Palestina e os bens comuns: ou Marx e a musha’a
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Palestina e os bens comuns: ou Marx e a musha’a

Uma reflexão entre o pensamento marxista e as formas de propriedade comunitárias na Palestina

Peter Linebaugh 22 mar 2024, 13:20

Foto: Fadi Amira

Via Sin Permiso

Em 1958, o subdiretor fez a leitura da Bíblia na assembleia matutina da Karachi Grammar School (Paquistão), fundada em 1848 pela Igreja da Inglaterra [1]. A leitura de Atos 17:23 se referia a declaração de São Paulo ao ver o monumento ateniense dedicado a um Deus desconhecido. “O que vós adorais e não conheceis, isto é o que eu proclamo”, e eu, que na época tinha dezessete anos, gritei a resposta para que todos a escutarem: “Comunismo”: “Comunismo”. 

Como filho dos impérios britânico e estadunidense, cheguei a essa rebelde conclusão dois anos antes da Escola Superior do Exército de Frankfurt. Me baseando no estudo do O Manifesto Comunista que realizei na biblioteca do Clube de Oficiais do edifício de I.G. Farben, pude responder a essa antiga pergunta levantada na ágora ateniense por um homem da Palestina. 

Não começo a me interessar pelas guerras da Palestina nem como um erudito árabe ou hebreu, nem sequer como um conhecedor de outras formas de vida na região: azeitonas, almendras, figos, cítricos, ovelhas, algodão ou grãos como o trigo. Venho como estudante, com uma admiração de toda uma vida pelas tradições radicais, abolicionistas e antinomianas: Jesus e os profetas, Karl Marx, Gerard Winstanley, Thomas Spence, Olaudah Equiano, a IWW, Frederick Douglass, Shunryu Suzuki, Elizabeth Poole, Ann Setter, Ivan Illich, Malcolm X, William Blake, Silvia Federici, E.P. Thompson, Robin Kelley, Manuel Yang, Michaela Brennan, Midnight Notes, CounterPunch e Retort; e logo me converti em historiador de todos os anteriores, com interesse especial nos bens comuns. Como eu e Marcus Rediker falamos na introdução à tradução ao árabe da nossa Many-Headed Hydra, Heródoto, “o avô da história”, explicou que a Palestina se encontrava entre a Fenícia e o Egito.

Além de ir a Atenas, berço da filosofia (philia = amor, Sophia = deusa da sabedoria) Pablo comparecia a reuniões onde tinham “tudo em comum” (Atos 4:32). O Jubileu era outra das coisas bíblicas que eu poderia aderir, porque me encantam seus princípios de devoção da terra, liberdade agora, não trabalhar, perdão da dívida e descanso para a venerada mãe Terra. Todo ele me parece uma linda combinação de revolução e relaxamento. Pablo se converteu em seguidor de Jesus que foi expulso da sua cidade natal e quase assassinado por proclamar o jubileu agora mesmo. Chamava ao descanso e ao perdão. A única base económica de algo assim são os bens comuns. A luta na Palestina nos ajuda a ver isso. 

Acredito que a musha’a (terra agrícola de propriedade comunitária), de forma igual que práticas similares em qualquer outra parte do mundo, pode nos ajudar a fazer real um mundo baseado em condições justas de mutualidade, chamando como quiser: o verdadeiro comunismo, a comunidade cooperativa, os bens comuns. O pensamento renovado dos comuns nasceu da luta contra os novos cercamentos da era neoliberal e se inspirou nas práticas comunais das comunas autonomistas zapatistas de Chiapas e sua defesa do ejido. O pró-comum se entende agora como um avanço conceitual chave para orientar visões e caminhos a futuros pós-capitalistas. O pró-comum também marca o escape radical dos paralisantes fracassos e legados do socialismo de estado modernista [2]. 

Devo escrever sobre a musha’a, uma forma palestina de propriedade da terra, ou os bens comuns, que os otomanos, os britânicos, e os israelitas tentaram destruir. Inclui a propriedade coletiva, o trabalho cooperativo e a distribuição periódica. São princípios que também se encontram na promulgação mais antiga do cancelamento da dívida, a liberação da servidão e a restauração da propriedade da terra. Além do jubileu, foi defendido por Enmetena, um governante de Lagash, por volta de 2400 a.C. e evoluiu até se converter em proclamações gerais de anistia [3]. A musha’a era uma instituição defensiva contra o medo dos impostos e o recrutamento militar por parte das autoridades otomanas. 

A importância planetária da Palestina é tripla: em primeiro lugar, sua geografia está na conjunção de três continentes, Ásia, África e Europa, e as águas entre eles. Em segundo lugar, estão as extrações do solo palestino, assim como debaixo dele (grãos minerais, petróleo e gás). E em terceiro lugar, a importância da Palestina para o cristianismo, o Islam e o judaísmo. Três grandes religiões, três grandes continentes, e economias originais de cultivo da terra, de exploração mineira da terra, e da perfuração da terra, fazendo modos de produção desde a “meia lua fértil” até o presente petróleo com suas terríveis perturbações planetárias. A luta pela libertação da Palestina tem amplitude geográfica e profundidade histórica, o que explica que se a considera “a alma das almas de todas as nossas lutas”. O mundo inteiro acordou para ela. 

Para introduzir mais o tema, ainda que com risco de passar do sublime contemporâneo ao ridículo antigo, atendemos a um discurso pronunciado no dia 20 de fevereiro de 1890, no Victoria Institute de Londres, por James Neil, M.A. Explica como no sul da palestina se repartia por sorteio a terra cultivável [4]: “as pessoas que se propõem a trabalhar a terra se dividem em grupos, e o chefe de cada grupo sorteia uma sessão da terra proporcional ao número de pessoas de seu grupo. Cada sessão se compõe de terras de diferente fertilidade e qualidade. Essas sessões se subdividem de novo por medição com uma agulha de boi, ou uma linha chamada habaleh, a contraparte da linha de medição [como se aponta na Escritura Bíblica]. Os agricultores, nas regiões que têm esse costume, preferem este método de divisão comunista à propriedade em pleno domínio. 

