Manifesto do Partido Comunista

Aproveitamos o bicentenário do nascimento de Marx para publicar em nosso site a obra que é uma das fundações do comunismo cientifico.

Friedrich Engels e Karl Marx 5 maio 2018, 12:53

Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães.

Onde está o partido de oposição que não tivesse sido vilipendiado pelos seus adversários no governo como comunista, onde está o partido de oposição que não tivesse arremessado de volta, tanto contra os oposicionistas mais progressistas como contra os seus adversários reaccionários, a recriminação estigmatizante do comunismo?

Deste facto concluem-se duas coisas.

O comunismo já é reconhecido por todos os poderes europeus como um poder.

Já é tempo de os comunistas exporem abertamente perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objectivos, as suas tendências, e de contraporem à lenda do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido.

Com este objectivo reuniram-se em Londres comunistas das mais diversas nacionalidades e delinearam o Manifesto seguinte, que é publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês

I – Burgueses e Proletários

A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes.

[Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo [Leibeigener], burgueses de corporação [Zunftbürger] e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.

Nas anteriores épocas da história encontramos quase por toda a parte uma articulação completa da sociedade em diversos estados [ou ordens sociais — Stände], uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média: senhores feudais, vassalos, burgueses de corporação, oficiais, servos, e ainda por cima, quase em cada uma destas classes, de novo gradações particulares.

A moderna sociedade burguesa, saída do declínio da sociedade feudal, não aboliu as oposições de classes. Apenas pôs novas classes, novas condições de opressão, novas configurações de luta, no lugar das antigas.

A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado as oposições de classes. A sociedade toda cinde-se, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes que directamente se enfrentam: burguesia e proletariado.

Dos servos da Idade Média saíram os Pfahlbürger 1 das primeiras cidades; desta Pfahlbürgerschaft desenvolveram-se os primeiros elementos da burguesia [Bourgeoisie].

O descobrimento da América, a circum-navegação de África, criaram um novo terreno para a burguesia ascendente. O mercado das Índias orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio [Austausch] com as colónias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria, um surto nunca até então conhecido, e, com ele, um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em desmoronamento.

O modo de funcionamento até aí feudal ou corporativo da indústria já não chegava para a procura que crescia com novos mercados. Substituiu-a a manufactura. Os mestres de corporação foram desalojados pelo estado médio [Mittelstand] industrial; a divisão do trabalho entre as diversas corporações [Korporationen] desapareceu ante a divisão do trabalho na própria oficina singular.

Mas os mercados continuavam a crescer, a procura continuava a subir. Também a manufactura já não chegava mais. Então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. Para o lugar da manufactura entrou a grande indústria moderna; para o lugar do estado médio industrial entraram os milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgueses modernos.

A grande indústria estabeleceu o mercado mundial que o descobrimento da América preparara. O mercado mundial deu ao comércio, à navegação, às comunicações por terra, um desenvolvimento imensurável. Este, por sua vez, reagiu sobre a extensão da indústria, e na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação, os caminhos-de-ferro se estenderam, desenvolveu-se a burguesia, multiplicou os seus capitais, empurrou todas as classes transmitidas da Idade Média para segundo plano.

Vemos, pois, como a burguesia moderna é ela própria o produto de um longo curso de desenvolvimento, de uma série de revolucionamentos no modo de produção e de intercâmbio [Verkehr].

Cada um destes estádios de desenvolvimento da burguesia foi acompanhado de um correspondente progresso político. Estado [ou ordem social — Stand] oprimido sob a dominação dos senhores feudais, associação armada e auto-administrada na comuna, aqui cidade-república independente, além terceiro-estado na monarquia sujeito a impostos, depois ao tempo da manufactura contrapeso contra a nobreza na monarquia de estados [ou ordens sociais — ständisch] ou na absoluta, base principal das grandes monarquias em geral — ela conquistou por fim, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, a dominação política exclusiva no moderno Estado representativo. O moderno poder de Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa.

A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário.

A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento a pronto”. Afogou o frémito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada, aberta.

A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.

A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.

A burguesia pôs a descoberto como a brutal exteriorização de força, que a reacção tanto admira na Idade Média, tinha na mais indolente mandriice o seu complemento adequado. Foi ela quem primeiro demonstrou o que a actividade dos homens pode conseguir. Realizou maravilhas completamente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, levou a cabo expedições completamente diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas.2

A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a condição primeira de existência de todas as anteriores classes industriais. O permanente revolucionamento da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que era dos estados [ou ordens sociais — ständisch] e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas.

A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contactos em toda a parte.

A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reaccionários, tirou à indústria o solo nacional onde firmava os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas, e são ainda diariamente aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que já não laboram matérias-primas nativas, mas matérias-primas oriundas das zonas mais afastadas, e cujos fabricos são consumidos não só no próprio país como simultaneamente em todas as partes do mundo. Para o lugar das velhas necessidades, satisfeitas por artigos do país, entram [necessidades] novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos países e dos climas mais longínquos. Para o lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio omnilateral, uma dependência das nações umas das outras. E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os artigos espirituais das nações singulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.

A burguesia, pelo rápido melhoramento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos das suas mercadorias são a artilharia pesada com que deita por terra todas as muralhas da China, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros ao estrangeiro. Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da burguesia, se não quiserem arruinar-se; compele-as a introduzirem no seu seio a chamada civilização, i. é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.

A burguesia submeteu o campo à dominação da cidade. Criou cidades enormes, aumentou num grau elevado o número da população urbana face à rural, e deste modo arrancou uma parte significativa da população à idiotia [Idiotismus] da vida rural. Assim como tornou dependente o campo da cidade, [tornou dependentes] os países bárbaros e semibárbaros dos civilizados, os povos agrícolas dos povos burgueses, o Oriente do Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária disto foi a centralização política. Províncias independentes, quase somente aliadas, com interesses, leis, governos e direitos alfandegários diversos, foram comprimidas numa nação, num governo, numa lei, numinteresse nacional de classe, numa linha aduaneira.

A burguesia, na sua dominação de classe de um escasso século, criou forças de produção mais massivas e mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. Subjugação das forças da Natureza, maquinaria, aplicação da química à indústria e à lavoura, navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos rios, populações inteiras feitas saltar do chão — que século anterior teve ao menos um pressentimento de que estas forças de produção estavam adormecidas no seio do trabalho social?

Vimos assim que: os meios de produção e de intercâmbio sobre cuja base se formou a burguesia foram gerados na sociedade feudal. Num certo estádio do desenvolvimento destes meios de produção e de intercâmbio, as relações em que a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufactura — numa palavra, as relações de propriedade feudais — deixaram de corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a fomentarem. Transformaram-se em outros tantos grilhões. Tinham de ser rompidas e foram rompidas.

Para o seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição social e política a ela adequada, com a dominação económica e política da classe burguesa.

