O sopro de Benjamin Péret

Em homenagem ao poeta surrealista francês Benjamin Péret fazemos um brevíssimo resumo sobre sua vida e compartilhamos três fragmentos de sua revolucionária obra.

Benjamin Péret 18 set 2017, 19:05

“Quem é Benjamin Péret? Um homem que parece um homem”
— Paul Éluard

“[Péret] era o poeta surrealista por excelência: liberdade total de uma inspiração límpida, fluindo como fonte, sem nenhum esforço cultural e no mesmo instante recriando um outro mundo”
— Luis Buñuel

“Só dos verdadeiros poemas pode sair o sopro da liberdade”
— Benjamin Péret

Em 18 de setembro de 1959, morre em Paris o poeta surrealista Benjamin Péret (1899-1959). Sobrevivente da primeira guerra mundial, segue os literatos André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault e Paul Éluard, quando rompem com o dadaísmo e funda o surrealismo, movimento artístico que sublinha o valor da arte sem a intervenção limitadora da razão e a preponderância do inconsciente na comunicação do indivíduo com o todo que o cerca. Em 1927, imperativo de transformar o mundo por meio de uma revolução social leva Péret a se filiar ao Partido Comunista Francês (PCF), cujo processo de stalinização logo será criticado por Péret. Ajuda a formar um núcleo da Oposição de Esquerda na França. Um ano depois, casa-se com a cantora lírica brasileira Elsie Houston, com quem vem para o Brasil um ano mais tarde onde permanece até 1931. Seu cunhado é ninguém menos que o então advogado e jornalista Mario Pedrosa, um dos primeiros trotskistas brasileiros.

Ativamente envolvido nos debates dos modernistas brasileiros na passagem dos anos 20 para os anos 30, jamais abandona a militância política, fundando em 21 de janeiro de 1931, junto com Mario Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo, a Liga Comunista do Brasil, seção brasileira da Oposição Internacional de Esquerda (trotskista). Torna-se secretário do comitê regional da Liga no Rio de Janeiro, sob o pseudônimo de Maurício. No final do mesmo ano é expulso do Brasil pelo governo Vargas, após escrever um trabalho sobre a Revolta da Chibata, intitulado O Almirante Negro, estabelecendo um paralelo com a revolta do encouraçado Potemkim na Rússia. A justificativa do governo é que Péret constituía um ‘elemento nocivo à tranquilidade pública e à ordem social”.

Em 1936, em Barcelona, pega em armas para defender a revolução espanhola. De 1941 a 1947 vive exilado do México, de onde retorna para seu país natal em que passará os doze anos finais de sua vida acompanhando Andre Breton na construção do movimento surrealista. Em 1966, Breton morre e é sepultado ao lado de seu grande amigo no cemitério de Batignolles em Paris.

Para saber mais, ler o artigo Benjamin Péret: um surrealista no Brasil, (1995) do professor Jean Puyadé, responsável pela edição edição da primeira coleção de poemas e ensaios de Péret, Amor Sublime (1985, Editora Brasiliense).

Allo

Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno
meu gueto de íris negras minha orelha de cristal
meu rochedo despencando-se pela falésia para esmagar o guarda-florestal
meu caracol de opala meu mosquito de ar
meu acolchoado de aves-do-paraíso minha cabeleira de escuma negra
meu túmulo estilhaçado minha chuva de gafanhotos vermelhos
minha ilha voadora minha uva turquesa
minha colisão de loucos e prudentes automóveis minha platibanda selvagem
meu pistilo de dente-de-leão projetado no meu olho
meu bulbo de tulipa no cérebro
minha gazela perdida num cinema das avenidas
meu estojinho de sol minha fruta de vulcão
meu riso de lagoa escondida onde vão se afogar os profetas distraídos
minha inundação de cassis minha borboleta de cogumelo
minha cascata azul como uma vaga de maremoto que faz a primavera
meu revólver de coral cuja boca me chama como o olho d’um poço cintilante
gelado como o espelho onde contemplas a fuga dos colibris do teu olhar
perdido numa mostra de lençóis rodeada de múmias
eu te amo

(Tradução: Suely Bastos)

Os mortos e suas crianças

A Denise Kahn.

Se eu fosse alguma coisa
não alguém
diria aos filhos de Édouard
providenciem
e se eles não providenciassem
eu iria para a floresta dos reis magos
sem galochas e sem ceroulas
como um eremita
e haveria certamente um grande animal
sem dentes
com plumas
e redondo como um vitelo
que viria uma noite devorar minhas orelhas
Então deus me diria
você é um santo entre os santos
pegue este automóvel
O automóvel seria sensacional
oito cilindros e dois motores
e no centro uma bananeira
que camuflaria Adão e Eva
fazendo

mas isso será objeto de outro poema

Fragmento do panfleto “A desonra dos poetas” (1945)

Escrito em polêmica com o livro “A honra dos poetas”, de Pierre Seghers, Paul Éluard e Jean Lescure.