“Fee simple” é uma frase feudal, um termo legal inglês para a propriedade privada: podes usá-lo ou abusar dela, podes concedê-la, podes aliená-la, podes vendê-la e, acima de tudo, podes excluir a outros [5]. O direito romano se refere a fructus, abusus e sua, ou frutos, abusos e usos. A ideia da propriedade individual e exclusiva da terra é, segundo seu historiador, Andro Linklater em seu livro Owning the Earth, “a força mais destrutiva e criativa da história escrita” [6]. 

O Fundo de Exploração da Palestina foi fundado em 1865 e levou a cabo estudos e etnografias da Palestina otomana. Era uma operação anglicana que financiava arqueólogos e clérigos. “Estamos próximos de aplicar as regras da ciência”, disse o arcebispo de York na abadia de Westminster na sua fundação, “à uma investigação dos feitos relativos à Terra Santa”. O Quarterly Statement of the Palestine Exploration Fund de abril de 1891 inclui isto em seu estudo sobre a propriedade da terra e a agricultura na Palestina: “… No sul da Palestina, e em alguns outros distritos, a terra é apropriada em comum por todos os habitantes de uma aldeia, e repartida em tempos determinados aos cultivadores individuais de acordo com sua capacidade para cultivar, sendo sua norma o número e a potência do gado utilizado para arar. Essas terras são conhecidas como musha’a”.

Em 1865, além da fundação do Fundo de Exploração da Palestina, os cristãos e evangélicos da Inglaterra formaram o Instituto Victoria para defender “as grandes Verdades reveladas nas Sagradas Escrituras… contra a oposição da chamada ciência “. Seus líderes eram sionistas cristãos. Os bens comuns e o comunismo estavam facilmente vinculados na mente da Igreja da Inglaterra. Em contraste com o jubileu e outros textos sagrados da Bíblia, o 38° de seus 39 artigos de religião simplesmente afirma: “as riquezas e bens dos cristãos não são comuns em relação ao direito, título e posse dos mesmos….”. Vejamos isto mais de perto e considerando a musha’a e o comunismo. 

Além das práticas beduínas de pastoreio comum, a musha’a, como agricultura baseada na aldeia, era outra versão dos bens comuns da terra, e era propriedade coletiva da aldeia, cujos membros individuais possuíam ações (ahsahm) em seus direitos de uso. Isto incluía o direito a semear, arar, cultivar e colher. A eira, ao mesmo modo que a terra, era propriedade comum. Em segundo lugar, a musha’a permitia a redistribuição e equiparação do ahsahm a diferentes grupos familiares em intervalos de um a cinco anos. Esses direitos eram hereditários e estavam determinados pelos desejos e necessidades do cultivador. 

Quando James Reid falava de “divisão comunista” em contraste com os honorários simples, ao que se referia? O espectro do comunismo perseguia não só a Europa, como escreveram Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista (1848), mas também a Palestina, disse James Reid, M.A., ao Instituto Victoriano. “Nesse sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida em uma só frase: Abolição da propriedade privada”. Em que sentido se referiam Marx e Engels? Se referem ao emprego da propriedade como meio de explorar os outros, o capital em outras palavras. Marx elaborou sua concepção do comunismo anos mais tarde, quando foi publicada sua Crítica ao Programa de Gotha no mesmo ano, 1891, em que James leu seu discurso aos eruditos vitorianos do império. Aqui repetiu a definição comum entre os revolucionários de 1848 e cujo sentido originou-se antes com Gracchus Babeuf durante a revolução francesa [7]: “de cada qual segundo suas capacidades, a cada qual segundo suas necessidades”. O princípio se aplica a masha’a pela qual as capacidades e as necessidades se decidem coletivamente. Comunismo e pró-comum começam a sobrepor-se. 

A musha’a evoluiu ao longo de quatrocentos sob domínio do Império Otomano, que reivindicava a propriedade da terra como norma e efeitos fiscais nas terras miri.  Surgiu na aldeia, não no Estado, como um sistema de propriedade coletiva da terra para os cultivadores, que constituíam a imensa maioria da população. Os esforços para instaurar a propriedade privada mediante a reforma otomana, o mandato britânico ou a ocupação sionista se chocaram com uma resistência dedicada e persistente em “a aldeia musha’a igualadora de terras em toda a Palestina”. “Não havia necessidade de uma reforma agrária, que apenas resultou destrutiva para a economia dos fellaheen. Anulou as vantagens inerentes ao sistema e, inesperadamente, facilitou a transferência de terras dos árabes aos judeus” [8]. 

Samuel Bergheim escreveu uma descrição antecipada da musha’a para o Fundo de Exploração Palestino. Proveniente de uma família de banqueiros europeus, Bergheim comprou propriedades na Palestina com títulos de propriedade aceitos pelos otomanos [9]: “Quando meu irmão e eu compramos as terras de um povo faz alguns anos para seus habitantes, as autoridades turcas nos reconheceram como os proprietários e nos deram títulos de propriedade, de acordo com uma lei sobre a propriedade absoluta aprovada pelo defunto sultão faz uns vinte anos. Porém, não foi assim [para] os habitantes da aldeia, pois quando chegamos a repartir a terra em parcelas para seu cultivo, os aldeões protestaram e se negaram a aceitar o novo arranjo. Só queriam a terra na musha’a”. 

A família Bergheim comprou terras em 1872; em 1885 Peter Bergheim foi assassinado. Gezer foi também o lugar de um dos primeiros encontros entre o colonialismo dos colonos (a fazenda Bergheim) e a resistência campesina à imposição do código de privatização de terras de 1858, no qual se minava o sistema comunal (musha’a). O assassinato de Peter Bergheim – banqueiro, colono e arqueólogo aficionado – pelas mãos dos campesinos de Abu Shusha revelou a relação dinâmica entre a arqueologia, os primeiros assentamentos agrícolas europeus e a desapropriação da terra por parte dos campesinos. 