Um movimento semelhante processa-se diante dos nossos olhos. As relações burguesas de produção e de intercâmbio, as relações de propriedade burguesas, a sociedade burguesa moderna que desencadeou meios tão poderosos de produção e de intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue dominar as forças subterrâneas que invocara. De há decénios para cá, a história da indústria e do comércio é apenas a história da revolta das modernas forças produtivas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que são as condições de vida da burguesia e da sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, na sua recorrência periódica, põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises comerciais é regularmente aniquilada uma grande parte não só dos produtos fabricados como das forças produtivas já criadas. Nas crises irrompe uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas anteriores — a epidemia da sobreprodução. A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie; parece-lhe que uma fome, uma guerra de aniquilação universal lhe cortaram todos os meios de subsistência; a indústria, o comércio, parecem aniquilados. E porquê? Porque ela possui demasiada civilização, demasiados meios de vida, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas que estão à sua disposição já não servem para promoção das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, e são por elas tolhidas; e logo que triunfam deste tolhimento lançam na desordem toda a sociedade burguesa, põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada. — E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados. De que modo, então? Preparando crises mais omnilaterais e mais poderosas, e diminuindo os meios de prevenir as crises.

As armas com que a burguesia deitou por terra o feudalismo viram-se agora contra a própria burguesia.

Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte; também gerou os homens que manejarão essas armas — os operários modernos, os proletários.

Na mesma medida em que a burguesia, i. é, o capital se desenvolve, nessa mesma medida desenvolve-se o proletariado, a classe dos operários modernos, os quais só vivem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o capital. Estes operários, que têm de se vender à peça, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, e estão, por isso, igualmente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mercado.

O trabalho dos proletários perdeu, com a extensão da maquinaria e a divisão do trabalho, todo o carácter autónomo e, portanto, todos os atractivos para os operários. Ele torna-se um mero acessório da máquina ao qual se exige apenas o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Os custos que o operário ocasiona reduzem-se por isso quase só aos meios de vida de que carece para o seu sustento e para a reprodução da sua raça. O preço de uma mercadoria, portanto também do trabalho3 é, porém, igual aos seus custos de produção. Na mesma medida em que cresce a repugnância [causada] pelo trabalho decresce portanto o salário. Mais ainda: na mesma medida em que aumentam a maquinaria e a divisão do trabalho, na mesma medida sobe também a massa do trabalho, seja pelo créscimo das horas de trabalho seja pelo acréscimo do trabalho exigido num tempo dado, pelo funcionamento acelerado das máquinas, etc.

A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de operários, comprimidos na fábrica, são organizadas como soldados. São colocadas, como soldados rasos da indústria, sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais subalternos e oficiais. Não são apenas servos [Knechte] da classe burguesa, do Estado burguês; dia a dia, hora a hora, são feitos servos da máquina, do vigilante, e sobretudo dos próprios burgueses fabricantes singulares. Este despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso, mais exasperante, quanto mais abertamente proclama ser o provento o seu objectivo.

Quanto menos habilidade e exteriorização de força o trabalho manual exige, i. é, quanto mais a indústria moderna se desenvolve, tanto mais o trabalho dos homens é desalojado pelo das mulheres. Diferenças de sexo e de idade já não têm qualquer validade social para a classe operária. Há apenas instrumentos de trabalho que, segundo a idade e o sexo, têm custos diversos.

Se a exploração do operário pelo fabricante termina na medida em que recebe o seu salário pago de contado, logo lhe caem em cima as outras partes da burguesia: o senhorio, o merceeiro, o penhorista [Pfandleiher], etc.

Os pequenos estados médios [Mittelstände] até aqui, os pequenos industriais, comerciantes e rentiers, os artesãos e camponeses, todas estas classes caem no proletariado, em parte porque o seu pequeno capital não chega para o empreendimento da grande indústria e sucumbe à concorrência dos capitalistas maiores, em parte porque a sua habilidade é desvalorizada por novos modos de produção. Assim, o proletariado recruta-se de todas as classes da população.

O proletariado passa por diversos estádios de desenvolvimento. A sua luta contra a burguesia começa com a sua existência.

No começo são os operários singulares que lutam, depois os operários de uma fábrica, depois os operários de um ramo de trabalho numa localidade contra o burguês singular que os explora directamente. Dirigem os seus ataques não só contra as relações de produção burguesas, dirigem-nos contra os próprios instrumentos de produção; aniquilam as mercadorias estrangeiras concorrentes, destroçam as máquinas, deitam fogo às fábricas, procuram recuperar a posição desaparecida do operário medieval. Neste estádio os operários formam uma massa dispersa por todo o país e dividida pela concorrência. A coesão maciça dos operários não é ainda a consequência da sua própria união, mas a consequência da união da burguesia, a qual, para atingir os seus objectivos políticos próprios, tem de pôr em movimento o proletariado todo, e por enquanto ainda o pode. Neste estádio os proletários combatem, pois, não os seus inimigos, mas os inimigos dos seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprietários fundiários, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico está, assim, concentrado nas mãos da burguesia; cada vitória assim alcançada é uma vitória da burguesia.

Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não apenas se multiplica; é comprimido em massas maiores, a sua força cresce, e ele sente-a mais. Os interesses, as situações de vida no interior do proletariado tornam-se cada vez mais semelhantes, na medida em que a maquinaria vai obliterando cada vez mais as diferenças do trabalho e quase por toda a parte faz descer o salário a um mesmo nível baixo. A concorrência crescente dos burgueses entre si e as crises comerciais que daqui decorrem tornam o salário dos operários cada vez mais oscilante; o melhoramento incessante da maquinaria, que cada vez se desenvolve mais depressa, torna toda a sua posição na vida cada vez mais insegura; as colisões entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o carácter de colisões de duas classes. Os operários começam por formar coalisões contra os burgueses; juntam-se para a manutenção do seu salário. Fundam eles mesmos associações duradouras para se premunirem para as insurreições ocasionais. Aqui e além a luta irrompe em motins.

De tempos a tempos os operários vencem, mas só transitoriamente. O resultado propriamente dito das suas lutas não é o êxito imediato, mas a união dos operários que cada vez mais se amplia. Ela é promovida pelos meios crescentes de comunicação, criados pela grande indústria, que põem os operários das diversas localidades em contacto uns com os outros. Basta, porém, este contacto para centralizar as muitas lutas locais, por toda a parte com o mesmo carácter, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas toda a luta de classes é uma luta política. E a união, para a qual os burgueses da Idade Média, com os seus caminhos vicinais, precisavam de séculos, conseguem-na os proletários modernos com os caminhos-de-ferro em poucos anos.

Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em partido político, é rompida de novo a cada momento pela concorrência entre os próprios operários. Mas renasce sempre, mais forte, mais sólida, mais poderosa. Força o reconhecimento de interesses isolados dos operários em forma de lei, na medida em que tira proveito das cisões da burguesia entre si. Assim [aconteceu] em Inglaterra com a lei das dez horas.4

De um modo geral, as colisões da velha sociedade promovem, de muitas maneiras, o curso de desenvolvimento do proletariado. A burguesia acha-se em luta permanente: de começo contra a aristocracia; mais tarde, contra os sectores da própria burguesia cujos interesses entram em contradição com o progresso da indústria; sempre, contra a burguesia de todos os países estrangeiros. Em todas estas lutas vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a recorrer à sua ajuda, e deste modo a arrastá-lo para o movimento político. Ela própria leva, portanto, ao proletariado os seus elementos de formação próprios, ou seja, armas contra ela própria.

Além disto, como vimos, sectores inteiros da classe dominante, pelo progresso da indústria, são lançados no proletariado, ou pelo menos vêem-se ameaçadas nas suas condições de vida. Também estes levam ao proletariado uma massa de elementos de formação.

