Tecnologias digitais e luta de classes

O desenvolvimento tecnológico e a acumulação de dados não resolvem, mas aprofundam as contradições do capitalismo.

Tiago Madeira 6 jul 2020, 14:22

O isolamento social promovido em vários países para conter o coronavírus paralisou grande parte da economia. O mundo é levado a uma forte recessão numa crise comparável à de 1929. A pandemia não cria uma dinâmica totalmente nova, mas aprofunda tendências que já se observavam.

Em particular, as políticas de isolamento têm feito o uso de Internet crescer em todo o planeta. Ferramentas como Zoom, Google Meet e Microsoft Teams lidam com aumento massivo de número de usuários e tendências como teletrabalho, entregas e ensino a distância incrementam a digitalização das nossas vidas.

A defesa da óbvia necessidade de isolamento para conter o contágio do vírus e do uso de tecnologias digitais para nos manter conectados não deve inibir a necessária crítica à dinâmica do desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo. Pelo contrário, enxergar o caráter de classe e de ampliação de desigualdades das transformações tecnológicas no momento em que elas se acentuam é importante para tentarmos entender o que está acontecendo e nos preparar para o que está por vir. De outra parte, é claro que a crítica não deve ser feita em abstrato, sem se buscar compreender as transformações em toda sua potência. Isso é importante para que não se negue a realidade concreta.

Neste texto quero apresentar uma contribuição sobre as tecnologias digitais e nossos desafios frente a elas. Longe de expôr soluções, busco aqui compilar ideias que me parecem importantes, refletir e fomentar mais discussão sobre o tema.

Em meio à pandemia, o valor das ações de gigantes da tecnologia como Amazon, Apple e Facebook na Nasdaq desponta e já atingiu seu recorde histórico. Observamos o crescimento da Internet e da computação em nuvem, da inteligência artificial e do 5G. Jeff Bezos, CEO da Amazon e homem mais rico do mundo, tem hoje uma fortuna estimada em 170 bilhões de dólares. Ao mesmo tempo, se agrava a deterioração da vida da maioria da população. A ideologia dominante insiste que entregadores de aplicativos, que seguem trabalhando durante a pandemia sob precárias condições, são empreendedores. Como tuitou Galo, liderança dos Entregadores Antifascistas, “a tecnologia é do século XXI, mas os direitos são do século XVIII”.

Na esteira da crise econômica e política agravada pela COVID-19, movimentos de extrema-direita usam notícias falsas e teorias da conspiração para oferecer ilusões para parte do povo. As redes sociais são terreno fértil para a pós-verdade na medida em que reconfiguram a esfera pública e erguem um espaço regido pelo marketing no qual encontramos apenas a nós mesmos e a nossos semelhantes. As ideias para regular esse espaço são ainda incipientes e muito influenciadas pelos interesses dos capitalistas. Algumas delas fortalecem ainda mais, contraditoriamente, hipóteses autoritárias.

Por outro lado, nunca estivemos tão conectados. A Internet permite velocidade e coordenação de ações sem precedentes, como visto em processos como a primavera árabe e as ocupações de praças de Tahrir a Puerta del Sol, de Wall Street a Taksim, da Esquina Democrática ao Largo da Batata. Nos dias em que este texto era escrito, a gravação do assassinato de George Floyd em Minneapolis rapidamente se espalhou e incendiou um país de dimensões continentais como os Estados Unidos. O grito Black Lives Matter ecoa e inspira protestos antirracistas em toda parte, inclusive no Brasil. O chamado do Manifesto Comunista, “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, encontra meios para se concretizar.

Tecnologia, capital e crise

O progresso tecnológico é um dos pilares do capitalismo. Ele transforma a estrutura da sociedade, suas relações de produção, troca e propriedade. O fundamento para se compreender o desenvolvimento da tecnologia do ponto de vista marxista é o conceito de mais-valor relativo. Simplificando, os capitalistas buscam constantemente aperfeiçoar suas tecnologias a fim de reduzir o tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias e, assim, obter mais capital e não ficar para trás com relação aos seus concorrentes. O dinamismo tecnológico não se explica pelo gênio inerente dos empresários, mas por essa busca. David Harvey, em suas aulas sobre O capital, sintetiza a ideia:

“Há um tremendo incentivo para que os capitalistas individuais adotem inovações tecnológicas. Saio na frente, tenho um sistema de produção superior, mais eficiente do que o seu, e durante três anos ganho mais-valor efêmero; então você me alcança, ou até me ultrapassa, e consegue mais-valor efêmero durante três anos, e assim sucessivamente. Os capitalistas estão todos à caça de mais-valor efêmero por meio de novas tecnologias. Decorre daí o dinamismo tecnológico do capitalismo.”

É importante levar em conta que o desenvolvimento de tecnologia, na sociedade capitalista, tem um claro caráter de classe. Paul Heideman aponta, a partir da análise de Harry Braverman sobre o taylorismo, como a tecnologia auxilia os capitalistas na imposição de uma disciplina maior aos trabalhadores. Quanto mais a concepção do trabalho é separada da execução, menos domínio os trabalhadores têm sobre seu próprio tempo. Assim, comenta, o taylorismo “não é uma técnica neutra para melhorar a eficiência, mas um esquema para controlar o trabalho em sua luta com o capital”.