Noura Alkhalili explica que a musha’a era “uma cultura levantina da terra comum, antigamente predominante” [10], e descreve uma das principais formas pela qual a musha’a das aldeias, um bem comum majoritariamente agrário, se transformou em uma periferia urbano por meio da violência da cartografia, a titulação, a compra e venda, que alojou as pessoas em cidades e acampamentos através da expropriação da terra. A transformação foi catastrófica: os fellaheen se transformaram em refugiados e os refugiados em proletários. O processo se viu favorecido pelos acordos de Oslo de 1993 e 1995, que se baseiam na propriedade privada e as relações de mercado do neoliberalismo, e na teoria neoliberal do “desenvolvimento econômico”. Na Palestina, ao contrário de Inglaterra, foi mais do que apenas cercas e sebes: incluiu o muro de separação de dez metros na Cisjordânia, construído entre 2005 e 2008, após a Segunda Intifada.

Como transmitiu a diáspora dos fellahen estas noções de reciprocidade, obrigação e ajuda mútua, cujos valores residem na família, no coração da comunidade e no peito de cada pessoa? Como se transferiu esses princípios do campo para a cidade? O que carregam os refugiados em seu coração além dos escassos pertences que levam em sua charrete ou carro? Que práticas alimentam e transportam a sabedoria coletiva da sobrevivência e da resistência? Alimentos, moradia, segurança, atenção sanitária e água são necessidades imediatas. 

Noura Alkhali, que realizou seu trabalho de campo em 2013, escreve: “Os fellaheen da Palestina não necessitavam fronteiras para identificar suas parcelas; as figueiras e as oliveiras eram pontos de referência convenientes para todos na comunidade.” Também explica como tanto as casas como as árvores podiam se transformar em propriedade privada. As árvores também eram mnemotécnicas como recordatórios, sobreviventes. De John Berger, o crítico de arte com um amor pelos campesinos similar ao de Tolstoi, diz-se que “as nespereiras e as amoreiras de Ramala o lembravam da época anterior a Nakba, quando era uma cidade de ócio e consolo”. “Enquanto cresça a erva”, diz o ditado indígena das ilhas da Tortuga. Les Levidow explica que uma resposta palestina à remodelação sistemática da terra e a expropriação dos árabes desta, foi a plantação “não autorizada” de Olivas. A oliva é um dos principais cultivos da Palestina desde pelo menos oito mil anos.    

Para Alkhalili, “a resistência fallaheen desde a baixo, contra o projeto britânico de cercamento e mercantilização da terra, tinha a ver em última instância com a proteção dos bens comuns”. Akhalili informa sobre o campo de refugiados de Shu’faat, em Jerusalém Leste, e sobre como os empreiteiros palestinos construíram arranha-céus em terrenos musha’a para impedir que os israelenses os utilizassem para construir o muro de separação.  Se refere à “invasão silenciosa do ordinário”, quer dizer, a chegada de vendedores ambulantes e pessoas sem casas. “Os cercamentos desde abaixo são o que acontece quando os subterrâneos sem propriedade invadem os bens comuns”. Eles também tomam medidas para privatizar a propriedade: “Produziu-se um processo de formação de classes, ligado à apropriação individual da terra musha’a, o que levanta a pergunta: “É isso então uma forma de submissão aos sistemas capitalistas e coloniais imperantes?”. E continua: “Enquanto que em algumas partes do mundo podemos presenciar movimentos indígenas e ativistas que tratam de recuperar os bens comuns da propriedade privada, na Palestina está acontecendo o contrário.”

Em 1895, Theodore Herzl, autos de O Estado judeu e pai fundador do sionismo, confessou em seu diário: “Devemos expropriar suavemente a propriedade privada que nos foi atribuída….” O ensaio de Jabotinsky de 1923 “O muro de ferro”, assim como o próprio Herzl, comparavam o projeto sionista com as expropriações dos colonos ingleses e estadunidenses. Desde 1948 foi expropriado 80% das terras árabes.  Entre os métodos utilizados nesta expropriação está a escavação de poços artesianos mais profundos para obter água. Um terço do abastecimento de água israelense se bombeia desde a Cisjordânia. O sistema hidrológico doméstico, municipal, agrícola e industrial está controlado por uma companhia de águas israelense [11].  

Noura Alkahalili é testemunha próxima e escrupulosa da transformação urbana de Musha’a em condições de ocupação hostil. Gary Fields, por sua parte, oferece um reflexo histórico para nossas reflexões [12]. Seu estudo é formado por três partes: Os cercamentos ingleses, a conquista indígena americana e a colonização palestina. Se trata de três “casos” de cercamento. As ideias e práticas inglesas “emigram” à América; os cercamentos ingleses estão na mesma “linhagem” que os Palestinos. O novo desenho de mapas e a criação de limites se juntaram à modernização e às ambições territoriais dos proprietários de fazendas. “Em cada caso, os sistemas de propriedade da terra derivados do costume e imbuídos de direitos coletivos de uso e formas cooperativas de gestão foram atacados pelos modernizadores”. Em três partes, Gary Fields analisa o enclosure na Inglaterra desde o século XIV até o XVIII. Descreve a conquista e as reservas dos povos indígenas na América do Norte e, por último, descreve o caso palestino ou o colonialismo de colonos dos sionistas. Capitalismo, colonialismo e nacionalismo são os termos que são oferecidos numa tentativa de generalizar a partir dos “casos”. Mapas, leis e cercas são as técnicas de aquisição e possessão. Para Inglaterra   foi o benefício, para a América a raça e para a Palestina a religião. “Estes três estudos de casos de desapropriação oferecem diferentes caminhos em direção à modernidade”, escreve, e também poderíamos dizer que os três casos são três indícios da mesma superestrutura que vão na mesma direção, a saber, a “modernidade” ou a perdição.