Por fim, em tempos em que a luta de classes se aproxima da decisão, o processo de dissolução no seio da classe dominante, no seio da velha sociedade toda, assume um carácter tão vivo, tão veemente, que uma pequena parte da classe dominante se desliga desta e se junta à classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Assim, tal como anteriormente uma parte da nobreza se passou para a burguesia, também agora uma parte da burguesia se passa para o proletariado, e nomeadamente uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram elevar-se a um entendimento teórico do movimento histórico todo.

De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes vão-se arruinando e soçobram com a grande indústria; o proletariado é o produto mais característico desta.

Os estados médios [Mittelstände] — o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês —, todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reaccionários, procuram fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado.—

O lumpenproletariado, esta putrefacção passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, é aqui e além atirado para o movimento por uma revolução proletária, e por toda a sua situação de vida estará mais disposto a deixar-se comprar para maquinações reaccionárias.

As condições de vida da velha sociedade estão aniquiladas já nas condições de vida do proletariado. O proletário está desprovido de propriedade; a sua relação com a mulher e os filhos já nada tem de comum com a relação familiar burguesa; o trabalho industrial moderno, a subjugação moderna ao capital, que é a mesma na Inglaterra e na França, na América e na Alemanha, tirou-lhe todo o carácter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se escondem outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes anteriores que conquistaram a dominação procuraram assegurar a posição na vida já alcançada, submetendo toda a sociedade às condições do seu proveito. Os proletários só podem conquistar as forças produtivas sociais abolindo o seu próprio modo de apropriação até aqui e com ele todo o modo de apropriação até aqui. Os proletários nada têm de seu a assegurar, têm sim de destruir todas as seguranças privadas e asseguramentos privados.

Todos os movimentos até aqui foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autónomo da maioria imensa no interesse da maioria imensa. O proletariado, a camada mais baixa da sociedade actual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superstrutura [Überbau] das camadas que formam a sociedade oficial. Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.

Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, seguimos de perto a guerra civil mais ou menos oculta no seio da sociedade existente até ao ponto em que rebenta numa revolução aberta e o proletariado, pelo derrube violento da burguesia, funda a sua dominação.

Toda a sociedade até aqui repousava, como vimos, na oposição de classes opressoras e oprimidas. Mas para se poder oprimir uma classe, têm de lhe ser asseguradas condições em que possa pelo menos ir arrastando a sua existência servil. O servo [Leibeigene] conseguiu chegar, na servidão, a membro da comuna, tal como o pequeno burguês [Kleinbürger] a burguês [Bourgeois] sob o jugo do absolutismo feudal. Pelo contrário, o operário moderno, em vez de se elevar com o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais abaixo das condições da sua própria classe. O operário torna-se num indigente [Pauper] e o pauperismo [Pauperismus] desenvolve-se ainda mais depressa do que a população e a riqueza. Torna-se com isto evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como lei reguladora as condições de vida da sua classe. Ela é incapaz de dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo a própria existência no seio da escravidão, porque é obrigada a deixá-lo afundar-se numa situação em que tem de ser ela a alimentá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade não pode mais viver sob ela [ou seja, sob a dominação da burguesia], i. é, a vida desta já não é compatível com a sociedade.

A condição essencial para a existência e para a dominação da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de privados, a formação e multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado repousa exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora, involuntária e sem resistência, coloca no lugar do isolamento dos operários pela concorrência a sua união revolucionária pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo dos pés da burguesia a própria base sobre que ela produz e se apropria dos produtos. Ela produz, antes do mais, o seu próprio coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

II – Proletários e Comunistas

Em que relação se encontram os comunistas com os proletários em geral?

Os comunistas não são nenhum partido particular face aos outros partidos operários.

Não têm nenhuns interesses separados dos interesses do proletariado todo.

Não estabelecem nenhuns princípios particulares segundo os quais queiram moldar o movimento proletário.

Os comunistas diferenciam-se dos demais partidos proletários apenas pelo facto de que, por um lado, nas diversas lutas nacionais dos proletários eles acentuam e fazem valer os interesses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado todo, e pelo facto de que, por outro lado, nos diversos estádios de desenvolvimento por que a luta entre o proletariado e a burguesia passa, representam sempre o interesse do movimento total.

Os comunistas são, pois, na prática [praktisch], o sector mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm, sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário.

O objectivo mais próximo dos comunistas é o mesmo do que o de todos os restantes partidos proletários: formação do proletariado em classe, derrubamento da dominação da burguesia, conquista do poder político pelo proletariado.

As proposições teóricas dos comunistas não repousam de modo nenhum em ideias, em princípios, que foram inventados ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo.

São apenas expressões gerais de relações efectivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos. A abolição de relações de propriedade até aqui não é nada de peculiarmente característico do comunismo.

Todas as relações de propriedade estiveram submetidas a uma constante mudança histórica, a uma constante transformação histórica.

A Revolução Francesa, p. ex., aboliu a propriedade feudal a favor da burguesa.

O que distingue o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa.

Mas a moderna propriedade privada burguesa é a expressão última e mais consumada da geração e apropriação dos produtos que repousam em oposições de classes, na exploração de umas pelas outras.

Neste sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão: supressão [Aufhebung] da propriedade privada.

Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que quereríamos abolir apropriedade adquirida pessoalmente, fruto do trabalho próprio — a propriedade que formaria a base de toda a liberdade, actividade e autonomia pessoais.

Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo próprio! Falais da propriedade pequeno-burguesa, pequeno-camponesa, que precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos de a abolir, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e abole-a diariamente.

Ou falais da moderna propriedade privada burguesa?

Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, lhe cria propriedade? De modo nenhum. Cria o capital, i. é, a propriedade que explora o trabalho assalariado, que só pode multiplicar-se na condição de gerar novo trabalho assalariado para de novo o explorar. A propriedade, na sua figura hodierna, move-se na oposição de capital e trabalho assalariado. Consideremos ambos os lados desta oposição.

Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição não só puramente pessoal, mas social. O capital é um produto comunitário e pode apenas ser posto em movimento por uma actividade comum de muitos membros, em última instância apenas pela actividade comum de todos os membros da sociedade.

O capital não é, portanto, um poder pessoal, é um poder social.

Se, portanto, o capital é transformado em propriedade comunitária, pertencente a todos os membros da sociedade, a propriedade pessoal não se transforma então em propriedade social. Só se transforma o carácter social da propriedade. Perde o seu carácter de classe.

Vejamos agora o trabalho assalariado:

O preço médio do trabalhado assalariado é o mínimo do salário, i. é, a soma dos meios de vida que são necessários para manter vivo o operário como operário. Aquilo, portanto, de que o operário se apropria pela sua actividade chega apenas para gerar de novo a sua vida nua. De modo nenhum queremos abolir esta apropriação pessoal dos produtos de trabalho para a nova geração da vida imediata — uma apropriação que não deixa nenhum provento líquido capaz de conferir poder sobre trabalho alheio. Queremos suprimir apenas o carácter miserável desta apropriação, em que o operário só vive para multiplicar o capital, só vive na medida em que o exige o interesse da classe dominante.

Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista o trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar, enriquecer, promover o processo da vida dos operários.

Na sociedade burguesa domina, portanto, o passado sobre o presente, na comunista o presente sobre o passado. Na sociedade burguesa o capital é autónomo e pessoal, ao passo que o indivíduo activo não é autónomo nem pessoal.