Para que isso não seja apenas um exercício teórico ou histórico, devemos observar a nossa realidade. A máquina mais universal do nosso tempo é o celular, que é provavelmente o aparelho pelo qual este texto está sendo lido. Como argumenta Nicole Aschoff, “smartphones estendem o local de trabalho em espaço e tempo”. Além disso, os celulares criaram novos tipos de trabalho e novas formas de acessar produtos e serviços. Como não lembrar da cena inicial do filme Parasita, na qual Ki-Woo e Ki-Jung percorrem a casa, com um celular, procurando um local onde consigam o sinal de Wi-Fi para obterem trabalho? Como escreve Nicole, “o smartphone facilita modelos de emprego contingente e auto-exploração ao conectar trabalhadores a capitalistas sem os custos fixos e o investimento emocional das relações de emprego mais tradicionais”. Assim, temos uma massa crescente de trabalhadores sendo controlados pelas suas máquinas de mão, como ilustra o último filme de Ken Loach, Você não estava aqui. A arte imita a vida e a vida imita a arte.

Os efeitos da substituição de trabalhadores por máquinas no capitalismo são paradoxais para o trabalho e para o capital. Do ponto de vista do trabalho, poderia-se imaginar que menos trabalho necessário para se produzir pudesse gerar melhores condições para os trabalhadores. Em vez disso, hoje vemos capitalistas como Jack Ma defendendo uma jornada de trabalho de 72 horas por semana, Elon Musk tuitando que ninguém nunca mudou o mundo trabalhando 40 horas por semana e a imprensa romantizando o cadeirante que entrega comidas por aplicativos na Avenida Paulista. Em sua análise sobre o capital, Karl Marx afirma que a substituição de trabalhadores por máquinas cria “uma população operária redundante, obrigada a aceitar a lei ditada pelo capital”. E continua:

“Daí este notável fenômeno na história da indústria moderna, a saber, de que a máquina joga por terra todas as barreiras morais e naturais da jornada de trabalho. Daí o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de trabalho se converte no meio infalível de transformar todo o tempo de vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital.”

Por outro lado, na medida em que a desigualdade se acentua, com os trabalhadores se tornando mais redundantes e os capitalistas produzindo e acumulando cada vez mais, começa a surgir uma contradição. Para quem os capitalistas vão vender seus produtos, se grande parte da humanidade não consome? Onde os capitalistas poderão investir lucrativamente o valor excedente que obtêm? Esses são componentes centrais da crise estrutural na qual o capitalismo se encontra. Fortalece-se uma dinâmica de estagnação e financeirização — e “o mundo da fantasia continua”, como demonstra o economista Michael Roberts.

As tecnologias digitais impulsionam uma proporção maior de maquinaria relativa à mão de obra e todo o planeta experimenta, de forma crescente, a automação digital do setor produtivo. William Robinson exemplifica o impacto da digitalização comparando a General Motors (GM) com o Google. Em 1979, GM empregava quase 1 milhão de trabalhadores e teve um lucro de 11 bilhões de dólares. Em 2012, o Google, com apenas 38 mil trabalhadores, teve um lucro de 14 bilhões de dólares. Há um novo paradigma produzindo corporações com poucos trabalhadores e muito mais lucro. A Foxconn, maior fábrica do mundo, que emprega mais de 1 milhão de trabalhadores, está diariamente instalando robôs.

As tendências apontadas pela economia marxista são comprovadas na realidade. Com efeito, como observa a chefe de Tecnologia e Inovação Digital da cidade de Barcelona, Francesca Bria, “a introdução de tecnologias de informação e comunicação em todos os setores da economia não produziu uma era de ouro da sociedade do conhecimento nem os investimentos prometidos em tecnologias sustentáveis, novos empregos e bem-estar. Longe disso, a polarização de renda aumenta, os salários seguem caindo e a taxa de progresso tecnológico diminui”.

Ao mesmo tempo que a Internet permite ao mercado financeiro mundial funcionar em tempo real e 24 horas por dia ampliando a dinâmica de financeirização, as empresas da Internet vêm se tornando bancos. O PagSeguro é o principal negócio do grupo Folha/UOL; 92% das pessoas nas maiores cidades chinesas usam Wechat Pay ou Alipay como meios de pagamento; e o Facebook começa a testar, no Brasil, o WhatsApp Pay.

Digitalização acelerada pela pandemia

Éric Toussaint, ao argumentar que o coronavírus não é responsável pela queda nos preços das ações, distingue o elemento detonador da crise de suas causas. Aponta como a produção real parou de crescer significativamente desde antes da pandemia ao mesmo tempo que a esfera financeira se expandiu.

A digitalização, aqui entendida como processo de transformação de nossas relações de produção e trabalho pelo uso de tecnologias digitais, já despontava como uma saída para ampliar a produtividade do capital e agora se acelera. Para citar alguns exemplos de como a burguesia aposta nisso, a Comissão Econômica da ONU para a África defendeu que a pandemia representa oportunidades na área da tecnologia, o governo brasileiro decidiu acelerar a digitalização dos seus serviços, um relatório afirmou que existe um esforço de 85% de 600 executivos entrevistados para virar a chave da transformação digital nas empresas brasileiras.

Podemos apontar três tendências que já se aprofundaram durante a pandemia.