Fields emprega o termo de Edward Said “geografia imaginativa” como primeiro passo da colonização, a partir da qual se realizaram os mapas e a paisagem. Os direitos sobre a terra são direitos de exclusão, que delimitam o meu e o teu, para utilizar uma frase antiga. Sob os otomanos, os cultivadores da palestina criaram “um sistema único de propriedade comunal conhecido como a musha’a, que dava aos aldeões o controle sobre as práticas de cultivo e distribuía os riscos da agricultura de subsistência.” 

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Com o colapso do Império Otomano no final da Primeira Guerra Mundial, os britânicos receberam o mandato de governar a Palestina. A infame declaração de Balfour prometeu ao banqueiro Rothschild “um lugar nacional para o povo judeu”. Sob o mandato britânico, 70% das terras dos povos seguiam nas mãos das musha’a. Sir Ernest Dowson, engenheiro e agrimensor, advogava pelo cercamento e repartição das terras comunais. Realizou o primeiro estudo cadastral da Palestina. Em 1925 seu “Estudo preliminar da propriedade da terra na Palestina” estava em plena continuidade com os defensores clássicos da destruição dos comuns ingleses, a saber, Arthur Young, John Sinclair e William Blith[13]. Os britânicos conseguiram medir e titular 25% da Palestina. Este enfraquecimento da musha’a foi uma vitória para o movimento sionista, já que agora a terra podia ser comprada e ser vendida. Mesmo assim, em 1947 os sionistas haviam obtido por compra menos de 10% da terra cultivável palestina: a aldeia e os aspectos da musha’a seguiam dominando. Ernest Dowson dirigiu o trabalho de registro de terras. Dirigiu os cadastradores, agrimensores que elaboraram cadastros e registros de extensão, valor e titularidade das propriedades. Seu trabalho asfaltou o caminho para a colonização sionista. 

Por outra parte, na Comissão Peel de 1937, a musha’a foi identificada como um elemento dissuasivo frente a tenaz resistência. Os árabes consideravam a musha’a “como uma salvaguarda contra a alienação”, nas palavras da Comissão. Talvez seja esta relação com a terra frente ao Império Britânico o que deu a fellaheen seu caráter mundialmente conhecido, expressado na palavra árabe sumud, o firme. 

A luta é pela liberação, não por um novo Estado. “O projeto topográfico, cadastral e cartográfico do Mandato britânico… pretendia centralizar o poder e a tomada de decisões longe da população indígena… [O] maior obstáculo do projeto: a musha’a, um sistema de equalização de terras gerido diretamente pelos próprios campesinos” [14]. “A musha’a caracterizava-se pela redistribuição periódica das parcelas agrícolas entre os campesinos cultivadores que tinham direitos sobre as partes da terra em forma de ações”. “A prática contínua de negociar a redistribuição da terra dava ênfase nas relações, nas responsabilidades e nos laços afetivos entre os aldeões.” 

 A cerca, a sebe, o muro, a cerca de metal, o arame farpado, o tijolo e o bloqueio de concreto se converteram nos meios e símbolos deste vasto cercamento. Dita arquitetura se uniu à lei (criminalização dos costumes) e à cartografia (teodolito, correntes) para destruir as comunidades baseadas em terras comuns. Na Inglaterra chamavam essas terras de “baldios”. Na América as chamaram de “wilderness”. Ou na língua do império romano, o latim, que em contrapartida se referiam a terra nullius o vacuum domicilium. As crianças buscavam os “terrenos baldios” para seus jogos e esportes. Em contraste com a língua vernácula, cujo gênio mais destacado foi o poeta pobre e plebeu profundo John Clare, amado dois séculos mais tarde na Palestina, que não é uma “terra nada” nem um “domicílio vazio”. A oliva, o figo, o damasco, a videira, a romã, a nogueira, as amêndoas, as laranjas e os limões eram frutos da Palestina. 70% da terra cultivável na época da nakba seguia sendo da musha’a

A aldeia musha’a se parecia com a aldeia inglesa com sua tomada de decisões coletiva, a atribuição de recursos, os frutos da agricultura de campo aberto e a cesta de direitos comuns. Na Inglaterra, a terra adotava muitas formas: prados, bosques, pântanos, charnecas, páramos, marismas, terras altas e terras cultiváveis. Cada uma delas tinha características ecológicas particulares e, portanto, modos de apropriação consuetudinária também diferentes. O mundo conhece o processo graças a literatura inglesa. Robison Crusoe (1719) é o texto clássico do individualismo, o cercamento, a possessão e a conquista. O poeta radical inglês William Blake, no apogeu do movimento revolucionário contra opressores e cercadores, os que pretendiam em nome do benefício e do comércio (“melhora” a chamavam) fechar os campos abertos, escreveu que “criar uma pequena flor é trabalho de séculos”, e logo outra vez que “a melhora faz caminhos retos mas os caminhos tortos sem melhora são caminhos de Gênio”. O “direito de vagar” inglês está relacionado com o “direito de voltar” palestino. O cercamento provoca odium porque equivale a desapropriação, empobrecimento, despovoamento, migração forçada, carestia, nostalgia, tristeza e traumas. A sebe materializava o cercamento, da mesma maneira que a estrada reta. 

Mediante a luta, a musha’a se transformará. Hoje restam vestígios de mutualidade, inclusive na cidade e seus campos de refugiados pela violência da guerra, a desapropriação e a privatização da terra. A violência sempre acompanha a expropriação. O próprio Ernest Dowson a comparou com os cercamentos parlamentares do século XVIII. Lorde Balfour comparou em seu diário a colonização da Palestina com a desapropriação dos seiux, o povo lakota, sobre o que podemos aprender de Nick Estes e a Nação Vermelha que lançou o grito mundial: “Devolvamos a terra!”. 