E à supressão desta relação chama a burguesia supressão da personalidade e da liberdade! E com razão. Trata-se certamente da supressão da personalidade burguesa, da autonomia burguesa e da liberdade burguesa.

Por liberdade entende-se, no interior das actuais relações de produção burguesas, o comércio livre, a compra e venda livres.

Mas se cai o tráfico, cai também o tráfico livre. O palavreado acerca do livre tráfico, como todas as demais tiradas da nossa burguesia sobre a liberdade, só têm em geral sentido face ao tráfico constrangido, face ao burguês subjugado da Idade Média, mas não face à supressão comunista do tráfico, das relações de produção burguesas e da própria burguesia.

Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.

Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos.

A partir do momento em que o trabalho já não possa ser transformado em capital, em dinheiro, em renda, em suma, num poder social monopolizável, i. é, a partir do momento em que a propriedade pessoal já não possa converter-se em propriedade burguesa, a partir desse momento declarais que a pessoa é suprimida.

Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não entendeis mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário burguês. E esta pessoa tem certamente de ser suprimida.

O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por esta apropriação, subjugar a si trabalho alheio.

Tem-se objectado que com a supressão da propriedade privada cessaria toda a actividade e alastraria uma preguiça geral.

De acordo com isso, a sociedade burguesa teria há muito de ter perecido de inércia; pois os que nela trabalham não ganham, e os que nela ganham não trabalham. Toda esta objecção vai dar à tautologia de que deixa de haver trabalho assalariado assim que deixar de haver capital.

Todas as objecções dirigidas contra o modo de apropriação e de produção comunista dos produtos materiais foram igualmente alargadas à apropriação e à produção dos produtos espirituais. Tal como, para o burguês, o cessar da propriedade de classe é o cessar da própria produção, também para ele o cessar da cultura de classe é idêntico ao cessar da cultura em geral.

A cultura [Bildung] cuja perda ele lamenta é, para a enorme maioria, a formação [Heranbildung] para máquina.

Mas não disputeis connosco enquanto medirdes pelas vossas representações burguesas de liberdade, de cultura, de direito, etc., a abolição da propriedade burguesa. As vossas próprias ideias são produtos das relações de produção e propriedade burguesas, tal como o vosso direito é apenas a vontade da vossa classe elevada a lei, uma vontade cujo conteúdo está dado nas condições materiais de vida da vossa classe.

A representação interesseira, na qual transformais as vossas relações de produção e de propriedade de relações históricas transitórias no curso da produção em leis eternas da Natureza e da razão, partilhai-la com todas as classes dominantes já desaparecidas. O que compreendeis para a propriedade antiga, o que compreendeis para a propriedade feudal, já não podeis compreender para a propriedade burguesa.—

Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com este propósito infame dos comunistas.

Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública.

A família dos burgueses elimina-se naturalmente com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o desaparecer do capital.

Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais? Confessamos este crime.

Mas, dizeis vós, nós suprimimos as relações mais íntimas ao pormos no lugar da educação doméstica a social.

E não está também a vossa educação determinada pela sociedade? Pelas relações sociais em que educais, pela intromissão mais directa ou mais indirecta da sociedade, por meio da escola, etc.? Os comunistas não inventam o efeito da sociedade sobre a educação; apenas transformam o seu carácter, arrancam a educação à influência da classe dominante.

O palavreado burguês acerca da família e da educação, acerca da relação íntima de pais e filhos, torna-se tanto mais repugnante quanto mais, em consequência da grande indústria, todos os laços de família dos proletários são rasgados e os seus filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho.

Mas vós, comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres, grita-nos toda a burguesia em coro.

O burguês vê na mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser explorados comunitariamente, e naturalmente não pode pensar senão que a comunidade virá igualmente a ser o destino das mulheres.

Não suspeita que se trata precisamente de suprimir a posição das mulheres como meros instrumentos de produção.

De resto, não há nada mais ridículo do que a moralíssima indignação dos nossos burgueses acerca da pretensa comunidade oficial de mulheres dos comunistas. Os comunistas não precisam de introduzir a comunidade de mulheres; ela existiu quase sempre.

Os nossos burgueses, não contentes com o facto de que as mulheres e as filhas dos seus proletários estão à sua disposição, para nem sequer falar da prostituição oficial, acham um prazer capital em seduzir as esposas uns dos outros.

O casamento burguês é na realidade a comunidade das esposas. Quando muito poder-se-ia censurar aos comunistas quererem introduzir uma comunidade de mulheres franca, oficial, onde há uma hipocritamente escondida. É de resto evidente que com a supressão das relações de produção actuais desaparece também a comunidade de mulheres que dela decorre, ou seja, a prostituição oficial e não oficial.

Aos comunistas tem além disso sido censurado que querem abolir a pátria, a nacionalidade.

Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não têm. Na medida em que o proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe nacional, de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no sentido da burguesia.

Os isolamentos e as oposições nacionais dos povos vão desaparecendo já cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e com as relações de vida que lhe correspondem.

A dominação do proletariado fá-los-á desaparecer ainda mais. A unidade de acção, pelo menos dos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua libertação.

À medida que é suprimida a exploração de um indivíduo por outro, é suprimida a exploração de uma nação por outra.

Com a oposição das classes no interior da nação cai a posição hostil das nações entre si.

As acusações contra o comunismo que são levantadas sobretudo a partir de pontos de vista religiosos, filosóficos e ideológicos não merecem discussão pormenorizada.

Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência?

Que prova a história das ideias senão que a produção espiritual se reconfigura com a da material? As ideias dominantes de um tempo foram sempre apenas as ideias da classe dominante.

Fala-se de ideias que revolucionam uma sociedade inteira; com isto exprime-se apenas o facto de que no seio da velha sociedade se formaram os elementos duma [sociedade] nova, de que a dissolução das velhas ideias acompanha a dissolução das velhas relações de vida.

Quando o mundo antigo estava em declínio, as religiões antigas foram vencidas pela religião cristã. Quando as ideias cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias das Luzes, a sociedade feudal travava a sua luta de morte com a burguesia então revolucionária. As ideias de liberdade de consciência e de religião exprimiam apenas, no domínio do saber [Wissen], a dominação da livre concorrência.

“Mas”, dirão, “as ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se certamente no decurso do desenvolvimento histórico. A religião, a moral, a filosofia, a política, o direito, mantiveram-se sempre nesta mudança.

“Além disso existem verdades eternas, como Liberdade, Justiça, etc., que são comuns a todos os estádios sociais. Mas o comunismo abole as verdades eternas, abole a religião, a moral, em vez de as configurar de novo, contradiz portanto todos os desenvolvimentos históricos até aqui.”

A que se reduz esta acusação? A história de toda a sociedade até aqui moveu-se em oposições de classes, as quais nas diversas épocas foram diversamente configuradas.

Mas fosse qual fosse a forma assumida, a exploração de uma parte da sociedade pela outra é um facto comum a todos os séculos passados. Não é de admirar, por isso, que a consciência social de todos os séculos, a despeito de toda a multiplicidade e diversidade, se mova em certas formas comuns, em formas de consciência que só se dissolvem completamente com o desaparecimento total da oposição de classes.