Primeiro, o trabalho remoto ganha força. No final de maio, Mark Zuckerberg anunciou que o Facebook começaria a contratar remotamente e que seus funcionários existentes poderiam logo começar a trabalhar de casa. Ele estima que nos próximos 5 ou 10 anos metade da empresa, que hoje emprega 48 mil funcionários, esteja trabalhando remotamente permanentemente. Destaco dois pontos positivos que Mark diz ver nessa mudança: o primeiro é poder recrutar e manter pessoas em diversas partes do mundo, o segundo é ampliar o entendimento sobre teletrabalho na prática para aperfeiçoar produtos como Workplace, realidade virtual e realidade aumentada. O primeiro ponto vai permitir que o Facebook e outras empresas que adotem esse tipo de medida possam se beneficiar de uma força de trabalho mundial e muito mais barata do que a que precisa viver no Vale do Silício, um dos lugares mais caros do planeta. O segundo mostra como o Facebook aposta no processo de digitalização e vê o trabalho remoto como forte tendência mesmo depois de controlado o surto de COVID-19, o que implica numa série de transformações nas relações de trabalho.

Segundo, cresce o ensino a distância. Ele já vinha crescendo — de 2016 a 2018 a matrícula em ensino superior a distância no Brasil aumentou 45% –, mas as políticas de isolamento social agora impuseram essa realidade para professores e estudantes de todos os níveis sem tempo para adaptação. Isso por um lado aumenta a exploração de professores, categoria já desvalorizada no nosso país e que agora está trabalhando mais tempo e precisa repensar suas aulas para o meio digital, geralmente sem formação para isso. Por outro amplia a desigualdade no acesso à educação, já que 30% dos domicílios no Brasil não têm acesso à Internet e há diferença significativa na comparação entre os mais ricos e os mais pobres — na classe A, 1% não têm conexão, enquanto entre famílias cuja renda é de até um salário mínimo cerca de 50% não têm. O governo não está nem aí para o povo brasileiro e se esforça para manter o calendário como se nada estivesse acontecendo, mas felizmente os estudantes resistem.

Terceiro, há mais produtos e serviços online. O crescimento da Amazon e o enriquecimento de Jeff Bezos não começou agora — nos últimos anos, ele enriqueceu 34% por ano. Nesse período, a Amazon expandiu seus serviços para novos países, como o Brasil, e veio ganhando espaço por meio de políticas agressivas de market place, venda direta, programa de fidelidade e propaganda. As políticas de isolamento e a proibição do varejo não eletrônico durante a pandemia só aumentam sua vantagem competitiva, assim como, no Brasil, fortalecem empresas como a Magazine Luiza, que também já vinha apostando numa transformação digital, em detrimento de outras empresas menores. O varejo passa a ser mais centralizado em poucas empresas que mediam digitalmente compra e venda de produtos. Também são favorecidas as transnacionais que quarteirizam a prestação de serviços por meio de plataformas digitais, como iFood, 99 e Rappi.

A partir do debate sobre reprodução social, Giovanna Marcelino levanta tendências importantes da crise. Entre elas, muito vinculada à lógica de trabalho, ensino e serviços a distância, está a superexploração do trabalho doméstico, que recai principalmente sobre as mulheres: “o espaço do lar — que sempre foi objeto de debate e politização das feministas — pode tornar-se uma espécie de ‘laboratório do capital’, um ‘ensaio geral’ de uma outra organização do trabalho, tendo em vista a tendência deste de aproveitar a crise justamente para flexibilizar ainda mais as relações trabalhistas e super-explorar o espaço doméstico, tornando-o uma ‘casa-fábrica’, que funciona todos os dias da semana, sem limites de horário, com baixos custos para o capital, ‘corrigindo’ a crise do neoliberalismo com mais neoliberalismo”.

Em entrevista para o Jornal Juntos, Thiago Aguiar ressalta o objetivo dos capitalistas com as transformações em curso: “fazer com que a classe trabalhadora produza mais e receba menos, ou seja, ampliar a exploração do trabalho num contexto de dificuldade da classe capitalista para manter os níveis de acumulação e a lucratividade em patamares ótimos”. Discordando de quem especula o “fim do neoliberalismo” por conta da pandemia, defende que “a agenda da classe capitalista, em escala global, não é de liquidar o neoliberalismo e, quase como um esforço de ‘racionalidade’, reconstruir Estados de bem-estar social. Na realidade, seu objetivo é justamente o oposto: recuperar e ampliar a lucratividade por meio da mercadorização de aspectos fundamentais da vida humana, como os serviços de saúde, educação e transporte, privatizar empresas estatais e dilapidar os orçamentos públicos”.

O aumento da conectividade e o 5G

No contexto da digitalização, a conexão à Internet se torna cada vez mais importante e há a compreensão crescente que trata-se de um direito fundamental por permitir acesso à informação e a ferramentas de comunicação. Já em 2011 a ONU afirmou que o acesso à rede é um direito humano e pediu aos países “que mantenham o acesso à web em todos os momentos, inclusive durante períodos de instabilidade política”.

Em 2013 estimava-se que 5 bilhões de pessoas iriam se conectar à Internet em uma década. Tomando essa perspectiva como ponto de partida e considerando que, em uma geração, parte significativa da população mundial foi de nenhum acesso à informação para acesso a toda informação do mundo por um dispositivo que cabe no bolso, Eric Schmidt (ex-CEO do Google) e Jared Cohen (ex-assessor do Departamento de Estado dos EUA) escreveram o livro A nova era digital. Aclamado por Henry Kissinger, Michael Hayden (ex-diretor da CIA) e Tony Blair, apresenta sete capítulos especulando como seria o mundo dominado pelas tecnologias digitais.