Os Povos indígenas da América do Norte cultivaram plantas com três resultados: 1) o milho se converteu em pilar “das três irmãs” (milho, feijão e abobora), 2) as mulheres se ocupavam destes cultivos e 3) a aldeia se converteu na unidade básica da sociedade. Todo ele se viu minado por “um discurso sobre a melhora da terra e dos direitos de propriedade – complementando com noções de selvageria e racismo – [que] se assentou na paisagem….”. Um quadriculo em forma de tabuleiro de xadrez de limites municipais e de condado dentro da qual se fechou aos indígenas em reservas. O achado mais surpreendente da Enclosure é a influência duradoura da “melhora da terra” como inspiração ideológica para a reimaginação da paisagem e impulsionadora do processo de cercar e tomar posse da terra”. Mapas, leis e cercamentos são técnicas de aquisição e possessão. Para a Inglaterra, a melhora da terra significava benefício. O que significava “melhora”? 

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Os plebeus na Inglaterra, de igual modo que os nativos americanos, eram considerados “selvagens”. Como tais pertenciam a lugares distantes (Índia, América, África) em épocas distantes (a.C., neolítico, feudal). Para Arthur Young, teórico e primeiro cronista exaustivo do cercamento, os plebeus eram “os godos e vândalos dos campos abertos”. Vinculados aos plebeus da metrópole com os povos indígenas do mundo na interpretação estamental da história humana e suas quatro etapas que conduzem à “civilização” ou à “modernização”, e vinculados ele mesmo os plebeus e os povos indígenas contra o “progresso”, a “melhora” ou o “desenvolvimento” econômico, as palavras da moda dos planificadores, políticos e responsáveis políticos de todo o mundo. 

Um estudo mais antigo falava das “etapas”, não de “casos”. Qual é a diferença? Fields não escreve sobre o trabalho e a reorganização continental do trabalho nem sobre o dinheiro e o investimento global para maximizar a mais-valia. A burguesia elaborou teorias da mudança histórica com determinismo econômico descrevendo a história humana em quatro ou cinco “etapas” de crescimento econômico. A História de América de William Roberton, publicada em 1777 em plena Guerra de Independência estadunidense, desenvolveu a teoria das “etapas” do progresso da “humanidade” desde a selvageria até a civilização. Escoceses como Adam Ferguson e Adam Smith elaboraram as teorias sociológicas e econômicas das etapas: comunismo primitivo, pastoreio, agricultura e comércio, ou o que é o mesmo que: selvageria, barbárie, feudalismo e capitalismo. Em cada uma destas era fundamental a relação tecnológica com a terra, assim como a diferenciação de classes e o patriarcado. A coleta de ervas, a caça no bosque, o cultivo da terra, a mineração subterrânea, até que a quantidade superou a qualidade em uma incessante acumulação demoníaca. Era uma teoria poderosa, mas ilusória que propugnava tanto o determinismo como a inevitabilidade. A dinâmica da mudança de uma etapa ou modo de produção para outro se produziu como revolução. 

Em 1878, Vera Zasulich tentou assassinar o prefeito de São Petersburgo e foi encarcerada por isso. Três anos mais tarde, em março de 1881, o czar Alexandre II foi assassinado em São Petersburgo. Um mês antes, Vera Zasulich se deparou com uma “questão de vida ou morte” para levantar à Karl Marx. Pode a comuna rural (a obshcina) desenvolver-se em uma direção coletivista e socialista, ou está destinada pelas leis da história a perecer como uma forma arcaica? É só uma fase do passado ou é uma semente do futuro? A resposta de Marx foi interessante. A escreveu quatro rascunhos de carta. No final a enviou uma resposta relativamente breve e sem incerteza em sua conclusão: “O estudo especial que fiz dela, incluída a busca de material de fontes originais, me convenceu que a comuna é o ponto de apoio para a regeneração social na Rússia”. Os quatro rascunhos anteriores nos dão uma ideia de seu “estudo especial”.


Em sua carta a Zasulich, Marx citava O Capital, cujo primeiro volume chegaria a ser traduzido para o russo. Afirmava que “a expropriação do produto agrícola, do campesinato, do solo é a base de todo o processo”. Marx a escreve sobre “todos os meandros históricos” ou as “espantosas vicissitudes” que caracterizam tais tradições. Para ela ele faz uma poderosa diferenciação entre a “comuna arcaica” quando a residência comunal era em uma só casa, como com os Haudenosaunee ou “gente da casa larga”, quando o parentesco e o pertencimento comunal se solapavam consideravelmente, e a produção era coletiva em contraste com a comuna agrária onde o campo aberto estava dividido em franjas individuais. O trabalho e a terra eram coletivos na comuna arcaica, enquanto na comuna agrária prevalecia um dualismo, com alguns elementos coletivos e outros individualistas. Marx advertiu Zasulich que “para salvar a comuna russa, deve haver uma Revolução Russa” [15]. A visão de Marx da história não é linear, é, no entanto, espiralada: o passado não está morto, e de fato nem sequer é passado. Daí “o retorno das sociedades modernas a uma forma superior de tipo ‘arcaico’ de propriedade e produção coletivas” [16]. Vincula assim o pró-comum à comuna.

Também, para nós é esta a disjuntiva a que enfrentamos na Palestina. De novo os acontecimentos nos obrigam a pensar em alternativas à privatização. Voltamos a nos perguntar o que é o comunismo. Para uma definição voltamos a Karl Marx, que escreveu uns anos antes em A ideologia alemã (1845): “Chamamos de comunismo o movimento real que suprime o atual estado de coisas”. Põem a prática à frente da teoria. O diz em um contexto em que a grande massa da humanidade estava sem propriedades, na miséria e na carência. E, porém, existia “historicamente o mundo”. Anos mais tarde, na Crítica do Programa de Gotha, produzida em 1875 e publicada em 1891, insiste que “cada passo do movimento real é mais importante que uma dúzia de programas.”  

