Crise política e repressão em Moçambique
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Crise política e repressão em Moçambique

Após uma eleição marcada por denúncias de fraude, o governo moçambicano responde com repressão brutal aos protestos populares. Dois jovens moçambicanos no Brasil falam sobre a realidade política e social no país

Israel Dutra e Júlio Câmara 12 nov 2024, 10:20

Foto: Protestos em Moçambique (Youtube/Reprodução)

Moçambique enfrenta um momento de crise política e social desencadeado pelas eleições de 9 de outubro de 2024. Marcado por alegações de fraude eleitoral, o resultado oficialmente anunciado manteve o partido FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) no poder, supostamente com 70% dos votos, apesar do forte apoio popular a Venâncio Mondlane, candidato da oposição. A FRELIMO, que governa o país desde a independência em 1975, foi acusada de manipular os resultados, o que levou à revolta popular e a protestos por todo o país. A resposta do governo tem sido uma repressão intensa e violenta contra os manifestantes, com relatos de mortes e feridos.

Nesta entrevista exclusiva para a Revista Movimento, conversamos com Júnior Rafael e Farida Sequeteiro, jovens moçambicanos residentes no Brasil e estudantes de pós-graduação em Comunicação na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Júnior e Farida relatam a repressão policial, a censura nos meios de comunicação e a deterioração das condições econômicas e sociais em Moçambique, que motivam os jovens a lutar contra o governo.


Fraude eleitoral e mobilização popular

As eleições de outubro de 2024 foram vistas pela população moçambicana como uma oportunidade para a alternância no poder. No entanto, a FRELIMO declarou vitória em um processo eleitoral repleto de acusações de manipulação. Venâncio Mondlane, principal candidato da oposição, foi apontado como favorito, mas, segundo Júnior, “o governo anunciou resultados que não refletem a vontade popular.”

A juventude, que representa a maioria da população moçambicana, assumiu o protagonismo das manifestações. Com níveis alarmantes de desemprego e falta de perspectivas, muitos jovens decidiram ir às ruas, defendendo o que veem como uma chance de transformação política no país. Entretanto, essa mobilização foi recebida com uma repressão severa por parte do governo, que utiliza forças policiais e militares para dispersar os manifestantes.

“Essas eleições foram como algo que deu mais força às pessoas, principalmente à juventude, para poder reivindicar seus direitos… Eles dizem assim: nós votamos em Venâncio Mondlane, e vocês estão a anunciar resultados que não refletem a verdade popular,” explica Júnior.

Esse cenário reflete a crescente insatisfação da população com um regime que mantém o controle há quase meio século. O desejo por mudança, alimentado pela percepção de que as riquezas do país não são distribuídas de forma justa, se mistura ao descontentamento com um governo que resiste a qualquer tentativa de alternância de poder.

Repressão violenta: intimidação e violação dos Direitos Humanos

A repressão aos protestos é descrita por Júnior e Farida como generalizada e extremamente violenta. As forças de segurança, segundo os relatos, utilizam gás lacrimogêneo, balas de borracha e, em vários casos, munição letal contra a população. Além disso, helicópteros foram utilizados para lançar gás lacrimogêneo sobre bairros residenciais, atingindo inclusive pessoas que não participavam das manifestações.

“A repressão não atinge apenas quem está nas ruas, mas também quem está em casa. Um bebê de seis meses foi internado após inalar gás lacrimogêneo que entrou pela janela de sua casa,” conta Farida.

A repressão se estende de forma indiscriminada, afetando civis de todas as idades. Levantamentos da sociedade civil contabilizam mais de 40 assassinados pelo governo.

Júnior avalia que esses métodos de repressão refletem táticas comuns em conflitos de alta intensidade, onde o objetivo é a contenção total dos civis. Essa abordagem, contudo, tem gerado indignação e resistência, especialmente entre os jovens, que se veem sem alternativa além de protestar contra o governo. O uso de força contra civis evidencia o caráter autoritário das ações do governo, que prossegue com essas medidas mesmo diante de acusações de violação de direitos humanos.

Controle da mídia e censura: a manipulação da televisão e o bloqueio da internet

O governo moçambicano intensificou o controle sobre a mídia, especialmente a televisão e a internet. Farida, jornalista de formação, explica que veículos tradicionais, como a TVM (Televisão de Moçambique), transmitem exclusivamente a versão oficial dos fatos. A TV Miramar, que antes apresentava um contraponto ao noticiário estatal, também passou a ser mais limitada em sua cobertura.

“A TVM, controlada pelo governo, sempre traz apenas a versão oficial. Mesmo que vejamos algo diferente, como nas manifestações, o que é mostrado não corresponde à realidade,” afirma Farida, destacando a importância das redes sociais como fonte alternativa de informação.

Com o controle da televisão e a repressão à mídia tradicional, as redes sociais se tornaram a principal fonte de informação independente. Em resposta, o governo iniciou bloqueios à internet e restringiu o envio de mensagens de texto e chamadas de voz, buscando conter a disseminação de informações sobre a repressão.

“Primeiro bloquearam o acesso à internet. Depois, passaram a restringir até as mensagens de texto e chamadas de voz,” explica Farida, enfatizando as táticas do governo para silenciar as vozes contrárias e limitar o acesso a notícias.