Como Julian Assange escreveu na sua crítica desse livro, publicada uma semana antes dos vazamentos de Edward Snowden no início de junho de 2013, a visão de progresso da burguesia, simbolizada pela parceria entre o Vale do Silício e Washington, tem a ver com a tecnologia de consumo americana sendo espalhada pelo planeta. Os autores do livro se conheceram em Bagdá ocupada e o plano de escrever esse livro partiu da necessidade de “reconstruir” o Iraque a partir de uma perspectiva econômica pró-EUA.

Com efeito, as gigantes da tecnologia — com projetos como Microsoft Airband, Facebook Free Basics (ex-Internet.org), Google Loon, entre outros — disputam quem vai conectar cerca de 2 bilhões que ainda não estão na Internet e quem vai controlar a infraestrutura da rede a fim de ampliar seus mercados. Muitas vezes esses projetos, caracterizados por pesquisadores como colonialismo digital, limitam o acesso à Internet a serviços específicos das empresas que os provêem, violando a neutralidade da rede; o princípio de que o tráfego das informações não deve ser discriminado é um dos pilares de uma concepção democrática da Internet.

O investimento da Huawei em propaganda no último período é mais uma expressão dessa disputa, nesse caso combinada ao conflito geopolítico que envolve EUA e China. Um anúncio recente da empresa chinesa no Twitter mostra uma conversa entre Guo Ping, CEO da Huawei, e Nicholas Negroponte, fundador e presidente emérito do MIT Media Lab. Nicholas diz que, apesar do atual “sentimento anti-China” nos EUA, colaboração é a palavra-chave e que a Huawei deve assumir o papel que outrora teve o Bell Labs. Essa é uma aposta ousada. O Bell Labs foi o centro de pesquisa da AT&T, que foi a maior empresa de telefonia do mundo durante grande parte do século XX e chegou a empregar 1 milhão de pessoas. Lá foram desenvolvidos, entre outras coisas, o transistor, o laser, a radioastronomia, a célula fotovoltaica, a teoria da informação, o sistema operacional UNIX e as linguagens C e C++.

A comparação serve para visualizar o peso que está se dando para o 5G e tecnologias derivadas. O novo padrão de conectividade, que gasta menos energia, permite muitos dispositivos conectados ao mesmo tempo e uma taxa de latência muito menor do que a dos outros padrões usados até hoje, possibilita o desenvolvimento de sistemas em tempo real controlados remotamente e Internet das coisas — objetos inteligentes e cidades inteligentes.

Um outro vídeo da gigante chinesa apresenta uma “fazenda inteligente” que a Huawei chama de “fazenda 5G”: de acordo com a propaganda, é 200 vezes mais eficiente que uma fazenda típica; integra-se à nuvem em tempo real por meio de sensores, drones e robôs; o uso de pesticidas é reduzido em 80%; animais também estão conectados e são monitorados aumentando a produção de leite em 35%; vacas vivem quase o dobro do tempo de vacas em fazendas tradicionais. A disseminação desse tipo de tecnologia compõe a dinâmica de busca constante por mais-valor relativo por parte dos capitalistas, conforme visto no início da primeira seção deste texto.

Inteligência artificial e o mundo dos dados

Em 2017, o Google declarou uma mudança de foco: estava deixando de ser uma empresa mobile first (celulares primeiro) para ser AI first (inteligência artificial primeiro).

Quando se fala em inteligência artificial (IA) hoje em dia em geral se está falando de um subconjunto específico de ferramentas da área: a aprendizagem de máquina. Trata-se de um paradigma diferente da computação tradicional: em vez de alimentar um computador com um programa e com dados de entrada para que ele aplique as instruções do programa sobre os dados e compute uma saída, alimenta-se o computador com exemplos de dados de entrada e saída para que ele “aprenda” um programa (e depois esse programa é usado no paradigma convencional). Um exemplo são sistemas de recomendação. Com base no seu histórico de navegação na Amazon e considerando os históricos de outros usuários, ela é capaz de recomendar o que você deveria comprar, assim como fazem YouTube, Netflix e Spotify para recomendarem vídeos e músicas para consumo, ou o Google Assistant para recomendar notícias. Da mesma forma, com base nos dados de uma foto e considerando os dados de outras fotos de seus amigos, o Facebook é capaz de determinar quais dos seus amigos estão lá — não muito diferente dos sistemas de reconhecimento facial que têm sido implementados em câmaras de todo o mundo. Também carros autônomos tomam decisões baseados em dados de sensores que precisam ser interpretados com base em dados vistos antes, usando modelos de aprendizagem de máquina. E por aí vai.

As ideias básicas da aprendizagem de máquina já têm algumas décadas — datam do surgimento dos computadores digitais, no final da segunda guerra mundial. Os principais motivos para a área estar sendo tão discutida hoje são capacidade computacional e quantidade de dados disponíveis. Isso é proporcionado pela Internet e pela computação em nuvem — o braço mais lucrativo da Amazon. Os termos da moda, deep learning (aprendizagem profunda) e big data, têm a ver diretamente com isso. Tomemos como exemplo um dos modelos mais usados na aprendizagem de máquina atualmente, a rede neural artificial. Uma rede neural profunda nada mais é do que uma rede neural enorme, com muitas camadas e parâmetros; para aprender tais parâmetros é necessário bastante processamento e um monte de dados.