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Os protestos contra a propriedade privada não se originam com Karl Marx. São mundiais, e a história está cheia deles. Darei aqui três exemplos. Em 1794, na colônia de colonos mais antiga da Inglaterra, Irlanda, William Drennan (1754-1820), fundador dos Irlandeses Unidos, cunhador da joia “a ilha esmeralda”, escreveu como parte de sua defesa contra a sedição: “Ao atar a herança mais antiga de todo o povo a certos pontos redondos da terra, dá-se uma localidade à liberdade, inconscientemente com sua natureza: transforma os legisladores em mediadores de terras e os mediadores de terras em legisladores; estendendo linhas de demarcação, a um lado das quais se amontoam privilégios e ao outro se pisoteia o direito comum.” [16]

Ou, na época da colonização de Massachusetts, o sachém indígena Massasoit dos Wampanoag, perguntou: “O que é isso que chamais propriedade? Não pode ser a Terra, porque a terra é nossa Mãe que alimenta a todos os seus filhos, bestas pássaros, peixes e a todos o que existe nela pertence a todos e é para uso de todos. Como pode um homem dizer que só pertence a ele?”.

E temos as perguntas de George Jackson feitas desde dentro do sistema Ameikkkan de encarceramento massivo: “Quem fez a maior parte da morte? A maior parte do trabalho? A maior parte do tempo na prisão (em Max Row)? Quem é o mais prejudicado em todos os aspectos da vida social, política e econômica?”.  

Os idealistas que buscam reformas parecem querer voltar a estudar a vida no planeta antes da privatização da propriedade ou o domínio do dinheiro e do mercado. A terra é o antigo fundamento da sociedade humana e a base de todo o bioma [17]: nem estado nem nação, nem imperium (soberania, guerra), nem dominium (fronteiras, propriedade). Em seu lugar, omnia sunt communia.

A musha’a evoluiu com a política agrária miri dos otomanos, que contemplava 87-90% das terras agrícolas do império. Em 1914, no final do Império Otomano, a musha’a ascendia à 70% da terra total. Constituía 55% da terra cultivada em 1922; 46% em 1930; 25% ao final do Mandato. Contudo, só uma quinta parte da terra total da Palestina havia sido dividida em unidades demarcadas. Em 1947 os assentamentos judeus representavam 8% da superfície terrestre da Palestina. Em 1947 só 20% da terra estava assentada com títulos. Em 2017, os assentamentos e as infraestruturas sionistas cobriam 85% do território.

Não foi só o direito o que os colonos modernos tomaram do antigo império romano. Exaltavam-se as virtudes do soldado, a honra, a fortaleza, o sofrimento, as feridas, a perda de membros, a cegueira. Se transmitia uma enorme variedade de astutos castigos militares. Era um assunto patriarcal, que ensinava os jovens e as crianças como morrer, a obediência ao Estado, a violação da Mãe Terra e a supremacia branca com seus poderes albizenses para influir no discurso, a iconografia e as estruturas do conhecimento. A “brancura” nasceu na cromática da alquimia como albificação. A isso se referia o jovem Marx quando escreveu: “Para que se perdoe seus pecados, a humanidade só tem que declará-los como o que realmente são.” (1843). O pecado aqui é o roubo de terra. Perdoar este pecado é devolvê-la. Mas como disse Calíbán,

         Essa ilha é minha por minha mãe Sycorax,

         que tu me tiraste.

Não era Sycoraz do Levante? São restos de um império europeu a outro. Sim, é certo, mas igualmente fundamental são as mulheres, cujo trabalho dá a vida, preservadoras da comunidade, guardiãs do lar, responsáveis pela reprodução humana. 

Quando os romanos diziam dos plebeus quase independentes que os proletários não serviam para nada, se não para ter filhos, nos deram a palavra “proletário”, entendida em todo o mundo. Se refere especialmente às mulheres, às tias e às “aunties”, às babás e às avós, às irmãs e à sororidade. Por isso que na África do Sul se diz “toca à mulher, toca à rocha”. As mulheres fazem a comunidade humana: a cozinha, a segurança, o cuidado e a memória. Em qualquer sistema-mundo, chame-se selvageria, barbárie, feudalismo, capitalismo – o que seja – encontrarás mulheres responsáveis pela sua reprodução. Isto é agora mais certo que nunca. A família extensa, ou hamula, era a base da comunidade aldeã e da musha’a.

Gary Fields distingue imperium de dominium seguindo uma distinção que se fazia no direito romano, onde imperium se refere à extensão territorial da soberania real e dominium ao direito a possuir terras dentro dos limites imperiais. Um crava uma bandeira no solo, o outro levanta uma cerca. Ambos trazem a fortaleza, a fronteira e a violência. Imperium e dominium podem ser paralelos às diferenças entre descobrimento e assentamento. O que se omite é a transição de um ao outro e os meios para fazer essa transição: guerra, doença, violação e rapina! O domínio do bastão: maridos que batem em suas esposas, pais que batem em seus filhos, amos que batem nos diaristas, amos que açoitam aos escravos, oficiais que açoitam aos marinheiros, etc. Os antigos habitantes cujo “descobrimento” foram tão anunciado pelos missionários cristãos estão “ausentes”, assassinados, ou se sobrevivem se convertem em auto alienados e sombras de seu antigo ser envenenado pelo álcool, envergonhado, desonrado, violados, destinados à morrer jovens.