A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade legadas; não admira que no curso do seu desenvolvimento se rompa da maneira mais radical com as ideias legadas.

Deixemos contudo as objecções da burguesia contra o comunismo.

Já antes vimos que o primeiro passo na revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia pela luta.

O proletariado usará a sua dominação política para arrancar a pouco e pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado, i. é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção.

Naturalmente isto só pode primeiro acontecer por meio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, através de medidas, portanto, que economicamente parecem insuficientes e insustentáveis mas que no decurso do movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento de todo o modo de produção.

Estas medidas serão naturalmente diversas consoante os diversos países.

Para os países mais avançados, contudo, poderão ser aplicadas de um modo bastante geral as seguintes:

1.Expropriação da propriedade fundiária e emprego das rendas fundiárias para despesas do Estado.
2. Pesado imposto progressivo.
3. Abolição do direito de herança.
4. Confiscação da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo.
6. Centralização do sistema de transportes nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção, arroteamento e melhoramento dos terrenos de acordo com um plano comunitário.
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, instituição de exércitos industriais, em especial para a agricultura.
9. Unificação da exploração da agricultura e da indústria, actuação com vista à eliminação gradual da diferença entre cidade e campo.
10. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua forma hodierna. Unificação da educação com a produção material, etc.

Desaparecidas no curso de desenvolvimento as diferenças de classes e concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perde o carácter político. Em sentido próprio, o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de uma outra. Se o proletariado na luta contra a burguesia necessariamente se unifica em classe, por uma revolução se faz classe dominante e como classe dominante suprime violentamente as velhas relações de produção, então suprime juntamente com estas relações de produção as condições de existência da oposição de classes, as classes em geral, e, com isto, a sua própria dominação como classe.

Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e oposições de classes entra uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.

III – Literatura Socialista e Comunista

1. O Socialismo Reaccionário

a) O Socialismo Feudal

Pela sua posição histórica, as aristocracias francesa e inglesa estavam vocacionadas para escrever panfletos contra a sociedade burguesa moderna. Na revolução francesa de Julho de 1830, no movimento de reforma inglês5, elas sucumbiram uma vez mais ao odiado arrivista. Não podia mais tratar-se de uma luta política séria. Restava-lhes apenas a luta literária. Mas também no domínio da literatura o velho palavreado do tempo da restauração tinha-se tornado impossível. Para despertar simpatia, a aristocracia teve de aparentar perder de vista os seus interesses e de formular a sua acusação contra a burguesia apenas no interesse da classe operária explorada. Preparou assim a satisfação de poder cantar cantigas de escárnio sobre o seu novo dominador e sussurrar-lhe ao ouvido profecias mais ou menos prenhes de desgraças.

Desta maneira surgiu o socialismo feudalístico — metade canto lamentoso e metade pasquim, metade eco do passado e metade ameaça do futuro —, por vezes acertando no alvo com um juízo amargo, espirituosamente demolidor, sobre a burguesia, mas sempre operando de modo cómico pela sua total incapacidade de conceber o curso da história moderna.

Por estandarte eles agitavam na mão o proletário alforge de mendigo, para juntarem o povo atrás de si. Mas de todas as vezes que este os seguia divisava-lhes no traseiro os velhos brasões feudais e dispersava com gargalhadas sonoras e irreverentes.

Uma parte dos Legitimistas franceses6 e a Jovem Inglaterra7 deram este espectáculo da melhor maneira.

Quando os feudais demonstram que o seu modo de exploração tinha uma figura diferente da da exploração burguesa, esquecem-se apenas que exploravam em circunstâncias e condições completamente diversas e já ultrapassadas. Quando provam que o proletariado moderno não existia sob a sua dominação, esquecem-se apenas que precisamente a burguesia moderna foi um rebento necessário da sua ordem social.

De resto dissimularam tão pouco o carácter reaccionário da sua crítica, que a sua acusação principal contra a burguesia reside precisamente no facto de que no regime desta se desenvolveu uma classe que fará ir pelos ares toda a velha ordem social.

Censuram ainda mais à burguesia ter gerado um proletariado revolucionário do que ter, em geral, gerado um proletariado.

Na prática política tomam por isso parte em todas as medidas violentas contra a classe operária, e na vida habitual acomodam-se, a despeito de todo o seu palavreado pomposo, a apanhar as maçãs douradas e a trocar a lealdade, o amor e a honra pelo tráfico de lã, beterraba e aguardente.

Assim como os padres andavam sempre de braço dado com os feudais, assim também o socialismo clerical com o feudalístico.

Nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão uma demão socialista. Não bradou também o cristianismo contra a propriedade privada, contra o casamento, contra o Estado? Não pregou em vez deles a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre abençoa a irritação do aristocrata.

b) O Socialismo Pequeno-Burguês

A aristocracia feudal não é a única classe derrubada pela burguesia cujas condições de vida se atrofiaram e extinguiram na moderna sociedade burguesa. A Pfahlbürgert1 um  medieval e o pequeno campesinato [kleine Bauernstand] foram os precursores da burguesia moderna. Nos países menos desenvolvidos industrial e comercialmente esta classe continua ainda a vegetar ao lado da burguesia em ascensão.

Nos países em que a civilização moderna se desenvolveu, formou-se uma nova pequena burguesia [Kleinbürgerschaft], a qual paira entre o proletariado e a burguesia e constantemente se forma de novo como parte complementar da sociedade burguesa, e cujos membros são constantemente atirados pela concorrência para o proletariado, vêem mesmo, com o desenvolvimento da grande indústria, aproximar-se um momento em que desaparecerão por completo como parte autónoma da sociedade moderna e serão substituídos no comércio, na manufactura, na agricultura por capatazes e criados.

Em países como a França, onde a classe camponesa perfaz muito mais de metade da população, era natural que os escritores que se apresentaram a favor do proletariado e contra a burguesia aplicassem à sua crítica do regime burguês a bitola pequeno-burguesa e pequeno-camponesa, e tomassem o partido dos operários do ponto de vista da pequena burguesia [Kleinbürgertum]. Formou-se assim o socialismo pequeno-burguês. Sismondi é o chefe desta literatura não só para a França como também para a Inglaterra.

Este socialismo dissecou com a maior acuidade as contradições nas relações de produção modernas. Pôs a descoberto os fingidos embelezamentos dos economistas. Demonstrou irrefutavelmente os efeitos destruidores da maquinaria e da divisão do trabalho, da concentração dos capitais e da posse fundiária, a sobreprodução, as crises, o declínio necessário dos pequenos burgueses e camponeses, a miséria do proletariado, a anarquia na produção, as desproporções gritantes na repartição da riqueza, a guerra industrial de extermínio das nações entre si, a dissolução dos velhos costumes, das velhas relações de família, das velhas nacionalidades.

Pelo seu teor positivo, porém, este socialismo quer ou restabelecer os velhos meios de produção e de intercâmbio, e com eles as velhas relações de propriedade e a velha sociedade, ou quer encarcerar de novo violentamente os meios modernos de produção e de intercâmbio no quadro das velhas relações de propriedade, as quais foram, tiveram de ser, por eles rebentadas. Ele é simultaneamente reaccionário e utópico.

Sistema corporativo na manufactura e economia patriarcal no campo são as suas últimas palavras.