A disputa por mercados é também uma disputa por dados. As tecnologias que aparecem no ponto anterior, que tendem a crescer com o 5G, geram cada vez mais dados. Quanto mais informações se centraliza, mais é possível extrair delas — daí a missão do Google, “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil”.

A aprendizagem de máquina tem logrado grandes realizações no último período. A vitória da máquina AlphaGo da DeepMind contra o campeão mundial de Go, Lee Sedol, em 2016 foi um desses feitos. Teve importância comparável à vitória do supercomputador Deep Blue da IBM contra o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov em 1997, mas simbolizou um salto de qualidade sobre essa realização na medida em que a forma de jogar do AlphaGo superou o paradigma tradicionalmente usado em jogos de soma zero. O algoritmo minimax com otimizações usado para derrotar Kasparov se assemelhava mais aos primeiros algoritmos jogadores de xadrez da década de 1950 do que ao modelo do DeepMind, que consiste numa rede neural aprendida com dados de partidas jogadas por humanos e melhorada por meio de jogos contra ela mesma — a chamada aprendizagem por reforço.

O exemplo de um jogo de tabuleiro pode parecer excêntrico, mas demonstra a complexidade de raciocínio computacional a partir de dados que está sendo empregada em diversas esferas da produção e da vida humana em geral. Modelos de aprendizagem de máquina têm diversas aplicações, por exemplo na ciência, no desenvolvimento de remédios e vacinas. Pedro Domingos, em The master algorithm, aposta que terá um papel fundamental na cura do câncer.

Por tudo isso a inteligência artificial tem motivado o que Evgeny Morozov chama de solucionismo tecnológico, isso é, a ideia de que com o algoritmo correto a tecnologia pode resolver todos os problemas da humanidade. Em seu livro To save everything, click here, o escritor bielorrusso demonstra o caráter profundamente ideológico e antidemocrático de um mundo controlado por algoritmos, no qual o futuro é determinado pelos acionistas das empresas do Vale do Silício e não por mecanismos populares.

Vejo no solucionismo tecnológico um pouco da ingenuidade do estudante de computação bem intencionado, fanático por algoritmos, que aprende algo como programação linear e acredita que pode resolver grandes problemas sociais resolvendo um grande problema de otimização se souber escolher as variáveis certas. A prova de que tal estudante existe é que estou falando de meu próprio passado. Tal pensamento, que dialoga com o positivismo lógico e o utilitarismo (entre cientistas da computação, Stuart Russell e Peter Norvig tratam dos fundamentos filosóficos da IA em Artificial intelligence: a modern approach, e John McCarthy abordou o tema em artigos desde a década de 90), ignora a lógica do capitalismo.

O desenvolvimento científico e tecnológico no capitalismo depende de investimento de capital e nunca é neutro. A forma como os objetos inteligentes buscam resolver os problemas sociais é criando novos produtos e demanda por eles, e então responsabilizando as pessoas, individualmente, pelas soluções. Você deve instalar câmeras inteligentes para garantir sua segurança, comprar gadgets e apps que monitoram seu corpo para garantir que você esteja se exercitando e bebendo água, usar ferramentas de GPS para otimizar a sua mobilidade pela cidade. No lugar de repensar modelo de cidade e transporte, são criadas empresas como Uber, demanda pelos seus serviços e investe-se em carros autônomos. As cidades inteligentes são terceirizações da administração pública para as big tech. Ocorre ainda que os modelos baseados em dados favorecem concentração e monopólio, na medida em que quanto mais informação se tem mais precisão se consegue. A venda de dados do sistema de transporte de São Paulo organizada por João Doria e a privatização de SERPRO e DataPrev organizada por Jair Bolsonaro são demonstrações de como os estados estão terceirizando sua inteligência para grupos transnacionais.

Buscam-se soluções tecnológicas de mercado para consequências da crise econômica e tais soluções agravam a crise, a desigualdade e a precarização do trabalho. Quanto mais isso se aprofunda, mais as empresas aparecem com novas soluções. Nos convencem que quanto mais elas souberem sobre nós, melhores serão os serviços. Sua liberdade para coletar e cruzar dados privados da ampla maioria da população mundial é o que Israel Dutra sintetizou como privatização do espaço privado. Como Morozov argumenta, “os grandes grupos tecnológicos operam serviços de comunicação altamente viciantes de modo a acumular dados sobre nós e afinar suas soluções de IA em todos os lugares, inclusive para responder ao vício que eles mesmos criaram”.

A política “baseada em evidências e orientada a resultados” é na verdade um esvaziamento da política que reduz o espaço público de debate ao promover “soluções” técnicas, que são crípticas para a maior parte da população. Essas soluções otimizam quais “resultados” e com quais propósitos? Estão dispostas a enfrentar os bilionários e o sistema capitalista? Isso se relaciona com o que Julian Assange chama de imperialismo tecnocrático no seu livro sobre o Google. Filantrocapitalistas da área de tecnologia, como Bill Gates, tentam aplicar esse modelo a temas como a educação. Nicole Aschoff, em The new prophets of capital, demonstra a perversidade de aplicar a lógica de mercado a estudantes e professores, assim como a falta de democracia e de prestação de contas dos programas da Gates Foundation.