Os dois jovens relatam que estão há dias sem qualquer contato com familiares e amigos em Moçambique devido à falta de internet no país. Esse bloqueio à comunicação tem o objetivo de restringir a circulação de denúncias de repressão, atrapalhar a organização dos protestos e eliminar a visibilidade, especialmente no cenário internacional.

Organizações de juventude cooptadas pela FRELIMO

As organizações de juventude, que deveriam defender os interesses dos jovens, foram cooptadas para servir à FRELIMO. Entidades como a Organização da Juventude Moçambicana (OJM) e o Conselho Nacional de Juventude (CNJ) agora exigem filiação ao partido. “Para fazer parte da OJM, você precisa ter um cartão da FRELIMO. Essas organizações, que deveriam liderar as mobilizações, na verdade agem para enfraquecer o movimento,” afirma Farida.

O governo mantém o controle sobre essas entidades por meio de financiamento, forçando seus líderes a reiterarem o apoio ao partido. Esse alinhamento com o governo criou desconfiança e afastou os jovens que buscam mudanças no país.

Diante da imobilidade dessas organizações, os jovens passaram a se mobilizar de forma independente, utilizando redes sociais e coletivos informais para coordenar os protestos. Essa mobilização autônoma sinaliza um desprezo pelas entidades cooptadas e, segundo Júnior, está pavimentando o surgimento de novas lideranças comprometidas com as demandas da juventude, indicando uma possível transformação na política do país.

Pobreza, desigualdade e frustração popular

A desigualdade econômica e a exploração dos recursos naturais de Moçambique são elementos centrais na insatisfação popular. Embora o país possua abundantes recursos naturais, como gás, carvão e minerais, sua população continua entre as mais empobrecidas da região. As riquezas do país são exportadas a preços baixos, enquanto a população paga valores elevados por serviços básicos, como energia.

“Moçambique é exportador de energia para países como a África do Sul, mas o próprio povo paga tarifas três vezes mais altas,” relata Farida, destacando o contraste entre a exploração dos recursos e o alto custo de vida.

Além disso, grande parte dos lucros da exploração de gás e carvão vai para empresas estrangeiras e para a elite política ligada ao governo. “As comunidades locais, que vivem perto das minas e plataformas, continuam sem acesso à eletricidade, água e infraestrutura básica,” comenta Júnior, ressaltando a ausência de investimento no desenvolvimento local, apesar da abundância de recursos.

“É inacreditável que Moçambique exporte gás para a África do Sul a preços baixos e depois o importe de volta, muito mais caro. O próprio povo não consegue pagar por recursos que são nossos por direito,” observa Farida, reforçando o sentimento de injustiça em relação às tarifas altas.

O contraste entre a riqueza natural de Moçambique e a pobreza da população torna-se ainda mais evidente no dia a dia dos jovens. “Muitos jovens estão desempregados ou subempregados, e as oportunidades são escassas. Não temos acesso a nada: a educação, a saúde, nem ao básico. A juventude moçambicana vive com a frustração de saber que nosso país é rico, mas não vemos nada dessa riqueza,” desabafa Júnior.

Parte significativa da renda nacional é desviada para interesses de uma elite, o que agrava ainda mais a situação de desigualdade. “As poucas riquezas que o governo declara são desviadas em esquemas de corrupção. Os recursos de Moçambique não são usados para o povo, mas para enriquecer ainda mais uma elite política. E a juventude vê isso e se revolta,” observa Farida.

Esse descontentamento econômico alimenta o desejo de mudança entre os jovens, que não veem perspectivas de um futuro melhor sob a estrutura atual de exploração e concentração de renda. “Os jovens moçambicanos estão cansados de ver suas famílias sofrendo enquanto a riqueza do país vai para os bolsos de poucos. É isso que nos motiva a lutar e buscar alternativas, mesmo que isso signifique arriscar nossas vidas,” afirma Júnior.

Mobilização digital e o papel das redes sociais

As redes sociais desempenham um papel fundamental na organização e no compartilhamento de informações não censuradas. Júnior e Farida destacam a importância das plataformas digitais para a juventude moçambicana, que enfrenta um ambiente de censura e manipulação das informações nos meios tradicionais.

“Se não tivéssemos as redes sociais, não teríamos as informações que temos. O governo controla completamente a mídia tradicional,” comenta Júnior, ressaltando que as redes estão sob constante ataques e bloqueios por parte da FRELIMO. O perfil nas redes sociais de Venâncio Mondlane ilustra a força das redes sociais, alcançando mais de cem mil visualizações em poucos minutos através das suas transmissões ao vivo.

Uma luta pelo futuro

A crise política e social em Moçambique é o resultado de anos de controle e repressão por parte da FRELIMO, um partido que consolidou seu poder às custas da liberdade e do bem-estar do povo. A juventude moçambicana, afetada pela corrupção, pela censura e pela pobreza, decidiu resistir e exigir mudanças. A repressão brutal e o controle da comunicação demonstram a resistência do governo em ceder, enquanto a população permanece mobilizada, mesmo enfrentando riscos elevados.

“A juventude já não aceita viver sem perspectiva. Prefere lutar nas ruas, enfrentar os riscos, a permanecer sem voz,” reflete Farida.

“Nossa luta não é só contra a FRELIMO, é contra qualquer governo que se recuse a ouvir o seu povo”, completa Júnior, enfatizando que a resistência vai além de uma questão partidária e eleitoral, sendo uma luta pela democracia e pela dignidade.


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