No seu desenvolvimento ulterior, esta orientação perdeu-se numa ressaca cobarde.

c) O Socialismo Alemão ou [o Socialismo] “Verdadeiro”

A literatura socialista e comunista da França, que surgiu sob a pressão de uma burguesia dominante e que é a expressão literária da luta contra esta dominação, foi introduzida na Alemanha num tempo em que a burguesia iniciava a sua luta contra o absolutismo feudal.

Filósofos, meios-filósofos e “belos espíritos” alemães apoderaram-se avidamente desta literatura, esquecendo apenas que com a imigração destes escritos de França não imigraram ao mesmo tempo para a Alemanha as relações de vida francesas. Face às relações alemãs a literatura francesa perdeu todo o significado prático imediato e assumiu uma feição puramente literária. Tinha de aparecer como especulação ociosa sobre a realização da essência humana. Assim, para os filósofos alemães do século XVIII as reivindicações da primeira Revolução Francesa só tinham o sentido de reivindicações da “razão prática”8 em geral, e as expressões da vontade da burguesia revolucionária francesa significavam aos seus olhos as leis da vontade pura, da vontade como esta tem de ser, da vontade verdadeiramente humana.

O trabalho dos literatos alemães consistiu exclusivamente em pôr as novas ideias francesas de acordo com a velha consciência filosófica que era a deles, ou antes, em apropriar-se das ideias francesas a partir do seu ponto de vista filosófico.

Esta apropriação aconteceu do mesmo modo por que uma pessoa se apropria de uma língua estrangeira — pela tradução.

É sabido que os monges escreveram hagiografias católicas insípidas sobre os manuscritos em que estavam registadas as obras clássicas do velho tempo pagão. Os literatos alemães procederam inversamente com a literatura profana francesa. Escreveram os seus disparates filosóficos por baixo do original francês. P. ex., por baixo da crítica francesa às relações de dinheiro escreveram “alienação [Entäuβerung] da essência humana”, por baixo da crítica francesa do Estado burguês escreveram “superação [Aufhebung] da dominação do abstractamente universal”, etc.

O subpor deste palavreado filosófico aos desenvolvimentos franceses baptizaram eles de “filosofia da acção”, “socialismo verdadeiro”, “ciência alemã do socialismo”, “fundamentação filosófica do socialismo”, etc.

A literatura socialisto-comunista francesa foi assim emasculada a preceito. E como nas mãos do Alemão deixou de exprimir a luta de uma classe contra outra, o Alemão ficou consciente de ter triunfado da “unilateralidade francesa”, de ter defendido, em vez de necessidades verdadeiras, a necessidade da verdade, e em vez dos interesses do proletário, os interesses da essência humana, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe, que nem sequer pertence à realidade, que pertence apenas ao céu nebuloso da fantasia filosófica.

Este socialismo alemão, que tomou tão a sério, e tão solenemente, os seus canhestros exercícios escolares, e que, qual vendedor de feira, tão alto os trombeteou, foi entretanto perdendo pouco a pouco a sua inocência pedante.

A luta da burguesia alemã, nomeadamente da prussiana, contra os feudais e a realeza absoluta — numa palavra, o movimento liberal — tornou-se mais séria.

Foi assim oferecida ao socialismo “verdadeiro” a tão desejada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas, de arremessar contra o liberalismo, contra o Estado representativo, contra a concorrência burguesa, a liberdade burguesa de imprensa, o direito burguês, a liberdade e a igualdade burguesas, os anátemas legados, e de pregar à massa popular que nada tinha a ganhar, antes tudo a perder, com este movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu em devido tempo que a crítica francesa, da qual era um eco sem espírito, pressupunha a sociedade burguesa moderna com as correspondentes condições materiais de vida e a adequada constituição política, pressupostos esses por cuja conquista se tratava então de lutar na Alemanha.

Serviu aos governos alemães absolutos — com o seu cortejo de padres, mestres-escolas, fidalgotes e burocratas — de espantalho desejado contra a burguesia ameaçadoramente ascendente.

Formou o doce complemento dos amargos golpes de chicote e balas de espingarda com que esses mesmos governos cuidaram das insurreições de operários alemães.

Se o socialismo “verdadeiro” desta maneira se tornou uma arma na mão dos governos contra a burguesia alemã, representou também imediatamente um interesse reaccionário — o interesse da Pfahlbürgerschaf alemã. Na Alemanha é a pequena burguesia [Kleinbürgertum], legada pelo século XVI, que desde esse tempo, de formas diversas, está sempre a vir ao de cima, que constitui a base social propriamente dita das situações existentes.

A sua manutenção é a manutenção das situações alemãs existentes. Da dominação industrial e política da burguesia teme o declínio seguro, por um lado, em consequência da concentração do capital, por outro lado, pelo advento de um proletariado revolucionário. O socialismo “verdadeiro” pareceu-lhe matar dois coelhos com uma cajadada. Espalhou-se como uma epidemia.

A veste tecida de especulativas teias de aranha, bordada a flores de retórica de belos espíritos, embebida no orvalho sufocantemente sentimental da alma, em que os socialistas alemães envolveram a sua meia dúzia de ossudas “verdades eternas”, esta veste extravagante só veio multiplicar o [bom] escoamento da sua mercadoria entre este público.

Pelo seu lado, o socialismo alemão reconheceu cada vez mais a sua vocação para ser o representante presumido desta Pfahlbürgerschaft.

Proclamou a nação alemã como a nação normal e o Spieβbürger9 alemão como o homem normal. Deu a todas as infâmias deste [Spieβbürger] um sentido socialista, oculto, superior, pelo qual elas significavam o seu contrário. Ao entrar em cena directamente contra a orientação “grosseiramente destrutiva” do comunismo, ao anunciar a sua sublimidade imparcial acima de todas as lutas de classes, tirou a sua última consequência. Com muito poucas excepções, o que na Alemanha circula de escritos pretensamente socialistas e comunistas pertence ao âmbito desta literatura porca e debilitante.

2. O Socialismo Conservador ou [Socialismo] Burguês

Uma parte da burguesia deseja remediar os males sociais para assegurar a existência da sociedade burguesa.

A ela pertencem: economistas, filantropos, humanitários, melhoradores da situação das classes trabalhadoras, organizadores da caridade, protectores dos animais, fundadores de ligas anti-alcoólicas, reformadores ocasionais dos mais variados.

E também este socialismo burguês foi elaborado em sistemas completos.

Como exemplo mencionamos a Philosophie de la misère, de Proudhon.

Os burgueses socialistas querem as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e perigos delas necessariamente decorrentes. Querem a sociedade existente deduzidos os elementos que a revolucionam e dissolvem. Querem a burguesia sem o proletariado. A burguesia, naturalmente, representa-se o mundo em que domina como o melhor dos mundos. O socialismo burguês elabora, a partir desta representação consoladora, um meio sistema ou um sistema completo. Quando exorta o proletariado a realizar estes sistemas e a entrar na nova Jerusalém, no fundo só lhe pede que fique na sociedade actual, mas que se desfaça das odiosas representações que faz dela.