O problema de viés em modelos aprendidos de dados, amplamente reconhecido, é a ponta do iceberg. Muitas pessoas acreditam que sistemas que usam aprendizagem de máquina são altamente precisos e imparciais. Como aponta Karen Hao no MIT Technology Review, a lógica é que “seguranças de aeroporto podem estar cansados e policiais podem errar no julgamento dos suspeitos, mas um sistema de IA bem treinado deve ser capaz de identificar e categorizar consistentemente qualquer imagem de um rosto”. Mas, continua, “na prática, pesquisas têm mostrado repetidamente que esses sistemas lidam com alguns grupos demográficos com muito menos precisão do que outros”. Em outras palavras, modelos inteligentes reproduzem discriminações. Eliminar o viés desses sistemas não é um problema fácil. Com efeito, foi uma vitória das manifestações antirracistas do último período a suspensão da venda de tecnologias de reconhecimento facial de Amazon, Microsoft e IBM para polícias americanas; aí se vê a importância da luta política.

O uso militar de tecnologias preditivas, que lembra o filme Minority Report e é cada vez mais comum, dos EUA à China, não se limita à venda de tecnologia para forças policiais. As revelações de Edward Snowden em 2013 demonstraram a existência de um sistema global de vigilância que se baseia em coletar, organizar e utilizar toda a informação que circula na Internet. Seja por meio de interceptação de tráfego, ordens judiciais secretas, acordos com as empresas, hackeamento ou táticas de espionagem, agências de segurança como a NSA (americana) e a GCHQ (britânica) operam a violação permanente de tudo que é feito na rede. Usam os dados coletados para destruir reputações e disparar drones militares contra seus inimigos. Sob o pretexto da luta contra o terrorismo, transformam o mundo digital numa distopia orwelliana. Como argumenta Julian Assange, a luta contra a vigilância global não é uma luta só por liberdade individual, mas pela “soberania e independência de países inteiros, solidariedade entre grupos com causas comuns e projetos de emancipação global”.

Marketing digital, pós-verdade e eleições

Hoje há cada vez mais serviços que são “pagos” com dados, como redes sociais, aplicativos de celular e jornais digitais. Mas os modelos que têm sido construídos com esses dados são muito menos nobres do que os que aparecem nas propagandas sobre inteligência artificial. Na verdade o principal negócio das empresas que acumulam muitos dados, como Google e Facebook, é a venda de anúncios direcionados. Quando navegamos na Internet estamos o tempo todo fazendo parte de leilões pela nossa atenção e vendo propagandas como os ciclistas do episódio Fifteen Million Merits da série Black Mirror. Empresas querem veicular anúncios para pessoas com determinado perfil e pagam para as big tech otimizarem seus retornos, enquanto os usuários vivem num mundo forjado pelo marketing e acreditam possuir liberdade de escolha. As grandes plataformas trabalham constantemente para aperfeiçoar seus modelos de segmentação para gerar mais conversões para seus anunciantes e manter seus usuários mais tempo nas redes sociais (para que gerem mais dados e vejam mais anúncios).

A lógica de leilão do marketing digital rege o funcionamento dessas plataformas para além dos posts patrocinados. Ela motiva títulos caça-cliques atrativos e sensacionalistas, publicações prefixadas por “URGENTE!” que pouco têm de urgência e “lacrações”: é preciso chamar atenção e gerar engajamento. É funcional à fragmentação pós-moderna e contribui para tornar as redes sociais terreno fértil para a pós-verdade. A partir da leitura do livro The filter bubble, de Eli Pariser, o filósofo José María Agüera Lorente argumenta que os algoritmos das redes sociais, “sem que nos demos conta, nos conduzem a nos encarcerarmos nesses mundos privados nos quais nossas crenças se retroalimentam num loop ensimesmado de informação filtrada segundo o perfil de preferências confeccionado com o rastreamento permanente de nossos interesses inferidos a partir do nosso contínuo vagar na Internet”. Mais a frente, nesse mesmo artigo que se encontra traduzido no site da Revista Movimento, conclui:

“Como aqueles prisioneiros da caverna platônica, crentes de que a realidade se reduzia às sombras que se projetavam em sua parede, o homo internauta seria também ignorante sobre sua ignorância. Esse é, em suma, o cenário perfeito para que se instale o reino da pós-verdade, pois — como sustenta o filósofo Byung-Chul Han em A sociedade da transparência (das mesmas datas do texto de Parisier): ‘Transparência e verdade não são a mesma coisa. Essa última é uma negatividade enquanto se põe e impõe declarando as outras coisas como falsas. Mais informação ou uma acumulação de informação por si só não é nenhuma verdade’. […] A suplantação da verdade pela transparência, latente no discurso da pós-verdade, é um refúgio infantil, no qual um evita a responsabilidade de dar explicações publicamente sobre o que sustenta e de assumir o que disso se deriva. É complementar da asserção pseudodemocrática segundo a qual todas as opiniões devem ser respeitadas (ou ‘cada um tem direito a pensar o que quer’) e que na prática torna estéril o imprescindível e precioso diálogo.”