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O sionismo cristão é tão antigo como o capitalismo. Data do século XVI. Na Inglaterra alcançou um pico importante na época de Oliver Cromwell, o grande comandante da revolução burguesa inglesa. O secretário de Cromwell defendeu que os judeus deveriam ir à Palestina. Ao mesmo tempo, depois de centenas de anos de exclusão, se permitiu aos judeus regressar à Inglaterra sob o mandato de Cromwell. O parentesco e o comércio uniam aos judeus sefarditas desde Amsterdã até o Mediterrâneo e o Atlântico. Cromwell afirmou-se como um soberano imperial disposto a competir com as demais potências imperiais e nenhuma destas tinha tanto alcance como a holandesa. Cromwell era um comandante burguês que exercia seu povo mediante a guerra. Reduziu os obstáculos ao cercamento da terra, invadiu a Irlanda, derrotou a Espanha, capturou a Jamaica. E era um sionista. Isso foi jihad, estilo protestante feito em nome de Yahweh.

Quando Oliver Cromwell cortou a cabeça do Rei e inaugurou o estado capitalista, nomeou a Walter Blith como agrimensor das propriedades reais confiscadas. Blith resumiu seus anos de confisco com uma predestinação linguística digna do duplo pensamento de George Orwell. Em 1649 publicou The English Improver, seguido em 1652 por The English Improver Improved, que vincula o confisco, o roubo simples, a privatização dos bens comuns com o progresso humano. O roubo de terras se converte em melhora agrícola! Portanto, uivar contra esse roubo é desperdiçar o alimento. Resistir-se é se opor ao futuro. É roubar a terra para teu próprio bem. Esse jogo de mãos demonstrou ser essencial para o desenvolvimento capitalista, o credo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Gary Fields disse: “A musha’a não apenas se considerava um impedimento para o desenvolvimento agrícola local e a aquisição sionista, mas representava um uso não produtivo dos recursos naturais incompatível com as noções europeias de ‘melhora’ e ‘desenvolvimento’”.

Como apontou Marx, “Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado o discurso, as paixões e as ilusões do Antigo Testamento para sua revolução burguesa” [18]. Vários assessores próximos de Cromwell entraram em contato com os judeus radicados na Holanda e defenderam o reassentamento dos judeus na Inglaterra (tinham proibida a entrada no país desde o século XIII). Combinaram-se a escatologia milenarista (o messias e a Segunda Vinda), a competência comercial imperialista, o comércio atlântico de escravos e o assentamento colonial da Bahia de Massachusetts. Dos batistas solicitaram em fevereiro de 1649 a readmissão dos judeus: “Que esta nação da Inglaterra, com os habitantes dos Países Baixos, seja a primeira e a mais rápida em transportar aos filhos e filhas de Israel em seus barcos à terra prometida a seus antepassados, Abraão, Isaac e Jacó, como herança eterna”. O sionismo cristão é inseparável da besta imperial desde a Revolução Inglesa até o presente.

Se, como Fields, compararmos os três casos como três “atos” de um drama, falta a trama unificadora. Os “casos” têm uma relação real e histórica entre sí: os cercamentos na Inglaterra conduziram à guerra e à colonização da Irlanda, assim como à criação de colônias norte-americanas, cada uma delas uma busca espoliadora de novas mercadorias e novos meios de expropriação e escravização da mão de obra. Na medida em que a riqueza gerada pela erradicação das paisagens indígenas norte-americanas (As ferrovias, as grandes planícies) conduziu a uma demanda insaciável por petróleo, a sede de recursos espreita também sobre os apetitivos vorazes no Oriente Médio (o petróleo, os oleodutos, o sionismo). Se trata da revolução burguesa (1649) cujos efeitos estão à altura das revoluções francesas (1789) ou russa (1917). Não se trata de substituir “etapa” por “caso” para resolver o problema, mas sim de que a questão da interpretação requer uma compreensão do confinamento que é uma característica necessária da expansão do sistema de relações capitalistas.

A nível teórico, capitalismo, colonialismo e nacionalismo estão interconectados, ainda que o imperialismo seja inerente ao capitalismo, que obedece à lei fundamental, ao impulso de todo o sistema: “Acumular, acumular! Isso é Moisés e os profetas!”, escreve Marx. A libertação nacional é inerente à resistência do colonialismo, como explicava Fanon, ao capitalismo.

 Assim é como se cria o proletariado. Naquelas partes da Palestina dominadas pelo arrendamento à terratenentes “os campesinos cultivadores são uma classe preguiçosa… e quase endividada”, segundo a reportagem do Fundo de Exploração da Palestina de 1891. Essa dívida inevitavelmente a faz ceder seu direito à terra, e ao fazê-lo, “se converte em um Sherîk-el-Hawa (Sócio do Vento)”. Cabe imaginar como poderia interpretar um poeta esta figura retórica árabe. A Mãe Terra expulsou sus antigos cultivadores, que agora se dispersam pelo mundo, como sementes, para unirem-se aos vários outros na diáspora atmosférica. E há muitos ventos aos que prestar atenção: o harmata, que sopra desde o Saara em direção à África ocidental; El Niño, que se acumula desde o oceano Pacífico em furacões. O poder destes companheiros do vento se refletirá ao largo dos tempos na produção cultural anglo-saxônica, desde os murais pintados no interior dos restaurantes que recordam aos clientes seu lar, até expressões tão sublimes do vento como Tempest de Shakespeare ou Tiphoo de Herman Melville.

Os proletários não podem esfregar duas moedas. Não tem terra, nem relações com o povo, nem subsistência, nem salário. Por isso são tão importantes os companheiros do vento: como proletários levam consigo a musha’a, firme: uma palavra parecida à “erguido”, que também combina a virtude social com a postura física erguida do corpo. De igual modo que a retidão, se associa com a verdade, o valor, a probidade e os princípios: o que é que defendes? É nada menos que o passo da expropriação à exploração. “O ponto de partida”, o chama Marx, de modo de produção capitalista.  Este rasgo, esta separação, está desgarradora, a “ruptura irreparável” ou a “ruptura metabólica”. Nessa transição da expropriação à exploração, há uma pausa. Ed Emory, depois de viajar com os trabalhadores migrantes no Mar Vermelho observou: “Estas são as pessoas que esperam: esperam seu turno, esperam na fila, esperam em grupos amontoados, esperam olhando através dos buracos das portas das docas, esperam que algum funcionário se digne a se dar conta de sua existência. Sempre esperando”. São, diz, “a gente da terra” [19].  

