil” esvaziar candidaturas que não se diferenciem abertamente —, do ponto de vista da construção de uma alternativa de poder sintonizada com a luta e que vise à ruptura, trata-se de uma tragédia.

Isso porque no estágio da crise brasileira e do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo, qualquer conquista para a classe trabalhadora, por menor que seja, dificilmente se efetivará sem níveis elevados de enfrentamento e sem questionar de forma aberta os interesses das grandes corporações e das castas. Já não é possível repaginar a esperança num certo tipo de democracia falida se se quiser falar a sério, com as multidões brasileiras, sobre emprego, moradia, saúde, educação, terra, meio ambiente, violência, racismo, liberdades ou qualquer demanda básica.

O discurso de Guilherme Boulos ensaiou uma opção desse perfil nos momentos em que atacou o “1% que comanda o Estado”, as “grandes corporações” ou em que denunciou o absurdo tributário nacional que beneficia os bilionários em detrimento dos trabalhadores e das camadas médias. Contudo, na maior parte do tempo, sua opção foi de simplesmente exaltar a própria Conferência Cidadã, a diversidade ali presente e de defender em abstrato um “projeto novo e diferente, democrático e sonhador”, que “resgate a esperança” e construa um “novo futuro”.

Esse tipo de discurso — propício para as captações de imagem da Midía Ninja, mas pouco útil para a delimitação de um projeto sólido — deve ser visto de forma crítica. Tanto mais na medida em que o próprio Boulos dá seguidas demonstrações de aproximação com o “campo político” de Lula.

Destaco 5 pontos que estiveram ausentes na fala de Boulos:

1) Uma crítica frontal aos pesos-pesados da economia, como bancos, empreiteiras e o agronegócio. Não é possível falar de um “outro futuro” para o país sem atacar os interesses dos principais responsáveis pelo nosso subdesenvolvimento, pela pobreza e crise no seio da população brasileira, no campo e na cidade. Da noção (muito importante para o diálogo de massas) do enfrentamento entre os 99% e o 1% da população, deve-se descer para o concreto, nomeando o que deve mudar numa política econômica praticamente estável desde os governos FHC, a tragédia do “ensaio desenvolvimentista” do PT etc.

2) Uma crítica frontal ao sistema político brasileiro e uma denúncia da falência da Nova República, usando ou não este conceito de maneira literal. Boulos denunciou o “balcão falido do presidencialismo de coalizão”, o que é importante porém não não o suficiente. O conjunto das instituições do Estado brasileiro está em colapso, desacreditado frente às massas por conta de seu próprio caráter antipovo, e a ideia de ruptura precisa ser canalizada pela esquerda, sob pena de vermos crescer Bolsonaro. A “participação popular” que Boulos corretamente aponta será impossível no seio de um regime falido.

3) A abordagem pela esquerda de um problema com apelo de massas: a corrupção. Se a ideia de Boulos é “sair das bolhas” e falar com as massas — orientação correta —, como se omitir a respeito da pauta restringindo-se na prática à bolha do campo petista, que tem evidentes motivos para encarar o tema como tabu? Uma esquerda radical deve defender enfaticamente o desmonte dos esquemas sujos do capitalismo, a punição dos corruptos e dos corruptores, com a expropriação das megaempresas que destruíram a democracia brasileira, e o combate dos privilégios de toda ordem da casta política e jurídica nacional. É possível assumir esse perfil mesmo sustentando, como Boulos sustenta, uma visão crítica da Lava-Jato, afinal, não é por se criticar uma investigação que se deve ignorar a existência objetiva da corrupção.

4) Junho de 2013. Não houve sequer uma menção à data. O maior ciclo de mobilizações de massa das últimas três décadas no Brasil não entrou no radar das elaborações políticas. Precisamos de um candidato que vocalize, como Luciana Genro em 2014, o que diziam as vozes das ruas: tarifa zero, democracia real, desmilitarização das políticas, combate à Rede Globo, dinheiro para saúde e educação e não para as empreiteiras, entre outras demandas. Tanto quanto a virada política marcada pelo golpe parlamentar de 2016, junho de 2013 é central para analisar a sério o Brasil e propor uma saída. Com uma diferença: enquanto, do golpe para cá, a antiga oposição de esquerda desloca-se para o mesmo “campo” do petismo, em 2013 estávamos nas ruas (inclusive o MTST) ao lado de uma nova e inexperiente geração de trabalhadores desorganizados, enquanto o campo dos governos de Haddad, Alckmin, Dilma, Cabral e outros, aliados à grande mídia e aos aparelhos de repressão, tinha plena unidade entre si.

5) Um plano de emergência para o enfrentamento da crise brasileira e de seus efeitos sociais mais intensos, apontando a necessidade de derrubada do governo Temer e de novas greves gerais como a de abril de 2017. Ao contrário de Lula, certamente Boulos não considera que foi a Rede Globo quem buscou dar um golpe em Temer. O desmonte sistemático da luta encabeçado por centrais como CUT, CTB e Força Sindical precisaria ter numa esquerda radical, possivelmente representada por Boulos, um contraponto de chamado à mobilização nacional. O próprio MTST, no âmbito da luta por moradia, dá exemplo nesse sentido, como na gigantesca ocupação em São Bernardo.

É improvável que uma estratégia política de aproximação com o lulismo não acarrete problemas de ordem programática, pelo simples fato de que não se pode discutir um programa real e de esquerda para o Brasil sem um balanço do período recente. E caso se faça um balanço, é obrigatório apontar que os governos petistas são parte dos problemas que, agora, manifestam-se de maneira mais aguda sob Temer. Se é verdade que PT, PSDB e MBD não são iguais, mais verdade ainda é que a esquerda representada pelo PSOL não é, nem nunca foi, igual ao PT.

Seria obrigação da direção partidária estar à frente dessa discussão com Boulos. Sua disposição em candidatar-se pelo PSOL deve nos honrar, mas não pode estar dissociada de um debate programático sólido e de um método de envolvimento da base partidária, que é numerosa e possui acúmulo histórico de mais de 10 anos. Qualquer opção que não vá nesse sentido tende a enfraquecer tanto PSOL como Boulos.

Também não é adequado que setores políticos independentes da direção partidária, como os camaradas do MAIS, em nome da busca de uma “política ampla” de que tiveram afastados por longo tempo enquanto compunham o PSTU, esquivem-se de debater com Boulos, e de combater internamente ao PSOL, pela qualificação de seu perfil. A evidência de que o lulismo atua sob Boulos em busca de domesticar o PSOL não deve estimular nos setores consequentes o sectarismo, mas tampouco deve conduzir à adesão acrítica quando abundam demonstrações de distorção de nossa política partidária. O vídeo de Lula na Conferência Cidadã não é um detalhe. É, sim, um indício preocupante do que desde agora se deve combater politicamente, em defesa do PSOL como uma ferramenta da classe trabalhadora brasileira para a revolução.

Por mais adiado que venha sendo, um encontro entre Boulos, os articuladores até aqui de sua candidatura e a base partidária está agendado para o sábado próximo, 10/03, na Conferência Eleitoral do PSOL. Mais do que organizar os aplausos acríticos, devemos preparar o bom debate, para este evento e todo o período subsequente.


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Pedro Micussi