Como se pode imaginar, isso traz profundas implicações sociais e políticas. Por meio de blog, canal de YouTube e redes sociais, Olavo de Carvalho acumula seguidores defendendo as teses mais estapafúrdias. Campeão da pós-verdade, declarou em 2019 que “essa questão da terra plana é como qualquer outra: ninguém tem certeza de porra nenhuma”. Francisco Louçã, argumentando que o mundo mais globalizado e interconectado tem resultado num “individualismo extremo que deseja um chefe que comande a multidão de solitários”, sistematizou algumas das ideias do astrólogo:

“Ouviu falar de Galileu? Esqueça tudo o que leu, era um charlatão protegido pelo Papa. Newton ‘espalhou o vírus de uma burrice formidável’ e os seus colegas riam-se do ‘velhinho’. Einstein foi um farsante, inventou a teoria da relatividade só para esconder que a Terra ‘não gira em torno do sol’. Darwin foi o pai do comunismo e do nazismo. Acha pouco? Pois a Pepsi usa células de fetos humanos como adoçante, pelo que ‘quem bebe Pepsi é um abortista terceirizado’. Os cigarros não prejudicam a saúde e os combustíveis fósseis não são fósseis. É aqui que a tecnologia encontra a beatitude. Se o autor se torna suficientemente polémico, é conhecido. O absurdo e o escandaloso é o caminho mais curto para a fama. Composto o público, começa a pregação: Obama era um candidato da Al Qaeda, Haddad defenderia o incesto, bater em crianças menores é pedagógico.”

Para completar, o sistema de anúncios operado pelo Google financia as máquinas de desinformação repassando a elas parte do valor investido pelos anunciantes. Os ativistas do movimento Sleeping Giants atuam para conscientizar os anunciantes que aparecem sem querer em sites desinformativos, com o objetivo de que eles bloqueiem esses sites e com isso os sites ganhem menos dinheiro.

Na medida em que cresce o mercado de dados, uso de dados e técnicas de marketing digital em processos eleitorais vêm se tornando cada vez mais comuns. Nos Estados Unidos, tudo começa com os voter files — bancos de dados de eleitores construídos a partir de informações públicas de quem se registra para votar, como quais suas preferências partidárias, enriquecidos com informações de sistemas de crédito, consumo e de organizações políticas. Tais bases são comercializadas e usadas por campanhas, pesquisadores e jornalistas. As campanhas telefonam para eleitores com roteiros diferentes baseados no que se sabe sobre eles, criam anúncios segmentados nas redes sociais e por aí vai.

Nesse ponto discordo de quem vê no escândalo da Cambridge Analytica algo excepcional. O uso de ferramentas poderosas e de manipulação para subverter a democracia é a regra no capitalismo e o uso de dados em eleições, em particular, está na moda e é incentivado pelas big tech, que não são vítimas, mas cúmplices do esquema. Como argumentei em 2018, “o mais importante na revelação não foi trazer fatos novos e desconhecidos, mas expôr como o funcionamento de um sistema — com o qual nos acostumamos — permite coisas perigosas. No caso, ajudou a eleger Trump.” Enfatizo o “ajudou” porque há mistificação do establishment democrata em desconsiderar a política e atribuir a derrota de Hillary Clinton quase exclusivamente a forças ocultas — russos ou hackers.

Aqui no Brasil, o lobby das empresas de tecnologia aprovou um curioso artigo na Lei das Eleições que determina que “é vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na Internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos“. Ou seja, nas eleições brasileiras, desde 2018, as campanhas eleitorais só podem comprar anúncios digitais nas plataformas de Facebook e Google. De acordo com relatório do InternetLab, apenas o Facebook arrecadou (oficialmente) cerca de 62 milhões de reais na primeira eleição em que essa legislação esteve em vigor. Em eleições com cada vez mais pessoas usando a Internet, ao mesmo tempo que há menos dias de campanha e menos tempo de TV, estratégias de marketing digital têm peso crescente. Com isso somado a uma pandemia, não é preciso ter uma bola de cristal para afirmar que terão peso determinante nas eleições americanas e brasileiras de novembro.

Depois do escândalo da Cambridge Analytica, Mark Zuckerberg afirmou que faria tudo que fosse necessário para garantir a integridade das eleições brasileiras de 2018. Essa entrevista por si só deveria acender um alerta: desde quando delegamos a um bilionário americano e a acionistas de uma corporação do Vale do Silício o poder de resguardar a nossa “democracia”? É esse o estado do capitalismo digital transnacional. Mas, apesar dessa declaração, não tivemos eleições “íntegras”, nem mesmo livres de polêmicas envolvendo o grupo Facebook: uma reportagem de capa da Folha, publicada entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, mostrou como empresas financiaram, via caixa dois, o disparo de mensagens desinformativas no WhatsApp. Outra reportagem, publicada na mesma semana na BBC, investigou o funcionamento de empresas envolvidas nesses disparos ilegais.

Nesse contexto, crescem em todo planeta discussões sobre regulação das big tech, proteção e uso de dados, disseminação de desinformação e criptografia. Projetos em debate, como o PLS 2630/2020 (“PL das Fake News”), são aberrações feitas apressadamente, inócuas para combater o financiamento das campanhas de desinformação e prejudiciais à privacidade, à liberdade de expressão e à segurança digital.

Uma nova técnica da inteligência artificial deve ampliar a produção de desinformação e a confusão no próximo período. Uma classe de algoritmos de aprendizagem de máquina chamada generative adversarial networks vem sendo usada para produzir deepfakes — fotos, vídeos e áudios de pessoas fazendo e dizendo coisas que elas não fizeram. Além de vídeos pornográficos, alguns exemplos que viralizaram nos últimos anos são um discurso falso de Barack Obama e outro de Mark Zuckerberg.