Uma segunda forma, menos sistemática mas mais prática, [deste] socialismo procurou tirar à classe operária o gosto por todos os movimentos revolucionários, mostrando-lhe que só lhe poderia ser útil, não esta ou aquela alteração política, mas uma alteração nas relações materiais de vida, nas relações económicas. Por alteração das relações materiais de vida este socialismo não entende, de modo nenhum, a abolição das relações de produção burguesas, só possível pela via revolucionária, mas melhoramentos administrativos que se processem sobre o terreno destas relações de produção, portanto que nada alterem na relação de capital e trabalho assalariado, mas que no melhor dos casos reduzam à burguesia os custos da sua dominação e lhe simplifiquem o orçamento de Estado.

O socialismo burguês só alcança a sua expressão correspondente quando passa a ser mera figura de retórica.

Comércio livre! no interesse da classe trabalhadora; protecção alfandegária! no interesse da classe trabalhadora; prisões celulares! no interesse da classe trabalhadora: esta é a última palavra do socialismo burguês, e a única dita a sério. O socialismo da burguesia consiste precisamente na afirmação de que os burgueses são burgueses — no interesse da classe trabalhadora.

3. O Socialismo e Comunismo Crítico-Utópicos

Não falamos aqui da literatura que em todas as grandes revoluções modernas exprime as reivindicações do proletariado (escritos de Babeuf, etc.).

As primeiras tentativas do proletariado para impor directamente o seu interesse de classe próprio, num tempo de agitação geral, no período de derrube que pôs termo à sociedade feudal, falharam necessariamente por não estar ainda desenvolvida a figura do próprio proletariado e por faltarem ainda as condições materiais da sua libertação, que só são precisamente o produto da época burguesa. A literatura revolucionária que acompanhou estes primeiros movimentos do proletariado é, pelo conteúdo, necessariamente reaccionária. Prega um ascetismo geral e um igualitarismo grosseiro.

Os sistemas propriamente socialistas e comunistas, os sistemas de Saint-Simon, Fourier, Owen, etc., surgem no primeiro período, ainda não desenvolvido, da luta entre proletariado e burguesia que atrás descrevemos (v[er] Burguesia e Proletariado).

Os inventores destes sistemas vêem, decerto, a oposição das classes bem como a actuação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas do lado do proletariado não avistam nenhuma actividade histórica, nenhum movimento político que lhe seja peculiar.

Como o desenvolvimento da oposição de classes acompanha o desenvolvimento da indústria, tão-pouco encontram as condições materiais para a libertação do proletariado, e procuram uma ciência social, leis sociais, para criarem tais condições.

Para o lugar da actividade social tem de entrar a sua actividade inventiva pessoal; para o lugar das condições históricas da libertação, [condições] fantásticas; para o lugar da organização do proletariado em classe processando-se gradualmente, uma organização da sociedade urdida por eles próprios. A história mundial vindoura resolve-se para eles na propaganda e na execução prática dos seus planos de sociedade.

Estão decerto conscientes de defender nos seus planos principalmente o interesse da classe trabalhadora como a classe mais sofredora. Só deste ponto de vista de a classe mais sofredora o proletariado existe para eles.

A forma não desenvolvida da luta de classes assim como a sua própria situação de vida implicam, porém, que eles creiam estar muito acima daquela oposição de classes. Querem melhorar a situação de vida de todos os membros da sociedade, mesmo dos mais bem colocados. Por isso apelam continuamente à sociedade toda sem diferença, e de preferência à classe dominante. É só preciso entender o seu sistema para reconhecer nele o melhor plano possível para a melhor sociedade possível.

Rejeitam, por isso, toda a acção política, nomeadamente toda a acção revolucionária, querem atingir o seu objectivo por via pacífica e procuram, com pequenos experimentos naturalmente condenados ao fracasso, abrir pela força do exemplo o caminho ao novo evangelho social.

A descrição fantástica da sociedade futura brota — num tempo em que o proletariado ainda está sumamente pouco desenvolvido, e por isso, apreende a sua própria posição de um modo ainda fantástico — da sua primeira aspiração, cheia de imagens vagas, de uma reconfiguração geral da sociedade.

Mas os escritos socialistas e comunistas consistem também em elementos críticos. Atacam todos as bases da sociedade existente. Por isso forneceram material altamente valioso para o esclarecimento dos operários. As suas proposições positivas sobre a sociedade futura, p. ex., supressão da oposição entre cidade e campo, da família, do proveito privado, do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social, a transformação do Estado numa mera administração da produção — todas estas suas proposições exprimem meramente o desaparecimento da oposição de classes que só agora começa a desenvolver-se, que eles não conhecem senão na sua primeira indeterminidade sem figura. Por isso mesmo estas proposições têm ainda um sentido puramente utópico.

A significação do socialismo e comunismo crítico-utópicos está na proporção inversa do seu desenvolvimento histórico. Na medida em que se desenvolve e configura a luta de classes, perde esta elevação fantástica acima dela, esta luta fantástica contra ela, todo o valor prático, toda a justificação teórica. Se, por isso, os autores destes sistemas foram, em muitos aspectos, revolucionários, os seus discípulos formaram sempre seitas reaccionárias. Perante o desenvolvimento histórico continuado do proletariado ativeram-se às velhas intuições dos mestres. Por isso procuram consequentemente embotar de novo a luta de classes e mediar as oposições. Continuam ainda a sonhar com a realização, a título experimental, das suas utopias sociais, com a instituição de falanstérios isolados, com a fundação de colónias no país, com o estabelecimento de uma pequena Icária — edição de formato reduzido da nova Jerusalém —, e para a construção de todos estes castelos no ar têm de apelar à filantropia dos corações e bolsas burgueses. A pouco e pouco vão caindo na categoria dos socialistas reaccionários ou conservadores acima descritos, e deles se diferenciam apenas por um pedantismo mais sistemático, pela superstição fanática nos efeitos milagreiros da sua ciência social.

Por isso se opõem com exasperação a todo o movimento político dos operários, movimento que só podia decorrer de uma descrença cega no novo evangelho.

Os owenistas, em Inglaterra, ou fourieristas, em França, reagem ali contra os cartistas, aqui contra os reformistas.10

IV – Posição dos Comunistas para com os Diversos Partidos Oposicionistas

De acordo com a secção II é evidente a relação dos comunistas para com os partidos operários já constituídos, portanto, a sua relação para com os cartistas em Inglaterra e os reformadores agrários na América do Norte.

Lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento. Em França os comunistas juntam-se ao partido socialista-democrático contra a burguesia conservadora e radical, sem por isso abdicarem do direito de assumir uma atitude crítica perante as frases e as ilusões provenientes do legado revolucionário.

Na Suíça apoiam os radicais, sem deixar de reconhecer que este partido é composto por elementos contraditórios, em parte socialistas democráticos no sentido francês, em parte burgueses radicais.

Entre os Polacos os comunistas apoiam o partido que faz de uma revolução agrária condição da libertação nacional, aquele mesmo partido que deu vida à insurreição de Cracóvia de 1846.11

Na Alemanha o Partido Comunista luta, assim que a burguesia entra revolucionariamente em cena, em conjunto com a burguesia contra a monarquia absoluta, a propriedade feudal da terra e a pequena burguesice [Kleinbürgerei].

Mas nem por um instante deixa de formar nos operários uma consciência o mais clara possível sobre a oposição hostil entre burguesia e proletariado, para que os operários alemães possam virar logo as condições sociais e políticas, que a burguesia tem necessariamente de originar com a sua dominação, como outras tantas armas contra a burguesia, para que, depois do derrube das classes reaccionárias na Alemanha, comece logo a luta contra a própria burguesia.