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Voltando ao momento atual na Palestina, devemos adicionar à fórmula “X ao quadrado” (exploração e expropriação) uma sombra escura a cada uma de suas partes: exploração + extermínio, expropriação + extração. O genocídio perpetrado pelos sionistas em Gaza está unido à extração de terras e petróleo. X ao quadrado se eleva a X ao cubo adicionando “desculpas”. A devastação, o genocídio, o envenenamento e o saque das classes dominantes se dissimulam com uma serie de desculpas institucionalizadas: desenvolvimento econômico, modernização, melhora social, segurança pessoal e salvação religiosa. Cada uma destas desculpas tem seu discurso, sua militarização, suas montagens acadêmicas, seu racismo e sua política. Como todas as desculpas, à primeira vista parecem plausíveis, inclusive normais, até que sua sombra emerja, como ocorreu na guerra de Gaza, para que todo o mundo a veja. O sistema global do império, guerra e escravidão só conduziu a um sistema planetário de inundação, fogo, veneno e doença. Com essas múltiplas catástrofes antecipamos o espólio dos sistemas terrestres.  

Ainda que o profeta Miquéias prometeu a cada um de nós uma figueira (Miquéias 4:4) renunciemos às profecias arcaicas e concluímos com uma nota cicatrizante de etimologia. Gaza era um centro têxtil e deu seu nome a um tecido muito útil: a gaze, uma tela de algodão, seda ou linho que se utilizava para enfaixar feridas graças a sua capacidade para absorver o sangue e atuar como barreira para que não se perca.

Nós superamos o ponto de não retorno. No entanto, nos encontramos em um ponto de inflexão. David Graeber e David Wengrow escrevem: “estamos vivendo o que os gregos chamavam … Kairos – o momento adequado – para uma metamorfose dos deuses, quer dizer, dos princípios e símbolos fundamentais” [20]. Estes cronistas das primeiras ou mais iniciais formações sociais humanas mundiais chamam a isso “o momento adequado”, o momento de transição à outra formação social. O capitalismo de gênero, racializado e imperialista arruinou quase tudo. Quem ou o que entre nós provocará a metamorfose necessária?

Para responder a esta pergunta não necessitamos voltar aos primórdios de tudo. A musha’a da Palestina pode guiar nossa transição de um mundo e uma perspectiva desastrosa a outra: à comuna e aos bens comuns. E sua relação? Lembremos a resposta de Marx a Vera Zasulich: “Já não se trata de um problema a resolver, mas sim simplesmente de um inimigo a vencer.”

Notas.

[1] Obrigado a Andrej Grubacic, que me convidou a escrever isso para The Journal of World Systems Research, e obrigado a Jeff Clark, Joe Summers, May Seikaly, Michaela Brennan e Silvia Federici por seu apoio crítico.

[2] Gene Ray, After the Holocene, the Commons (Nueva York: Autonomedia, 2024). Véase especialmente Silvia Federici, Re-Enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons (Oakland: PM Press, 2019).

[3] Michael Hudson, The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellation (Nueva York, 1993).

[4] The Quarterly Statement Palestine Exploration Fund (1891)

[5] Véase Lewis Hyde, Common As Air: Revolution, Art, and Ownership (Nueva York, 2010)

[6] Andro Linklater, Owning the Earth, (Londres: Bloomsbury, 2013)

[7] John Bellamy Foster, The Return of Nature: Socialism and Ecology (Nueva York: Monthly Review, 2020), p. 113.

[8] Amos Nadan, “Colonial Misunderstanding of an Efficient Peasant Institution: Land Settlement and Musha’a Tenure in Mandate Palestine, 1921-1947”, Journal of Economic and Social History of the Orient, vol. 46, número 3 (2003).

[9] Salim Tamari, “Archaeology, Historical Memory, and Peasant Resistance: The Gezer Excavations at Abu Shusha”, Jerusalem Quarterly 91, p. 9.

[10] Noura Alkhalili, “Enclosures from Below: The Mushaa’ in Contemporary Palestine “, Antípode, vol. 49, no. 5 (2017) . Como designação geográfica do Mediterrâneo oriental, o termo “Levante” deriva do francês para “saída” do sol, e também designou uma vez na Europa ocidentak um direito de pastoreio de gado em terras comuns dia e noite chamado “levant et couchant.”

[11] Les Levidow, “Holding the Green Line: Israeli Ecological Imperialism”, Midnight Notes Collective, New Enclosures (1990), pp. 25, 26.

[12] Gary Fields, Enclosure: Palestinian Landscapes in a Historical Mirror (California, 2017).

[13] Ernest Dowson, An Inquiry into Land Tenure and Related Questions: Proposals for the Initiation of Reform (Londres, 1931).

[14] Linda Quiquivix, ” When the Carob Tree was the Border: On Autonomy and Palestinian Practices of Figuring it Out”, Capitalism Nature Socialism, vol. 24, no. 3 (2013)

[15] Correspondencia Karl Marx-Zasulich 1881.

[16] Seamus Deane et al, The Field Day Anthology of Irish Writing (1991), vol. iii, p. 323.

[17] Uma palavra grega para compartilhar os bens comuns mas uma palavra grega para vida nos da biocenosis.

[18] El 18 Brumario de Luis Bonaparte (1852).

[19] Ed Emory, “Some Photographs that I was Not Able to Take: Egypt and the Red Sea”, Midnight Notes Collective, New Enclosures (1990), p. 28.

[20] David Graeber e David Wengrow, The Dawn of Everything (2021), p. 524.


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