Leilão de serviços e precarização do trabalho

Há ainda um outro tipo de exploração de dados que se tornou comum na chamada gig economy (economia de bicos). O principal ativo de empresas como Uber, Rappi, 99 e iFood não são suas máquinas, produtos ou serviços, mas as informações que possuem para fazer gestão algorítmica da distribuição de serviços — sua rede de trabalhadores (que chamam manipulativamente de “parceiros”) e usuários, e os dados que coletam sobre eles. Vale tudo para entrar nas cidades — marketing, lobby, multas –, vale atuar com prejuízo temporário para expandir seus mercados; tudo para construir monopólios globais de demanda.

Da mesma forma que as redes sociais fazem leilões de espaços de anúncio, essas plataformas fazem leilões de serviços, que ficam mais caros ou mais baratos a depender de como está a demanda por eles. Seus trabalhadores precisam comprar seus próprios instrumentos de trabalho e não possuem direito nenhum, nem mesmo ao salário, trabalhando sob demanda e recebendo parte do valor pago pelo que fazem.

O sociólogo Ricardo Antunes trata dessa superexploração em seu livro O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Numa entrevista recente, ele define que “estamos vivendo uma forma que se assemelha a um tipo de escravidão digital. São empresas operando com maquinário tecno-científico-informacional muito desenvolvido e que se utilizam de relações pretéritas de trabalho, com jornadas extenuantes, ritmos alucinantes, com acidentes, mortes e tantos outros elementos nefastos”.

Esse modelo de exploração do trabalho estar tão radicado na sociedade contemporânea talvez seja a maior comprovação empírica da natureza classista da tecnologia no capitalismo, ao mesmo tempo que também demonstra a falência completa do neoliberalismo e a necessidade de superá-lo.

Organização em redes e ruas

Vimos que o desenvolvimento tecnológico tem caráter de classe e que a aceleração da digitalização na pandemia tem como objetivo ampliar a exploração do trabalho e a acumulação capitalista. O desenvolvimento de tecnologias digitais e seu crescente uso de dados não apontam para o fim do trabalho ou para o bem-estar social: dos mineiros do Congo que extraem coltan para produzir celulares até os entregadores de aplicativos, os trabalhadores são submetidos a condições precárias de trabalho e de vida.

Entretanto, como defende Tony Smith, os efeitos destrutivos da tecnologia “não são características necessárias da mudança tecnológica; são características necessárias da mudança tecnológica no capitalismo“. Num outro tipo de sociedade, o aumento de produtividade poderia ser usado para liberar tempo para os trabalhadores e garantir uma vida melhor. Nossa conexão em tempo real numa rede global poderia ser usada para desenvolver toda potencialidade e criatividade humana. Modelos de aprendizagem de máquina poderiam ser usados para combater a desigualdade social e proteger o meio ambiente. Poderiam surgir novas tecnologias que ainda nem imaginamos, formuladas com objetivos distintos do lucro de uma pequena parcela da humanidade.

Para conquistar tal sociedade é necessário se dedicar à boa e velha luta de classes.

Se por um lado as tecnologias digitais nos separam e individualizam, e o uso acrítico de redes sociais é viciante e despolitizante, como mostra Pedro Fuentes num texto que vale a leitura, por outro podem ajudar na nossa organização coletiva. Sobre o uso da Internet por revolucionários, gosto da provocação feita num meme (eis aí um formato digital por excelência) que vi circulando entre jovens socialistas americanos em 2016. Havia uma foto de Vladimir Lenin no fundo e, sobre ela, estava escrito, como se estivéssemos em 1902: “Se daqui a 114 anos houver uma forma gratuita de alcançar todos os trabalhadores através de dispositivos brilhantes do tamanho de um livro de bolso, não me digam que vocês ainda estão só vendendo jornais nas portas das fábricas ou vou sair do caixão para assombrá-los”.

As novas relações de trabalho exigem novas formas de organização e nossos celulares podem vir a calhar, como mostrou a realização nacional do Breque dos Apps por entregadores interconectados via WhatsApp. Trabalhadores das big tech também têm se organizado e feito protestos contra políticas das suas empresas como o internacional Google Walkout em 2018 e as recentes manifestações contra a política do Facebook de não aplicar seus termos de uso contra Donald Trump.

Não há dicotomia entre ruas e redes. No mundo cada vez mais digitalizado, o que é digital também compõe a realidade. Com efeito, a Internet tem sido usada por ativistas em toda parte para organizar mobilizações, em especial pela juventude. Em 2011 teve papel fundamental nas revoluções árabes, a ponto do ditador Hosni Mubarak ter cortado o acesso do Egito à Internet para tentar dificultar a comunicação e evitar a organização de protestos. Um dado interessante é que apenas cerca de 30% da população egípcia tinha acesso à rede na época das manifestações, o que mostra a potência da Internet mesmo quando ela não é acessada diretamente.

A Internet também permite que os ativistas troquem experiências e materiais como vídeos numa rede global e, assim, nacionaliza e internacionaliza lutas. Isso se viu no movimento dos indignados espanhóis, no Occupy Wall Street, na Marcha das Vadias, nas jornadas de junho de 2013 e em outros processos nos últimos anos.

A contradição final do desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo é que ele pode nos dar condições para a superação do próprio capitalismo. Isso só acontecerá pela ação coletiva.


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