Para a Alemanha dirigem os comunistas a sua atenção principal, porque a Alemanha está em vésperas de uma revolução burguesa e porque leva a cabo este revolucionamento em condições de maior progresso da civilização europeia em geral e com um proletariado muito mais desenvolvido do que a Inglaterra no século XVII e a França no século XVIII, porque a revolução burguesa alemã só pode ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária.

Numa palavra, por toda a parte os comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações sociais e políticas existentes.

Em todos estes movimentos põem em relevo a questão da propriedade, seja qual for a forma mais ou menos desenvolvida que ela possa ter assumido, como a questão fundamental do movimento.

Por fim, por toda a parte os comunistas trabalham na ligação e entendimento dos partidos democráticos de todos os países.

Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.

Proletários de Todos os Países, Uni-vos!


Notas

1 Pfahlbürger; Pfahlbürgertum e Pfahlbürgerschaft: designações sem equivalente linguístico em português: literalmente, burguês da paliçada; burguesia da paliçada. Durante a Idade Média, no Norte e Leste da Europa, estas designações aplicavam-se aos moradores de um espaço compreendido entre os muros do castelo e uma paliçada circundante. Eram geralmene mercadores. Mediante o pagamento de imposto e obrigações de participação na defesa, recebiam também protecção da cidade. A determinação precisa do seu estatuto foi objecto de repetidas controvérsias.

2 Cruzadas: movimento militar de colonização dirigido para o Oriente, promovido pelos grandes senhores feudais da Europa Ocidental, pelos cavaleiros e pelas cidades comerciais italianas nos séculos XI-XIII, sob a bandeira religiosa da libertação dos santuários cristãos em Jerusalém e outros “lugares santos”, em poder dos muçulmanos. Os ideólogos e inspiradores das cruzadas foram a Igreja católica e o papado, que aspiravam ao domínio do mundo; a principal força militar foram os cavaleiros. Participaram nas cruzadas também os camponeses, que através delas procuravam libertar-se do jugo dos feudais. As cruzadas foram acompanhadas de pilhagens e violências exercidas tanto sobre as populações muçulmanas como sobre as populações cristãs dos países por onde passavam os cruzados. O seu objectivo era a conquista não apenas dos Estados muçulmanos da Síria, Palestina, Egipto e Túnis, mas também o Império Bizantino ortodoxo. As conquistas dos cruzados no Mediterrâneo oriental não tinham solidez, e as possessões por eles obtidas voltaram dentro de pouco tempo às mãos dos muçulmanos.

3 Nos seus trabalhos posteriores Marx e Engels passaram a utilizar, em vez das expressões “valor do trabalho” e “preço do trabalho”, as expressões mais precisas de “valor da força de trabalho” e “preço da força de trabalho”, introduzidas por Marx. Ver sobre este assunto a introdução de Engels ao trabalho de Marx Lohnarbeit und Kapital (Trabalho Assalariado e Capital), MEW, vol. 6, pp. 593-599; cf. OE, 1982, t. I, pp. 142-150).

4 A lei sobre a jornada de trabalho de dez horas (Ten Hour’s Bill), extensiva apenas a mulheres e adolescentes, foi aprovada no Parlamento em 8 de Junho de 1847, na sequência de uma forte e longa polémica em que não deixariam de se defrontar e opor sectores da aristocracia fundiária e da burguesia industrial. Todavia, na prática, numerosos industriais não respeitavam esta lei. Sobre esta questão veja-se, por exemplo, Engels, The Ten Hour’s Bill Question [A Questão das Dez Horas] e Die englische Zehnstudenbill [A Lei das Dez Horas Inglesas], MEGA, vol. I/10, respectivamente, pp. 225-230 e pp. 305-314.

5 Trata-se do movimento pela reforma eleitoral, que, sob a pressão das massas populares, foi adoptada pela Câmara dos Comuns inglesa em 1831 e definitivamente ratificada pela Câmara dos Lordes em Junho de 1832. A reforma estava voltada contra o monopólio político da aristocracia agrária e financeira e abriu o acesso ao parlamento de representantes da burguesia industrial. O proletariado e a pequena burguesia, que constituíam a força principal da luta pela reforma, foram defraudados pela burguesia liberal e não obtiveram direitos eleitorais.

6 Legitimistas: partidários da dinastia “legítima” dos Bourbons, derrubada em 1830, que representava os interesses dos detentores de grandes propriedades fundiárias hereditárias. Na luta contra a dinastia reinante dos Orleães (1830-1848), que se apoiava na aristocracia financeira e na grande burguesia, uma parte dos legitimistas recorria frequentemente à demagogia liberal, apresentando-se como defensores dos trabalhos contra os exploradores burgueses.

7 Jovem Inglaterra: grupo de políticos e literatos pertencentes ao partido dos tories; foi constituído no início dos anos 40 do século XIX. Exprimindo o descontentamento da aristocracia fundiária pelo reforço do poder político e económico da burguesia, os membros da Jovem Inglaterra recorriam a métodos demagógicos para submeter à sua influência a classe operária e utilizavam-na na sua luta contra a burguesia.

8 Lembremos que, para Marx, a filosofia de Kant (ao qual a expressão “razão prática” manifestamente alude) era considerada como “a teoria alemã da Revolução Francesa”. Cf. Das philosophische Manifest der historischen Rechtsschule (O Manifesto Filosófico da Escola Histórica do Direito), 1842. MEGA, vol. I/1, p. 194. Em Die deutsche Ideologie (A Ideologia Alemã), Marx e Engels chamam a atenção para o facto de que a Crítica da Razão Prática de Kant reflectia a situação da burguesia alemã dos finais do século XVIII (MEW, vol. 3, pp. 176-177).

9 Spieβbürger: designação sem equivalente linguístico em português: literalmente, burgueses de pique (ou lança). A designação decorre dos piques de madeira que constituíam o armamento das camadas mais baixas dos habitantes da cidade, entre cujas obrigações se contava a da participação na defesa do burgo. A expressão veio a adquirir progressivamente uma conotação pejorativa: pessoa tacanha, filisteu, pequeno-burguês.

10 Trata-se dos democratas republicanos pequeno-burgueses e dos socialistas pequeno-burgueses, partidários do jornal francês La Réforme (A Reforma), publicado em Paris entre 1843 e 1850. Defendiam a instauração da república e a realização de reformas democráticas e sociais.

11 Em Fevereiro de 1846 foi preparada a insurreição nas terras polacas com vista à libertação nacional da Polónia. Os principais iniciadores da insurreição foram os democratas revolucionários polacos (Dembowski e outros). No entanto, em resultado da traição dos elementos da nobreza e da prisão dos dirigentes da insurreição pela polícia prussiana, a insurreição geral não se realizou e verificaram-se apenas explosões revolucionárias isoladas. Só em Cracóvia, submetida desde 1815 ao controlo conjunto da Áustria, da Rússia e da Prússia, os insurrectos conseguiram alcançar a vitória em 22 de Fevereiro e criar um Governo Nacional, que publicou um manifesto sobre a abolição das cargas feudais. A insurreição em Cracóvia foi esmagada no começo de Março de 1846. Em Novembro de 1846 a Áustria, a Prússia e a Rússia subscreveram um tratado sobre a integração de Cracóvia no Império Austríaco.


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Pedro Micussi