Se se procura o significado original da poesia, hoje dissimulada sob os mil ouropéis da sociedade, constata-se que ela é o verdadeiro sopro do homem, a fonte de todo o conhecimento e esse conhecimento sob seu aspecto mais imaculado. Nela se condensa toda a vida espiritual da humanidade desde que começou a tomar consciência de sua natureza; nela agora palpitam suas mais elevadas criações e, terra para sempre fecunda, conserva perpetuamente em reserva cristais incolores e as colheitas do amanhã. Divindade tutelar de mil faces, aqui denominada amor, lá liberdade, alhures ciência. Ela permanece onipotente, ferve na narrativa mítica do esquimó, eclode na carta de amor, metralha o pelotão de execução que fuzila o operário exalando um último suspiro da revolução social, portanto, de liberdade, chispa na descoberta do cientista, desvanece, lívida, até nas mais estúpidas produções que a invocam e a sua lembrança, louvor que gostaria de ser fúnebre, trespassa ainda as palavras mumificadas do padre, seu assassino, a quem o fiel escuta, procurando-a, cego e surdo, no túmulo do dogma onde ela não é mais que falacioso pó.

Seus inumeráveis detratores, verdadeiros e falsos padres, mais hipócritas que os sacerdotes de todas as igrejas, falsos testemunhos de todos os tempos, acusam-na de ser um meio de evasão, de fuga diante da realidade, como se ela não fosse a própria realidade, sua essência e sua exaltação. Todavia, incapazes de conceber a realidade em seu conjunto e suas complexas relações, eles só a querem ver sob o seu aspecto mais imediato e mais sórdido. Só percebem o adultério sem nunca experimentar o amor, o avião bombardeiro sem se lembrar de Ícaro, o romance de aventuras sem compreender a aspiração poética permanente, elementar e profunda que ele tem a vã ambição de satisfazer. Desprezam o sonho em proveito de sua realidade como se o sonho não fosse um de seus aspectos, o mais emocionante; exaltam a ação em detrimento da meditação como se a primeira sem a segunda não fosse um esporte tão insignificante quanto todo o esporte. Outrora, eles opunham o espírito à matéria, seu deus ao homem; hoje, defendem a matéria contra o espírito. De fato, é contra a intuição que se lançam, em primeira razão, sem se lembrarem de onde brota essa razão.

Os inimigos da poesia sempre tiveram a obsessão de submetê-la a seus fins imediatos, esmagado-a sob seu deus ou, agora, acorrentando-a à nobreza da nova divindade morena ou “vermelha” – vermelha-escura de sangue seco – ainda mais sangrenta do que a antiga. Para eles, a vida e a cultura resumem-se ao útil e ao inútil, estando subentendido que o útil assume a forma de uma picareta manipulada em seu benefício. Para eles a poesia é o luxo do rico, aristocrata ou banqueiro, e se ela se quiser tornar útil à massa, deve-se resignar ao destino das artes “aplicadas”, “decorativas”, “domésticas”, etc. Instintivamente, sentem, contudo, que ela é o ponto de apoio exigido por Arquimedes e, temem que, levantado, o mundo caia sobre suas cabeças. Daí resulta a ambição de aviltá-la, retirar-lhe toda a eficácia, todo o valor de exaltação para lhe atribuir o papel hipocritamente consolador de uma irmã de caridade.

Mas o poeta não deve alimentar (em outrem) uma ilusória esperança humana ou celeste, nem desarmar os espíritos insuflando-lhes uma confiança sem limite num pai ou num chefe contra quem toda a crítica se torna sacrílega. Muito pelo contrário, cabe a ele pronunciar palavras sacrílegas e blasfêmias permanentes. O poeta deve, antes do mais, tomar consciência da sua natureza e de seu lugar no mundo. Inventor para quem a descoberta não é senão o meio de alcançar uma outra descoberta e deve combater sem tréguas os deuses paralisastes encarniçados em manter o homem na servidão perante as forças sociais e suas divindades – as quais se completam mutuamente. Ele será, portanto, revolucionário, mas não daqueles que se opõem ao tirano de hoje, nefasto a seus olhos porque prejudica os seus interesses, para vangloriar a excelência do opressor de amanhã do qual já se constituíram os serviçais. Não, o poeta luta contra toda a opressão: a do homem pelo homem, inicialmente, e a opressão de seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele combate para que o homem alcance um conhecimento para sempre perfectível de si mesmo e do universo. Disso não decorre que deseje colocar a poesia ao serviço de uma ação política, mesmo revolucionária. Todavia, sua qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: o da poesia pelos meios próprios a esta e no terreno da ação social sem nunca confundir os dois campos de ação sob pena de restabelecer a confusão que se trata de dissipar e, em seguida, cessar de ser poeta, isto é, revolucionário. […]


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Pedro Micussi